Uma vida de momentos fortuitos

 

Venho de nobres que empobreceram.

Restou-me por fortuna a soberbia.

Com esta doença de grandezas;

Hei de monumentar os insetos!

(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés dos seus discípulos.

São Francisco monumentou as aves.

Vieira, os peixes.

Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.

Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)

Com esta mania de grandeza:

Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas de orvalho.

Manoel de Barros, Livro Sobre Nada, p. 37.

 

É um tanto negativo, para os princípios norteadores de uma vida plena em sentido, pensar em uma vida que se resume a momentos fortuitos. Mesmo o Dharma condenaria esta vida, em uma primeira leitura: entregue aos prazeres passageiros, jogada para lá e para cá pelos ventos do desejo. 

Mas eu sempre tive uma certa comiseração por aquelas pessoas que, realmente isentas de qualquer expectativa de sentido, devido aos embates e infortúnios da cansada história da humanidade, largam-se totalmente à maré. Acho-as de uma sabedoria própria, sinto que compartilho uma verdade com elas. De certa forma, sendo completamente honesto, sou uma delas; sem poréns nem entretantos. Desde cedo tenho uma certa predileção pelo desguarnecimento.

Minha vida parece se resumir ao caminhar, e a cada pedaço no chão, a cada relance da natureza que me subjaz, a cada bom encontro passageiro, marco meus pés em momentos inúteis. Os outros, de sucessos ou grandes prazeres, mesmo que me distraiam, tem retrogosto de desencanto. Já os momentos tristes, as quebras e frustrações revertidas em aprendizados à fogo baixo, de café sem açúcar.

Meus dias são marcados pela fortuidade, e o que há de excesso não aparece nas minhas palavras. Não é que eu não tenha os espólios da boa aventurança dos planos concretizados (Me acredito muito sortudo neste instante, aliás), só que a despeito de mim mesmo não consigo me apegar à eles. Como diz Manoel de Barros, “Tem mais presença em mim o que me falta”.

 À bem da verdade, vez em quando me pego refletindo que a única diferença entre como vivo e as  ilusórias impressões de mim é que, como o poeta, tomei o nada como meu mestre e ganhei dele a liberdade. 

Por isso, tenho grande aspiração, a maior delas, que vivo em segundos fortuitos todos os dias: atestar em plena consciência, viver sem eiras nem beiras a realidade de minhas imperfeições, angústias e insatisfações, à enxergar, apesar de tudo, o ponto fundamental da bolha de sabão: esta minha reles sensação de genjōkōan. A vida entregue à sutil luz do Dharma, concedida à teimosia do caminhar.

Às vezes, escrevendo textos como esse, me divirto ao encontrar-me; um juvenil em uma melancolia estereotípica, sujeito ao refúgio em fantasias românticas de destinos escritos à mãos de outro. Mas escrevo para aliviar meu coração, apenas.

Minhas palavras me precedem e me sucedem. Hoje, tudo o que desejo são encontros de amor inexplicável, ignorante de suas razões para o acalento desinteressado. Hoje, todos os meus sonhos, se realizados, culminam em reverter-me à devoção ao feliz nada que encontrei. Pois este nada é por demais belo e pleno em sentido, como eu jamais serei.

 

Por Matheus Anshin, DaissenJi, escola Soto Zen 

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