Zen e Aikido

 

“O segredo do Aikido não está no modo como você move seus pés, está no modo como você move sua mente”.

Grão-mestre Morihei Ueshiba, fundador do Aikido

 

Como acontece com todo grupo de imigrantes quando chega a um país estrangeiro, os japoneses trouxeram para o Brasil seus costumes e cultura e apesar dos mais de cem anos de presença em solo brasileiro algumas coisas ainda permanecem desconhecidas ou no mínimo há um pouco de confusão no seu entendimento. Outras sofreram um processo de transformação em sua ocidentalização tão grande que sua raiz se tornou quase totalmente perdida e resta muito pouco de suas práticas originais. Apesar de haver se espalhado por todo o ocidente, as artes marciais ainda são motivo de grande discussão e confusão mesmo entre praticantes experientes. Acredito que deva haver uma diferenciação entre as artes marciais tradicionais e as modernas práticas esportivas. As primeiras estavam envoltas num clima de confrontos que invariavelmente terminaria na morte de um dos lados e não haviam regras como “Não são válidos golpes em genitais, olhos, garganta ou que possa levar o atleta à morte”, mesmo porque o conceito “atleta” era totalmente desconhecido, e um rigoroso código de ética regia a vida dos samurais.

Sem entrar em detalhes históricos, mas em linhas gerais, num contexto belicoso, o termo Bujutsu (武術) descrevia o conjunto de artes marciais destinados a guerra onde em uma tradução direta e literal significa Técnica do Guerreiro. O termo Budô, (武道) literalmente Caminho do Guerreiro, que já havia aparecido nos escritos do século XIII, adquiri um significado diferente a partir do período Tokugawa (1600-1868) e Aizawa Yasushi, um estudioso e filósofo do século XIX afirmava que “As artes da espada, lança, arco e flecha sela são o Bugei (武芸); conhecer a etiqueta e a honra, preservar o jeito do cavalheiro, lutar pela frugalidade e assim tornar-se um baluarte do Estado é Budô”. O sufixo , que substituiu o Jutsu, assumiu tamanha importância na cultura japonesa que muitas artes passaram a adota-la com objetivo de trazer para suas práticas o sentimento de uma busca pelo desenvolvimento espiritual. Uma grande responsabilidade por esta mudança pode ser atribuída ao Zen, que entrou no Japão por volta do final do século XII com a Escola Rinzai e que influenciou sobretudo a classe Samurai, por quem foi amplamente adotado. A partir do contato com o Zen os Samurai, antes predominantemente guerreiros, passaram dedicar-se as artes como Shôdô, pintura, poesia, escultura, Chadô e meditação. Consequentemente as escolas marciais que os Samurai defendiam também passaram por esta transformação fazendo surgir o ideal do Bun Bu Ryô Dô (文武両道), A Cultura e a Espada são o Caminho, e tornando-se Dôjô, locais para desenvolvimento pessoal. Dentre estas o mais novo caminho de desenvolvimento pessoal é o Aikidô, que foi oficialmente reconhecido como Arte Marcial somente após a Segunda Guerra Mundial.

Morihei Ueshiba, Ô Sensei, fundador do Aikido, foi um exímio praticante de artes marciais, estudou as antigas artes do Koryu Jujutsu, Kenjutsu, Naginata Jutsu (lança), Esgrima japonesa da Escola Yagyu e Daito Ryu Jujutsu, mas foi o contato com Onisaburo Deguchi, um sacerdote da seita Omoto-kyo que transformou significativamente sua vida e consequentemente sua visão sobre as artes marciais. Após estudar com Deguchi, o Grão-mestre chamou sua arte de Aiki Bujutsu, que significa a harmonia do espírito. Um episódio que marcou sobremaneira a vida de Ueshiba Sensei, foi quando um general do exército japonês, conhecedor de sua fama, o desafiou para um duelo de espadas. Ô Sensei sugeriu que o general se sentisse à vontade para ataca-lo e após uma sequência de golpes sempre no vazio, o general cansou-se e desistiu, ajoelhou-se e pediu para ser aluno de Ueshiba Sensei. Neste momento o Grão-mestre sentou-se e sentiu que o Espirito do Universo envolvia seu corpo, sentindo uma paz absoluta e indescritível Morihei Ueshiba mudou novamente o nome de sua arte, passando a chama-la Aikidô. Algumas vezes traduzido como Caminho da Harmonia da Energia, Aikido na realidade vai muito além deste conceito. Seiichi Sugano, que foi Uchi Deshi ¹de Morihei Ueshiba no início da fundação do Aikido, dizia que o Fundador nunca falou em harmonia. Sugano dizia que existem muitas formas de traduzir o kanji Ai (合) e uma destas é harmonia, mas quando este kanji está junto com outro, como no caso de Aiki (合気) ele abre um leque de interpretações e uma delas é Amor. Sugano dizia que o Grão-mestre nunca usou a palavra harmonia porque para obtermos harmonia são necessários condições, concordância e negociações e para o Amor não há condições. Se formos nos basear nas palavras de Sugano Sensei e toda história do Fundador, Aikido significa O Caminho do Amor.

Uma arte marcial se entende por seu conjunto de propostas e princípios. O princípio do Aikido é não resistência, é não opor força contra força. A proposta é de construção, de edificação e lapidação do caráter. A visão de que estamos separados é um conceito rejeitado no Aikido e isso fica evidente no fato de não existirem competições, não existem vencedores ou vencidos, procuramos observar nos treinos o lema do Esperanto, que era a língua adotada pela religião Omoto, “Um único povo, uma única língua, um único Deus”. A ideia de Deus vem da Omoto-Kyo, que era uma seita do Xintoísmo, mas isso não significa que o Aikido seja uma religião, o que fica é somente o conceito de unidade, de que somos seres interdependentes e interconectados. Quando pisamos no tatami pela primeira vez, sentimos a atmosfera de paz e escutamos coisas como harmonia, adequação, amor, cooperação, equanimidade, não resistência e unicidade, parece que estamos em um universo paralelo e fica até difícil de apreender os ensinamentos do Sensei, tamanha a dicotomia que passamos a vivenciar quando comparamos o ambiente do Aikido com a vida “real”. Porém, o praticante que persevera logo percebe que está separação entre sujeito e objeto é apenas uma construção e que o sentimento de ser uno com todos os seres é condição sine qua non para a assimilação dos ensinamentos do Grão-mestre. Dessa noção de separação é que surgiu a ideia da natureza como algo que tem que ser dominado, amansado para o bem da sobrevivência humana no planeta. Estamos sempre buscando condições da raça humana sobreviver em meio a “fúria da natureza”, erguemos cidades cada vez mais protegidas e resistentes às forças da natureza. Prédios de concreto e ferro que nos afastam cada vez mais do campo, da terra e do nosso entendimento sobre nós mesmos. A imagem ilusória de um “Eu” inteligente, consciente e separado está por trás dos graves conflitos entre países e também dos problemas ecológicos, pois o “Eu” vê o planeta como um almoxarifado onde pode sacar e retirar seus recursos para satisfazer a demanda humana.

Toda a proposta do Aikido vai na contramão deste discurso armamentista, exploratório e separatista e isto é sustentado não somente por sua filosofia, mas também pelo seu conjunto de técnicas que exige do praticante um andar junto com o outro e em razão do outro. Frases como “golpe de Aikido” ou “lutar Aikido” são totalmente estranhas a um Dôjô² que se esforce em manter as ideias do Fundador vivas. Os movimentos técnicos não são um fim em si mesmo e estão a serviço da construção de um cidadão disposto a servir de instrumento para a edificação de uma sociedade mais justa e equânime, não através da força ou da imposição, mas sim através da ideia de unicidade e indistinção. Um praticante de Aikido precisa entender desde o início que treinar Aikido é perceber-se no companheiro de treino, é ver no outro não um reflexo de si, mas sim que o que atinge o outro lhe atinge também, o que fere o outro também lhe fere, o que faz o outro sofrer também lhe causa dor e sofrimento, é reconhecer enfim que ele e o outro são o único e mesmo ser. A isto podemos dar o nome de empatia ou compaixão. Todo o esforço despendido para o aprendizado físico das técnicas é direcionado para o fortalecimento do Ego e isso é um grande desperdício de tempo e energia.

Existem muitos conceitos do Aikidô que se sustentam no Zen, como a expressão Shizentai (自然体) que pode ser traduzido como um estado natural e totalmente relaxado do corpo e da mente, um estado sem expectativas, sem julgamentos ou tendências, um momento de total esvaziamento da mente que se compara ao Shikantaza (只管打座). Há, na execução de um Kata de Aikido, a preocupação em um estado de presença e embora a técnica seja repleta de detalhes e movimentos que se sucedem e se completam, o único instante que interessa é o que acontece no exato momento e este é o foco de nossa atenção. Não existe um fim, não existe onde chegar, o que nos seduz é o como, o caminho. No Aikido, assim como no Zen, existe um processo de desconstrução daquele que pensamos ser, temos que deixar de lado conceitos como força, individualidade e independência.

Ô Sensei dizia que “O verdadeiro Budô é o trabalho de amor. É trabalho de dar amor e vida a todos os seres vivos e não matar ou lutar contra o outro. Amor é divindade guardiã de tudo. Nada pode existir sem ele. Aikido é a realização do amor”.

 

Texto de monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

  • Literalmente aluno interno, ou aluno do lar. Aluno que mora na casa do mestre e realiza os mais diversos trabalhos em troca de ensinamentos.
  • Local de prática, local de busca espiritual.

 

Bibliografia:

Aikido e a Harmonia com a Natureza – Mitsugi Saotome

https://1library.net/article/bud%C3%B4-bujutsu-bugei-thomas-green-martial-arts-world.q2v2jk6y

 

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