Yogachara: a escola da mente apenas

Um caleidoscópio em fluxo…

 

Reflexo de mim: No espelho, um rosto – Na mente, ninguém.
明光 Kōmyo

 

 

A escola Yogachara (séc. IV EC) ao lado da Madhyamaka (séc. II EC), é uma das duas principais escolas que constituem o veículo Mahayana na Índia. Tradição influente na filosofia budista, enfatiza o estudo da cognição, percepção e consciência por meio de práticas meditativas e investigação cuidadosa dos processos cognitivos da mente.  Preocupada com a natureza da experiência, no sentido de entender os movimentos dessa dinâmica, a escola Yogachara tem como finalidade a superação da ignorância, causa impeditiva à liberação dos ciclos cármicos do nascimento e morte. Tendo introduzido várias novas doutrinas importantes no budismo, a Yogachara é conhecida também como Vijñanavada ou doutrina da consciência, Vijnaptimatrata-vada a doutrina da representação somente, ou ainda Vijnaptivada a doutrina dos objetos da percepção ou das ideias. Sua principal teoria epistêmica é a Cittamatra ou “Mente Apenas”.

A tradição da escola Yogachara desenvolveu um sistema elaborado e extremamente refinado, que possibilitou o mapeamento de problemas relacionados à cognição, ao mesmo tempo que criou uma metodologia para corrigi-los.  Num esforço epistemológico produziu um dos trabalhos mais elaborados sobre percepção e lógica já desenvolvidos pelo budismo, criando modelos de análise do acoplamento entre consciência e experiência e descrevendo em detalhes como os seres sencientes experienciam o mundo.

Seus principais filósofos e sistematizadores clássicos são os irmãos indianos Asanga e Vasubandhu (IV e V E.C.). Contudo, seus princípios e doutrinas fundamentais já estavam em circulação por meio de escrituras pelo menos um século antes. Entre as mais significativas, encontrava-se o Sandhinirmocana Sutra [elucidando as conexões ocultas], em que são desenvolvidas noções de “Apenas Cognição” [vijiñapti-mãtra], “Três Naturezas Próprias” [trisvabhava], Consciência Depósito [alaya-vijñana], “Derrubando a Base” [ashraya-paravrtti] e a “Teoria das Consciências”. Todas essas abordagens de forma alguma foram colocadas como tentativa de criar uma teoria metafísica, ao contrário, a doutrina da “mente-apenas” teve como motivação desenvolver um minucioso estudo sobre a natureza da mente como contrapartida ao problema do karma, samsara e despertar.  O estudioso Dan Lusthaus[1] traduz vijñapati-matri  como “nada além da construção consciente”, descrevendo este conceito nestas palavras:

 Um truque enganoso está embutido no modo como a consciência opera a cada momento.  A consciência projeta e constrói um objeto cognitivo de tal maneira que repudia sua própria criação – fingindo que o objeto está “lá fora” – a fim de tornar esse objeto capaz de ser apropriado.  Mesmo enquanto aquilo que conhecemos esteja ocorrendo dentro de nosso ato de cognição, nós o reconhecemos como se fosse externo a nossa consciência.  A realização de vijnapti-matra expõe esse truque intrínseco ao funcionamento da consciência eliminando-o.  Quando esse engano é removido, o modo de cognição de alguém não é mais denominado vijnana [consciência]; tornou-se cognição direta [jnana].  A consciência se engaja nesse jogo enganador de projeção, dissociação e apropriação porque não existe um “self”.  Segundo o budismo, a visão errônea mais profunda e perniciosa mantidas pelos seres sencientes é que existe um si [self] permanente, eterno, imutável e independente.  Não existe esse si, e no fundo sabemos disso.  Isso nos deixa ansiosos, pois implica que nenhum si mesmo ou identidade perdura para sempre. Para amenizar essa ansiedade, tentamos construir um eu, preencher o vazio ansioso, fazer algo duradouro.  A projeção de objetos cognitivos para apropriação é a principal ferramenta da consciência para essa construção.  Se eu possuo coisas [ideias, teorias, identidades, objetos materiais], então “eu sou”. Se existem objetos eternos que eu posso possuir, também devo ser eterno. Para minar essa apreensão apropriativa desesperada e errônea, os textos Yogachara dizem: negue o objeto, e o si mesmo também é negado. (Madhyanta-vibhaga, 1:4, 8).

A fundamentação de Dan Lusthaus esclarece que, se há alguma intenção na doutrina Yogachara, em específico o aspecto de vijnapati-matri, de forma alguma constitui uma afirmação ou negação de entidades metafísicas. Quando no Yogachara se discute objetos cognitivos [visaya], é apenas no seu aspecto referente à cognição.  Na verdade, o foco da doutrina está em entender e extirpar as tendências subjacentes [anusaya] que levam ao apego e às construções ontológicas [construções do “eu”], que seriam, na verdade, apenas projeções cognitivas [pratibimba, parikalpita].

Toda a sua doutrina tem como base, em última análise, descrever como o processo cognitivo dos seres sencientes está fundamentalmente conectado com a centralidade da doutrina budista fundamentada nas Quatro Nobres Verdades do Sofrimento, para, então, estabelecer uma metodologia sistemática, um caminho espiritual para a prática de meditação e a vivência de experiências místicas de consciência pura.  Em suma, a filosofia Yogachara é fundamentalmente voltada para uma explicação da experiência meditativa em si.

A escola Yogachara tem como sua inovação a doutrina das oito consciências. Basicamente, essa doutrina é uma explicação detalhada do funcionamento da mente e da maneira como ela constrói a realidade que experimentamos.  Os oitos corpos de consciência [asta vijiñañakayah] são mais do que as conhecidas cinco consciências dos sentidos: caksurvijñana [consciência da visão], srotavijñana [consciência da audição], ghranavijñana [consciência do olfato], jihvavijnana [consciência do paladar], kayavijiñana [consciência corporal], citta ou manovijiñana [mentalidade], manas [autoconsciência] e alayavijnana [consciência substrato].

Contudo, no modelo básico da doutrina encontrada nos primeiros textos budistas [Suttapitaka-Sabbasutta] era ensinado apenas as seis primeiras vijñanas, cada uma correspondendo a uma base sensorial [ayatana], e tendo, respectivamente, seus próprios objetos sensoriais: forma, som, cheiro, gosto, sensação tátil e pensamentos-imagens. Sustentando que esses dhatus, entes não substanciais, esgotariam toda a extensão de toda a experiência sensorial do universo, a doutrina budista padrão explicaria as seis consciências como a própria atualização da realidade em uma série de eventos em surgimentos e cessações num continuum que remontaria ao tempo sem começo [anadi].

O modelo básico descrito foi expandido e desenvolvido pelo Abhidharmma e reorganizado pela Yogachara em seus próprios termos, com a adição de duas novas formas de consciências.  Klista-manas-vijinana, a sétima das oito consciências, conhecida como consciência superior ou consciência intuitiva.  Sua função é localizar a experiência por meio do pensamento, por um lado, e então, por outro, universalizar a experiência pela percepção intuitiva da mente universal de alayavijinana. Nesse sentido, ela atua como um terminal de conexão entre manos [sexta consciência] e alayavijinana [oitava consciência]. Manas-vijinana, tendo como sua natureza básica o pensamento, porém diferente da natureza do pensamento cognitivo da sexta consciência, atua de forma não controlável contaminando a mente pelas quatro paixões: crença em um “eu” ou “ego”, a ignorância ao se identificar com esse “eu”, orgulho e amor-próprio.  Além disso, essa mente faz com que as seis consciências [dos sentidos e das formações mentais], tomem Alayavijinana como a identidade do “eu” e dividam as percepções sensoriais em sujeito-objeto.

Por último, a oitava consciência Alayavijiñana, que tem sua conceituação originária na escola Sautrantika, descrevendo-a como uma teoria das sementes [bīja] no fluxo mental [cittasamtana].  Essa teoria originária tinha como propósito explicar como o karma e as disposições latentes [kleshas] continuam ao longo da vida e do renascimento. É possível encontrar na teoria Theravada do Bhavanga uma outra proto-teoria de Alayavijinana, posteriormente citada por Vasubandhu no ensinamento de bhavangavijñana da escola Tamrapariniyanikaya. Vasubandhu, no seu Tratado em Trinta Estâncias [Trimsikaikakarica], sistematizou o pensamento Yogachara elaborando minunciosamente o conceito das seis consciências e a inclusão das consciências Klista-manas-vijinana e Alayavijinana.

Ainda no Tratado de Vinte Versos, Vasubandhu descreve a dinâmica conjunta das oito consciências, em que a consciência fundamental abrangente [Alayavijinana] forma a consciência básica [mūlavijiñana] ou consciência causal, as outras sete consciências seriam consciências “evolutivas” originárias dessa consciência básica.  A consciência armazém acumula toda a energia potencial como sementes [bija] para a manifestação mental [nama] e física [rupa] da própria existência [namarupa]. É Alayavijinana, a consciência-armazém que induz o que seria o renascimento, causando a origem de uma nova existência.

A doutrina da escola Yogachara define três modos básicos de cognição dos fenômenos, podendo ser conceituados nesses termos: a aparência, o processo e a vacuidade da entidade aparente.  Os modos, ou as três diferentes naturezas da cognição da experiência, na verdade, se referem a apenas uma realidade, porém apreendida por três diferentes pontos de vista.  Basicamente essa é a explicação formulada pela a escola Yogachara sobre a doutrina budista sūnyata [vacuidade].   Numa descrição mais detalhada, temos o primeiro modo de cognição: Parikalpita-savabhava [aparência], que é o modo de cognição onde a experiência é completamente construída.  Nesta forma de apreensão da realidade, as coisas são compreendidas pela atividade da linguagem, não especificamente verbal, mas no sentido de significação da realidade circunscrita, intramundana e histórica dessa  mesma realidade. A natureza construída atua na concepção de conceitos gerais e universais, tentando criar um mundo que possui, em sua aparência, o status de verdade sólida, como se existisse uma existência intrínseca às coisas.

Ao conferir essa substancialidade aos fenômenos em sua ilusão de aparência real, a realidade se desdobra em um duplo e se define em forma de sujeito que vê e que agarra e o objeto que é visto e agarrado, tornando tudo muito fácil de se apegar.  Na parikalpita-savabhava a conceituação, a representação, as imagens e as emoções têm um caráter extremamente relevante, podendo ser referidas como a natureza “imaginária” e, portanto, vazias de qualquer substancialidade, como “miragens ou flores no céu”.

A segunda forma de cognição é nominada como Paratranta- svabhava [processo], referindo-se a uma forma de apreensão da realidade que depende de uma causa antecedente ao surgimento do fenômeno e, ao mesmo tempo, tornando esse fenômeno a causa do próximo. Em suma, é o próprio processo causal da fabricação da coisa, que traz à imanência aparente do fenômeno. Pode ser sucintamente nominada como a natureza originada dependentemente dos dharmas. Também pode ser entendida como fluxo causal de algum fenômeno, que tendo a profunda percepção desse fluxo em continuidade não-dual de impressões, depende sempre de um conceito como base, ou causa primeira estabelecida.

É preciso ressaltar que essa causa-base, além de ser conceitual, é arbitrária, já que é impossível a determinação de apenas uma causa específica para originar um fenômeno.  Essa posição coloca a natureza cognitiva de outro-dependente em questão, uma vez que não se sustenta como fenômeno-resultante substancial, mas sim como vacuidade.  Parinispanna-svabhava [vacuidade consumada] é o modo de cognição fundamentalmente não-dual, portanto, não-ilusória. É a forma de apreensão da realidade que se pode considerar a verdadeira natureza de todas as coisas, a experiência da talidade, ou das coisas em si, como realmente são. É a natureza Thatata realizada pela meditação e não contaminada pela linguagem conceitual e interpretativa.

Esse modo básico de experienciar a realidade é a pura visão imersa na vacuidade, no vazio de ser de qualquer e de todas as coisas. É a experiência pura do instante que se consuma em contínua atualização, sem se manter, é sempre direcionada ao vir a ser.  A compreensão dessa natureza, que apreende o real de forma não-existente, leva ao entendimento de sua não existência real, mas como sendo vacuidade de si mesma, de forma extremamente paradoxal na Yogachara ela é existente.  Por fim, Vasubandhu ensina pelo conceito de Tri-Svabhava-Nirdesa a coexistência das três naturezas: a construída, a outra-dependente e a consumada, sendo essas as formas ou modos de apreensão da experiência mais “profundos a serem conhecidos pelo discernimento”.  As três formas estão intrinsecamente conectadas, já que sua distinção está apenas em pontos de vista diferentes.

Nesse sentido, podemos traduzir nesses termos; “o que aparece é a outro-dependente; enquanto como aparece é a construída”; contudo, “o constante estado-de-não-ser-encontrado [qualquer substância que torna…] de como aparece […uma forma concreta] naquilo [coisa em si que se configura de forma não-dual em um instante singular] que aparece, pode ser considerado como a natureza própria consumada. No Trisvabhava-nirdesa[2] de Vasubandhu encontramos uma clara definição desses três modos da cognição:

O que aparece é o dependente. Como ele aparece é o fabricado.  Por ser dependente das condições.  Por ser apenas fabricação.  A eterna inexistência da aparência tal como ela é aparece: essa é conhecida por ser a natureza aperfeiçoada, por ser sempre a mesma.  O que aparece lá? A fabricação irreal.  Como aparece? Como um si duplo.  Qual é a sua inexistência? Aquilo pelo qual a realidade não dual existe.

As obras Yogachara em sua sistematização das Três Naturezas e o Vazio, estabelece seu ponto de vista em relação a seu entendimento sobre a vacuidade e se coloca, dessa forma, em posição diferente a concepção da escola Madhyamaka.  Na sua significação da vacuidade, a Yogachara coloca a vacuidade como uma “dupla ausência de dualidade”.  Sistematicamente nega a existência da dualidade conceitual como pares de opostos. Em sua argumentação está que a própria conceituação divide o mundo entre o que é e o que não é. Contudo, sendo o mundo puro fluxo causal, não é possível determinar sua realidade pelo surgimento de objetos-conceitos.  Em sua sistematização, nega um segundo elemento traduzido como dualidade perceptual, entre o sensório [sujeito agarrador] e   a matéria-forma [objetos-agarrados].  Como argumento, a vacuidade dessa segunda dualidade coloca a dualidade perceptual como uma sobreposição irreal, já que não há, de forma alguma, qualquer separação entre sujeito e objeto, mas novamente o que há é uma corrente causal interconectada de apenas mente, ilusoriamente dividida.  Para a escola Madhymaka até mesmo esse fluxo causal é vacuidade.

A escola Yogachara, assim tendo a doutrina da “mente apenas” extremamente bem fundamentada por Vasubandhu e Asanga, veio a ocupar uma posição de extrema importância no budismo indiano.  Após a morte dos dois irmãos, dividiu-se em dois focos: o primeiro estabeleceu a tradição lógico-epistêmica nos nomes de pensadores como Dignaga, Dhamarkirti, Santaraksita e Ratnakīrti.  O segundo enfoque foi dado na tradição dos textos do Abhidharma Yogacara, um refinamento da psicologia abidhármica, tendo como representantes dessa vertente os pensadores Shiramati, Dharmapala, Lilabhadra, Xuanzang [Hsüan-tsang] e Vinitadeva.

Mais tarde, por volta do século VIII, essas duas doutrinas se sobrepuseram dando origem a uma forma híbrida; Yogachara-Thathagatagarba, extremamente influente no Leste da Ásia e Tibete.  Como representante dessa doutrina híbrida está o tradutor e intérprete de obras Yogachara Paramartha [499-569 E.C.]. Paramartha, desenvolveu uma nova teoria que dizia haver uma nona forma de consciência, a consciência Amala-vijinana ou vijnana pura.  O pensador associou sua teoria à doutrina de Tathagatagarba.  Essa doutrina foi fortemente desenvolvida na obra mais significativa do Mahayanottaratantra-sastra, que é um dos cinco tratados de Maitreya atribuídos a Asanga. Nesse texto o significado dessa doutrina é colocada nestes termos: “Porque a sabedoria de Buda penetra na multidão de seres vivos, que sua natureza não-dual é imaculada, e que na linha de Buda a semente é designada pelo fruto, diz-se que todos os seres vivos são embriões de Buda (I,27)[3].

Sendo a doutrina do Tathagatagarba , bem como outros ensinamentos da escola Yogachara, amplamente propagada pelo monge Paramartha durante o século VI na China,  ao lado de Xuanzang [c.602-664 E.C.] este, visto como fundador mais importante do Yogachara da Ásia Oriental, é possível construir um mapeamento do caminho percorrido para o estabelecimento da doutrina budista  que fundamentou os ensinamentos da escola Zen, tendo como base metodológica a própria doutrina Yogachara e tornando o conhecimento desta, uma grande possibilidade de inspiração  para o traçado e entendimento de uma genealogia dos ensinamentos Zen Budistas.

 

As palavras vãs.

 Definem, inúteis, o imponderável.

明光 Kōmyo Sensei                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

Texto de Danielle Kreling – Seichō 清 調. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

[1] Lusthaus, Dan. What is and isn’t Yogacara,

http://www.acmuller.net/yogacara/articles/intro.htm

[2] Gold, Jonathan C., Vasubandhu, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer, 2008 edition),

Edward N. Zalta (ed.),

http://plato.stanford.edu/archives/sum/2018/entries/vasubandhu

[3] Samadhiraja Sutra. In Silburn, Lilian. (1997). Aux sources du Boudhisme, Fayard

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