No dia 02 de janeiro de 2022, Venerável Thich Nhat Hanh (ou Thay, como também é chamado) deixou de viver enquanto um dos mais influentes mestres Zen Budistas que já caminharam na Terra, e passou a povoar o mundo de muitas outras formas. Enquanto mestre Zen, professor, poeta, e ativista pela paz e pela transformação social não violenta, sua contribuição para a difusão do Dharma é de uma vastidão inestimável. Os efeitos positivos de suas ações irão repercutir por muito tempo, e uma das maneiras de sentir a continuidade de sua resplandecente presença é através dos belos livros que ele escreveu.
O último a ser publicado, Zen and the Art of Saving the Planet (Zen e a Arte de Salvar o Planeta), assemelha-se a uma carta deixada à humanidade, um apelo amoroso para que sejam cultivadas em nós, a partir da prática de meditação, as mais virtuosas sementes: aquelas que serão necessárias para fazer frente aos desafios do momento crítico em que vivemos. Diante da interseção entre devastação ambiental, mudança climática, recrudecimento de violações aos Direitos Humanos, e impactos devastadores de uma pandemia, ler o mestre é como adentrar num intervalo de calma, e visualizar a possibilidade de que mudanças venham a ocorrer.
O livro é uma compilação dos escritos mais proeminentes de Thich Nhat Hanh no campo da ecologia. É um apanhado, realizado por alunos, das ideias e práticas desenvolvidas ao longo de sua vida. Comprometido com causas ambientais, o monge criou em 1964 a Order of Interbeing (Ordem do Interser), uma comunidade de pessoas monásticas e leigas comprometidas a viver em acordo com “Os Cinco Treinamentos para a Mente”, um conjunto de preceitos que contemplam o cuidado amoroso com a Terra. A Ordem afirma a impossibilidade de separação entre humanidade e meio ambiente, trazendo o compromisso com gestos de preservação ambiental como parte explícita, ou destacada dos votos realizados por seus membros.
Em 2015, Thich Nhat Hanh uniu-se a outros líderes budistas, incluindo o Dalai Lama, para escrever e enviar uma delcaração para governantes do mundo, em meio ao Acordo Climático de Paris. O mestre também escreveu o livro “Dez Cartas de Amor para a Terra”, afirmando a condição sagrada e indissociável da conexão de humanos com o planeta. Além disso, favoreceu a criação de uma Sangha especialmente dedicada a promover, através de práticas meditativas, o ativismo ambiental: a Earth Holders Community (Comunidade Guardiões da Terra). Em 2021, a Comunidade Plum Village, situada na França e também criada pelo monge, enviou uma comissão à COP26, conferência da ONU sediada em Glasgow para estabelecer diretrizes mundiais diante da atual catástrofe climática. O grupo de monásticos mediou importantes propostas de acordo entre grupos com interesses distintos. Em cada uma destas ações, o que encontramos é sempre uma postura de conciliação, e uma tentativa de afirmar que a mudança de sentimentos e estados internos deve preceder, ou ao menos acompanhar qualquer forma de ativismo que vise a mudança social.
Os textos do livro “Zen and The Art of Saving the Planet” não são diferentes. Enfatizando a relevância de parar e sentar em meditação, Thay introduz generosamente meios de abandonar práticas de degradação ambiental a que acabamos por aderir, de maneira consciente, ou não. Para o autor, qualquer ativista que tenha ações coletivas como horizonte precisa ter como ponto de partida o corajoso encontro consigo mesmo: com a própra ganância, orguho, violência. O mestre afirma que uma mudança econômica, e em termos de legislação não será de grande ajuda, se não for acompanhada de uma transformação na mente das pessoas. No livro, o mestre afirma ainda que o caminho do Ahrahat e o do Bodhissatva são iguais em termos de potencial para mudar o mundo. De acordo com ele, a distinção é ilusória. Diminuir o ritmo, apreciar a vida e aprender a lidar com a própria raiva, medo e sentimento de inferioridade, ou insegurança fazem parte da reconexão que favorece uma transformação coletiva. A cada página, é possível sentir a confiança de Thich Nhat Hanh na possibilidade que temos de encontrar novos modos de existir no mundo, de colocar em prática e promover valores ecológicos, sem perder a harmonia e a paz que tantos mestres budistas nos ensinam a cultivar.
Como forma de repercutir o potencial transformador de “Zen e a Arte de Salvar o Planeta”, e destacar a sugestão de sua leitura, oferecemos nesta edição da coluna a tradução de um trecho do texto Trovão na primavera, gentilmente cedido pela Editora Vozes. Para quem não conhece o autor, adquirir um exemplar é oportunidade de vivenciar a doçura de suas palavras. Para quem já mantinha com o mestre uma relação de afeto, o contato com sua escrita, e o empenho em alcançar a transformação que ele solicita nesta obra será uma maneira de honrar sua bela passagem por este planeta. Ao sermos tocados pela amorosidade das palavras do Thay, que possamos nós também tocar a Terra com o cuidado afetuoso de quem abraça uma mãe amorosa e generosa, passando a contribuir cada vez mais com a sua regeneração.
Trovão na primavera
Muitos de nós sequer estamos acordados. Vivemos no mundo, mas não podemos vê-lo de fato; é como se caminhássemos tal qual sonâmbulos. Acordar é, antes de tudo, despertar para a beleza da Terra. Você acorda para o fato de que tem um corpo, e de que este corpo é feito da Terra, do Sol e das estrelas. Desperta para a realidade de que o céu é bonito e que nosso planeta é uma jóia do cosmos. Você tem a oportunidade de ser um filho da Terra e caminhar neste planeta extraordinário.
Acordar significa despertar para o sofrimento que há no mundo. Você acorda para o fato de que a Terra está em perigo, de que espécies vivas estão em perigo. Sua intenção é encontrar formas de trazer alívio, cura, transformação. Isso requer uma enorme fonte de energia. Se você tem um forte desejo em si, uma mente de amor, este é o tipo de energia que o ajudará a fazer estas duas coisas: acordar para as belezas do planeta, e assim curar a si mesmo; e acordar para o sofrimento do mundo, e tentar ajudar. Se você tem esta fonte de força dentro de si, se tem esta mente de amor, você é o que pode ser chamado um buddha em ação.
Se você vê o sofrimento no mundo, mas não mudou seu modo de vida ainda, isso significa que o despertar não está forte o suficiente. Você não acordou verdadeiramente. No Zen, às vezes um professor vai gritar, ou bater em você, para acordá-lo – eles fazem o que for necessário. O grito do mestre Zen é como o estrondo de um trovão na primavera. Ele o acorda, e com a chuva que vem a seguir, a grama e as flores desabrocharão.
Nós precisamos de um real despertar, uma real iluminação. Novas leis e políticas não são suficientes. Precisamos mudar nossas maneiras de pensar e ver as coisas. Isso é possível; a verdade é que ainda não tentamos verdadeiramente. Cada um de nós tem que fazer isso por si mesmo. Ninguém mais pode fazer por você. Se você é um ativista, e almeja fazer alguma coisa, deveria começar por si mesmo e por sua mente.
É minha convicção que não podemos mudar o mundo, se não formos capazes de alterar nossa forma de pensar, nossa consciência. A mudança coletiva em nosso pensamento e em nosso olhar frente às coisas é crucial. Sem isso, não podemos esperar que o mundo venha a ser diferente.
O despertar coletivo é feito do despertar individual. Você tem que acordar a si mesmo antes, e então aqueles ao seu redor terão uma chance também. Quando o nosso próprio sofrimento diminuir, poderemos ajudar mais, e poderemos ajudar os outros a mudar a si mesmos também. Paz, despertar e iluminação sempre começam com você; você é a pessoa com quem precisa contar.
Por um lado, para que possamos adquirir a nutrição e a cura necessárias, precisamos aprender a arte da felicidade, ou como estar verdadeiramente presentes para a vida. Por outro lado, é imprescindível aprender a arte de sofrer: convém mudar a forma como sofremos, para que soframos muito menos, de modo a poder ajudar os outros a sofrer menos. É preciso coragem e amor para nos voltar para nós mesmos e cuidar do sofrimento, medo, e desespero interiores.
Meditar é crucial. É indispensável sair do desespero, ter o insight do não-medo, manter sua compaixão viva para que lhe seja possível tornar-se um real instrumento da Terra, e assim ajudar todos os seres. Praticar mindfulness não significa escapar da vida, mas tomar tempo para olhar em profundidade. Você permite a si mesmo tempo para sentar, e caminhar – para estar sem fazer nada, apenas olhando profundamente para a situação, e para sua própria mente.
“Trovão na primavera” é um trecho do livro “Zen and the Art of Saving the Planet”, do Venerável Mestre Thich Nhat Hanh, publicado pelas editoras Parallax Press e HarperOne, em 2021. A livre tradução acima é de Amanda Muniz, doutora em psicologia, e colaboradora na comunidade zen budista Daissen Ji. Ainda não há previsão de quando a versão em português será lançada pela Editora Vozes, que detém os direitos de tradução e publicação no Brasil, e gentilmente cedeu este trecho para a coluna. As edições em inglês já estão disponíveis nas livrarias.
Tradução e resenha Amanda Muniz. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.