O zazenkai é uma experiência fantástica e necessária. Arriscaria dizer: uma etapa preparatória generosa para um sesshin (que aliás, ainda não realizei). Trata-se de uma prática mais intensa, composta por sessões sucessivas e alteradas de zazen – kinhin – zazen. Vou explicar melhor.
Como é comum na vivência de compaixão da sangha, os instrutores do Dharma não se importam em repetir as instruções das práticas mesmo narrando-as por inúmeras vezes em inúmeros encontros. Aqueles que já conhecem o processo, não se incomodam, não se impacientam, apenas aceitam o que é dito e agradecem com reverência. Aqueles que experimentam pela primeira vez, são acolhidos em um ambiente materno, para se sentirem confortáveis e amparados, como era meu caso.
Igualmente importante é a pergunta que surge ao praticante primário: “Você tem medo?” Assim me perguntaram e percebi uma resposta não pensada, instantânea: “Não. Até aqui, o Dharma só me trouxe alegrias.” O cuidado, o carinho de uma sangha, é o que nos encoraja. O budismo não é fácil, é complexo por sua simplicidade. Estar rodeada de pessoas que compartilham comigo das mesmas visões e experiências, me permite expandir minha lucidez, sem julgamentos e conflitos internos. Voltando ao detalhamento sobre o zazenkai…
No caso específico da prática que vivenciei como primeira experiência, ela teve duração de uma tarde, mas pode acontecer, segundo informaram durante as instruções, da mesma prática ser realizada em um dia inteiro, por exemplo. Inicia-se com o zazen de 40 minutos. Parte-se para um kinhin de 10 minutos e retorna-se ao zazen com mais 40 minutos em meditação. Intervalo: 20 minutos para comer algo, retomar a postura, descontraindo a musculatura das pernas, tomar um chá. Porém, evitando-se interações que possam conduzir à dispersão da mente. A mente zen é mantida todo tempo.
A sequência de atividades se repete: zazen – kinhin – zazen, intervalo. No terceiro zazen tive a impressão de que meu corpo gritava por socorro. As dores vieram em uma intensidade tão forte que comecei a tremer por inteira. Quadril, glúteos, joelhos, pés… tudo respondia à imobilidade prolongada, com uma dor sem tréguas. Nesse momento, minha mente pedia: “Por favor, kinhin! Eu preciso sair daqui!” Mas essa prece desesperada não conduzia à nada…
Busquei, discretamente, mudar a posição das pernas. Não fez diferença. Continuei rogando por um kinhin. Em vão… apenas uma estratégia foi capaz de me aliviar. Projetei-me na intenção de ver a dor como se estivesse fora de mim mesma. Ao fazer isso, resolvi assumir a dor como sendo eu mesma. Eu não podia me separar dela, então naquele instante, naquele momento em que ela se manifestava, éramos uma só coisa, um só fenômeno. A dor e eu nos manifestávamos em um mesmo espaço, em uma mesma fração de tempo, dentro do tempo e espaço infinitos.
A dor é uma parceira leal e importante, pois nos ajuda a voltarmos, sem titubear, para o momento presente e não criarmos dissociação, sobretudo em relação àquilo que nos incomoda. Imaginem quão grandioso isso seria para nossa vida diária? Não nos dissociamos daquilo que nos provoca dor e sofrimento, mas ao invés disso, amparar como sendo parte de nós mesmos, de nossas experiências e de nossas buscas? Imaginem como poderíamos ser mais generosos com nós mesmos ao conhecer a dor e o sofrimento em suas profundidades e admiti-los como fenômenos, e nada mais que fenômenos, que por isso se esvaem em determinado momento. Agora, imaginem que, ao conhecer a própria dor e insatisfatoriedade, o quanto conseguiríamos ser mais compassivos à dor e ao sofrimento dos outros? A dor não passou, mas estávamos lá; ela e eu. Kinhin…
Após o intervalo, nos foi orientada uma prática de alongamentos. Uma das praticantes da sangha era instrutora de yoga e gentilmente se propôs a realizar esse gesto valioso, para que conseguíssemos conduzir o último zazen, sem tantos desconfortos. A doação dessa mulher bondosa, foi um refúgio. No budismo, refúgio se refere a tudo aquilo que buscamos orientação, conduta e proteção. Os alongamentos permitiram a conclusão da prática de maneira suave e aliviada. Voltando à nossa vida diária, em condições de conflito, quão importante é ter ao seu lado pessoas de bondade e amor que aliviem nossos processos dolorosos, que nos privam de apreciar a beleza das coisas. Não é em vão, que entre as três joias do budismo, uma delas é a sangha.
Partimos para o último zazen. As pernas se acomodaram, encontrei uma posição mais favorável, já no zazen anterior. Praticar nos permite, inclusive, perceber pontos de incômodo e de conforto e trabalhar nisso com atenção. O sol se voltou para o ambiente da sala, antes de se despedir e se pôr. Uma claridade de uma luz dourada permeou todo o espaço e a sangha respirava junta.
Minha mente especulativa rapidamente entrou em ação, o que não seria novidade, mas conseguimos “conversar” harmoniosamente. Imaginei outros lugares que poderia estar, ao invés de estar ali. Lugares que me trouxessem experiências de prazer e desfrute: um passeio de lancha em alto mar, sentido a uma ilha deserta. Festa com amigos, com consumo de bebidas alcoólicas e música alta. Acampamento com amigos, com fogueira e violão, enfim… várias propostas que, dentro da intimidade de cada um, podem definir a felicidade no nosso mundo humano e frágil. Percebi que não havia, não havia mesmo, nenhum lugar melhor que aquele que eu estava, por “melhor” que esse outro se apresentasse. Nada é mais emergente e prioritário. Nada me preencheria mais. Nada, além daquela experiência, poderia me ofertar a felicidade que experimentava ao estar ali, existindo com o tempo, o espaço e o nada…
De volta para a casa, fui embora junto de amigas da prática. O curioso é que não há necessidade de falar depois dessas experiências. É possível estar na presença de um outro, sem se importar em dar ou receber atenção e não há problema algum nesse processo. Em casa, me deito, durmo um sono reparador. Reflexo da calma vivenciada.
Acordo. E como de costume, por volta das cinco horas da manhã, pois é rotina para o horário da meditação. Mas não me levanto de imediato. Fico na cama. Ruídos externos, carros passando na avenida próxima à minha casa. Há algo que se mostrou em mim e, mais uma vez: “quem vê, não desvê”.
Pensamentos me vêm à memória. Lembro-me de sonhos que tive, nos quais sempre havia água. Mares em tormentas, rios caudalosos, lagos cristalinos ou lamacentos, poços que não via o fundo, cachoeiras de água fluida e cristalina, enfim, os mais diferentes cenários, que certamente traduziam meu inconsciente manifesto. Não sei traduzir sonhos e tampouco busquei em terapias seus significados, porém, reconheço sua riqueza de mensagens.
Um lago de águas escuras, no entanto, me veio à memória. Aliás, ele não era fruto de um sonho. Era um lago que, em uma experiência vivida, não consegui entrar junto com amigos, porque tive medo. Exatamente essa memória me brotou genuína. De olhos abertos, o lago e o dia de sol vieram à minha mente. Eu era o sol. Eu era o lago. Eu era a escuridão do lago. Eu era as pedras do lago. Eu era os peixes, a serpente escondida entre as pedras. Eu era o veneno da serpente que me mataria. Eu era a morte e também a vida.
Entrei no lago. Eu era a superfície da água, onde a luz do sol penetrava. Eu era o calor e a luz do sol. Eu era o frio. Mergulhei mais fundo. Eu era o ar e o não ar. Eu era a escuridão das águas profundas e nesse momento o medo mostrou sua face. Lembrei-me de que eu era também a luz e consegui senti-la em meio à escuridão das profundezas. Eu era o medo. Assim como me tornei a dor durante a meditação. E ao me tornar ambos, deixei de ser. Ao deixar de ser eu mesma, como manifestações das minhas próprias ideias, expectativas e mente, a dor e o medo também deixaram de ser…
Hora de levantar. Antes de praticar, resolvi escrever. Eu sou a escrita e sou quem escreve. E ao mesmo tempo, não sou. E isso é o zen.
Texto de Julie Amaral. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.