Tolerância em Tempos de Pandemia

Somos feitos da mesma matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”.  Próspero, na peça A Tempestade, de Shakespeare.

 

O filósofo, teólogo e padre da Igreja Ortodoxa Grega, Jean-Yves Leloup cunhou o termo “normose” para indicar uma doença, a doença da normalidade. O sufixo OSE indica uma patologia, como arteriosclerose, trombose, artrose, etc., “normose” é, portanto, um “conjunto de normas, conceitos, valores, atitudes e hábitos de pensar ou agir aprovados pela maior parte de uma sociedade, que podem causar angústia, doença e mesmo a morte”. Nos acostumamos a ouvir coisas como “Ele começou a beber aos 14 anos, mas era normal na época dele”.

Faz um ano e meio que tivemos nossa realidade alterada por uma onda de acontecimentos que culminaram numa pandemia que nos obrigou ao recolhimento em nossas casas, a princípio, por um período que não passaria de algumas dúzias de dias. No entanto, essa onda tornou-se uma Tsunami que veio pouco a pouco desmantelando a existência à qual estávamos acostumados e que chamávamos normal. Sentindo-nos presos em casa e perdendo justamente todo o imaginário que construía nossas vidas, não demorou para que os psicanalistas e psiquiatras tivessem suas agendas lotadas por pacientes com crise de ansiedade, depressão e angustia. Sem as festas, encontros, happy hour de sexta-feira, praias e passeios, mas também sem seu trabalho, muitas pessoas começaram a questionar-se: “Quem sou eu sem aquilo que eu chamo de minha vida? ”. A resposta à essa pergunta é que o sentimento de monotonia que surge nesse momento de reclusão liga o sinal de alerta para a falta de sentido daquilo que fazíamos em nosso dia-a-dia. Todas as coisas que fazemos, que a sociedade nos empurra goela abaixo como úteis e necessárias à nossa existência, não passam de uma névoa, um véu de obscuridade que nos desconecta de quem somos. A sensação que temos é que sem os milhares de mensagens trocadas diariamente no celular, sem a academia, escola dos filhos, compras no shopping, barzinhos, festas e reuniões com familiares ou amigos, não somos nada.

Aquilo ao qual chamamos normal ou real, está agora destecendo-se à nossa frente, o consumo, a agenda, nossas rotinas, o trabalho e até mesmo nossa sanidade parece escorrer por entre os dedos e na angustia a incapacidade de segurá-los, não temos controle. Creio que, talvez, a absoluta falta de controle cause-nos mais sofrimento que qualquer outra coisa. Gostamos de pensar que controlamos nossas vidas, que conseguiremos cumprir a agenda minuto a minuto. A convicção em uma permanência que nos traga estabilidade dá-nos a falsa sensação de segurança. No entanto, não só a segurança não existe, como também a estabilidade não é algo fixo, ou seja, não é tão estável assim. A harmonia que tantos pregam e desejam é fruto das diferenças. Não nos damos conta que a Vida¹ é fluxo e este é resultado de movimento, ou instabilidade e de diferenças. Não existe um fenômeno da Terra que não seja resultado de mudança ou inconstância. Quando fui Uchi Deshi² de Kawai Sensei, um médico acupunturista japonês, ouvia-o com frequência dizer, “Não tem saúde, energia toda parada”. Se alimentarmo-nos e não houver fluxo para evacuarmos, em pouco tempo o sistema entra em colapso e adoecemos. Entender e aceitar a impermanência é condição sine qua non para uma vida feliz e sem sofrimento.

Como amigo, irmão e monge Zen Budista, tenho escutado muitas pessoas reclamando e desejando a volta à vida normal que havia antes da pandemia. Isso soa-me muito estranho pois, para mim, o normal de antes de 2020 parece-me “normótico”, uma anomalia e, à vista disso, uma realidade não desejada. Quando vasculho minha mente em busca de lembranças ou notícias do século XIX pra cá, não obstante tenhamos melhorado comparado a séculos anteriores, ainda vejo um cenário de guerras, conflitos, mortes e em muitos lugares um crescimento da intolerância, racismo e violência contra mulheres, minorias e os diferentes. Embora a pandemia seja fruto de um vírus, portanto, algo natural, ela tem o potencial de despertar em nós uma profunda reflexão: o que temos feito de nossas vidas? A primeira medida a tomar é livrarmo-nos do medo. Rebecca Solnit, que escreveu o livro A Paradise Built in Hell, disse que “O pânico da elite se origina em pessoas de poder, que veem toda a humanidade à própria imagem”. Somos educados desde a mais tenra idade a ver o outro como um adversário ou um concorrente e jogos, gincanas, competições esportivas ou culturais vão fortalecendo dia a dia esse delírio de separação que coloca o outro como alguém a ser derrotado antes que ele nos vença e nos roube o emprego, a casa, os amigos ou o companheiro.  Sartre dizia que “O inferno são os outros”, é preciso transgredir essa maneira de pensar para perdermos o medo e relacionarmo-nos de maneira mais aberta e verdadeira; o Budismo dirá à Sartre que “Os outros somos nós”.

Uma vez que tenhamos percebido que o outro não é um inimigo a ser derrotado, o próximo passo é revermos a forma de relacionarmo-nos, não só com as pessoas, mas com todas as formas de vida terráqueas e o próprio planeta, pois essa visão mecanicista de que a natureza é uma fúria selvagem que precisa ser dominada e controlada, coloca-nos em posição de uma entidade a parte, separada da natureza, por conseguinte, sujeita aos seus desmandos e que precisamos a qualquer custo subjuga-la, desmatando, poluindo, perfurando, cercando e construindo barreiras de contenção. Muitas pessoas dizem-me ser impossível viver sem a modernidade, sem os avanços tecnológicos e que estes são impossíveis sem a exploração de recursos naturais. Ora, existe no planeta uma vasta amostra de pessoas que vivem há milênios sem os supostos avanços tecnológicos que tanto aprisionam e escravizam o nosso lado da humanidade. Os povos originários de vários países. Eles vivem suas vidas em perfeita sinergia com o mundo a sua volta, não necessitam de celulares, televisão, carros ou dinheiro. “Se algo é possível para qualquer outro homem”, diria Marco Aurélio, “também é possível para você”.

Podemos considerar esse período de confinamento e afastamento social como um útero, uma gestação. Como um feto na barriga da mãe, estamos há um ano e meio absorvendo informações, sentindo o mundo a nossa volta e temos a oportunidade de um renascimento ainda nessa existência.  Acabar com a visão distorcida de que somos algo a parte da natureza, um ser especial enviado por uma entidade criadora de todo o Cosmos, é imprescindível não só para nossa relação com o planeta, mas com todos os seres, inclusive com a visão que temos de nós mesmos. A Vida, através de um vírus, criou a oportunidade de gestar um novo ser humano, talvez mais compassivo, talvez mais afetivo, talvez mais bondoso e que sobretudo entenda que a vida deva ser cuidada, toda a forma de vida. A Vida está dizendo-nos para esquecermos o antigo normal, o “normótico”, chama-nos a cuidarmos de nossos relacionamentos, olharmos para o planeta sem o véu onírico, despertarmos para empatia, alerta-nos para o quão frágil somos como espécie, de tal maneira que um parasita intracelular microscópico pode levar-nos a morte, e que esta, a morte, ela sim, iguala-nos.

A pandemia é como um portal que se abre, um instante em que tudo para ou parece transcorrer em câmera lenta. Estamos em um estado de suspensão, uma pausa em tudo aquilo que pensávamos ser nossa realidade, uma abertura para ver brotar um novo Sapiens, mas é inescusável sermos rápidos, pois assim como abriu, ele se fechará, num piscar de olhos.

Texto de Monge Chûdô. Monge Zen Budista na comunidade Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

  • Vida, escrita em maiúscula, refere-se à Grande Vida, ao Cosmos, à Natureza, ao Todo, aquilo que continuará depois que os seres de pequena vida tiverem se extinguido.
  • Uchi Deshi, literalmente, Aluno do Lar, diz respeito a um treinamento rigoroso (Shugyô) que passa o aluno junto ao seu Mestre, vivendo com ele em sua casa e trabalhando em troca de seus ensinamentos.

 

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