Sr. K., Mestre Zen: Um Personagem de Bertolt Brecht

 

O Herr Keuner, ou o Sr. Keuner, ou apenas o Sr. K. é, entre dezenas de qualidades possíveis, também um mestre Zen, ou, melhor dizer, quase um mestre Zen. O personagem das pequenas histórias cortantes e paradoxais escritas pelo poeta, dramaturgo e inventor do teatro épico e das famosas peças didáticas o alemão Bertolt Brecht já foi caracterizado como um rabino, um simulacro de Jesus, de Monsieur Teste (personagem de Paul Valéry), de K. do Kafka, de um pensador marxista, ou ainda como um sábio com “traços chineses, imensamente astuto, imensamente reservado, imensamente gentil, imensamente idoso, imensamente capaz de adaptação”, como descreveu Walter Benjamin, conforme nos lembra Vilma Coutinho de Melo no posfácio da edição brasileira das Histórias do sr. Keuner (2006). Nossa hipótese aqui não pretende anular nenhuma dessas outras leituras do Sr. K, ao contrário, compreendendo-o como um personagem-caleidoscópio que incorpora múltiplos atributos, apenas trazemos a possibilidade de ler o personagem e a forma da prosa literária de Brecht por meio do Budismo, em particular do Zen, vislumbrando a força de penetração da tradição budista na criação literária ocidental nos anos iniciais da recente expansão continental. Assim, o Sr. K é quase um mestre Zen na medida em que, em determinados fragmentos literários, aproxima-se da prática e dos ensinamentos do Zen-budismo.

Bertolt Brecht ficou conhecido principalmente pelo teatro épico com suas peças didáticas repletas de gestos e interrupções da representação para a quebra da ilusão teatral, produzindo o efeito de distanciamento e estranhamento dos espectadores para uma participação ativa com questionamentos reveladores das condições sociais da vida. Com esse método, Brecht expôs a ilusão da representação como continuação empática da vida, destruindo o muro entre o palco e os espectadores, entre os personagens e os autores, entre o texto e a representação, entre o teatro e a realidade social, desfazendo as dualidades do teatro tradicional aristotélico que produz o ocultamento das condições sociais, com o efeito de naturalização e internalização passiva pela identificação afetiva dos espectadores com o herói. Brecht também foi amplamente conhecido como poeta, tendo escrito poemas célebres como “O analfabeto político” e “Perguntas de um trabalhador que lê”. O Brecht escritor de prosa literária ficou mais negligenciado. Contudo, as histórias de Sr. Keuner compõem uma forma narrativa singular de contraposição ao romance moderno, e a força da sabedoria Zen-budista sugere ter ajudado nessa construção literária única.

Brecht era fascinado pela cultura oriental de maneira geral. Em particular, admirava os pensadores chineses, conhecidos principalmente pela divulgação produzida por Richard Wilhelm, e gostava bastante do poeta chinês Po Chü-i, conforme assegura o poeta e tradutor da obra premiada Bertold Brecht: Poesia, André Vallias (2019). O Budismo também fisgou a atenção de Brecht, como demonstra seu poema “Parábola de Buda sobre a casa incendiada”, em que já aparece características da tradição Zen-budista que são incorporadas nas histórias do Sr. K, por exemplo, na semelhança das respostas inesperadas e silentes como as dos mestres Zen.

No poema, o próprio Buda Shakyamuni, quando perguntado sobre a natureza do Vazio (Shunyata) ao despertar, responde com um poderoso silêncio, no seguinte trecho:

 

“Como é esse Vazio, mestre? Todos nós queremos

Livrar-nos de toda cobiça, como nos aconselhas, dize-nos porém

Se esse Vazio, no qual então penetraremos

É talvez como o ser-um com tudo criado

(…) Se esse Vazio, portanto

É assim contente, um bom Vazio, ou se esse teu Vazio

É simplesmente um Vazio, frio, nada, sem sentido.

Longamente silenciou o Buda, e disse então displicente:

Nenhuma resposta para vossa pergunta. ”

 

(BRECHT, 2000, p. 171, com pequena modificação tradutória nossa pela substituição da palavra “Nada” por “Vazio”)

 

Em seguida, o poema descreve a parábola da casa incendiada. Esse trecho nos lembra o silêncio demolidor do mítico budista leigo desperto Vimalakirti, quando perguntado qual era sua expressão a respeito da natureza essencial da realidade por Manjushri, o Bodhisattva que enfatizava a experiência direta característica da prática do Zen, o qual reconheceu de imediato, numa transmissão de sabedoria mente a mente, o silêncio de Vimalakirti como expressão do despertar com a seguinte resposta: “Excelente, excelente! Como pode haver uma verdadeira realização da Iluminação se as palavras e o discurso não forem abandonados? ” (SCOTT, 2000, p. 17). Por fim, outro indício de certo conhecimento de Brecht sobre o Zen-Budismo se registra quando, em 1934, no exílio na Dinamarca devido ao nazismo, ele mantém conversas com seu amigo Walter Benjamin sobre o ensaio deste último sobre Kafka. De acordo com Gabriela Santos (2018, p. 116), “o ensaio de Benjamin busca sua ‘essência’ na filosofia oriental, associando-a ao teatro chinês e à filosofia Zen-Budista”.

Escritas durante 30 anos, entre 1926 e 1956, as histórias do Sr. Keuner constituem-se de 102 fragmentos literários tendo como centro narrativo a sabedoria do personagem Herr Keuner. Não há qualquer descrição ou informação biográfica crucial sobre o Sr. K nas histórias, sabemos apenas que ele é “aquele que pensa”. As histórias estão muito mais próximas de aforismos orientais e bíblicos do que dos contos ocidentais. Brecht procurava superar a forma burguesa solitária do romance com alguma novidade formal que dessa conta de certa dimensão coletiva com participação ativa do leitor, algo como uma “narrativa didática” com suas interrupções e quebra de dualidades e ilusões das condições sociais e da vida, no sentido próximo ao seu teatro épico. Essa nos parece ser a estrutura básica da forma narrativa das histórias do Sr. K., sugerindo certa inserção da força da tradição Zen-budista como material possível para a criação literária, especialmente pela tradição direta e oral de transmissão da sabedoria Zen com ênfase na postura da prática, como veremos.

De imediato, a escolha do nome Keuner e a forma das histórias parecem ter sido tomadas do Zen. Vejamos primeiro a questão do nome. Keuner, de um lado, deriva da palavra grega Koinós que pode ser traduzido como “comum”, “público” ou “o que diz respeito a todos” e, de outro, é uma variante da palavra alemã Keiner, que quer dizer “nenhum” ou “ninguém”, conforme Vilma Coutinho de Melo (2006, p. 129). Sabemos que um dos princípios basilares do Zen é justamente o comum no sentido mais forte possível do não-eu, de ser um com tudo, do vazio como a realidade em si que diz respeito a todos. Os monges raspam a cabeça não apenas para lembrarem de rasparem continuamente as delusões, mas também para lembrarem que são efetivamente ninguém com todos. É nesse sentido que Byung-Chul Han (2019, p. 89), em Filosofia do Zen-budismo, coloca a ideia de Ninguém como fundamental para o Zen na medida em que todos os entes têm uma espécie de janela aberta sem limites em que espelha em si todos os outros, assegurando que “O espelho é em si vazio. Ele jejua, não buscar apanhar [appetere] nada. Ele espelha sem interioridade, sem desejo. Se a alma fosse um órgão do desejo, então, ele não teria alma. Ele não seria ninguém. Essa condição de não ser ninguém [Niemandigkeit] faz dele, porém, hospitaleiro frente a todo ente que o procura. Por causa de seu vazio, ele consegue acolher tudo”. Quanto à forma das histórias do Sr. Keuner, elas se caracterizam de pequenos fragmentos que vão direto às questões centrais, na maioria das vezes compondo absurdos e paradoxos, semelhantes às formas dos koans do Zen. Vamos trazer apenas alguns fragmentos das histórias do Sr. K., aqueles que mais se aproximam do Zen, ou que podemos vislumbrar certa penetração da tradição zen-budista, ainda que de maneira implícita e sutil.

O fragmento “O reencontro” é paradigmático da consonância com o Zen: “Um homem que o sr. K. não via há muito o saudou com as palavras: ‘O senhor não mudou nada’. ‘Oh! ’, fez o sr. K., empalidecendo” (BRECHT, 2006, p. 30). Para os leitores apegados ao “eu” como um ente soberano e eterno, pode parecer contraditório o Sr. K. empalidecer porque alguém achou que ele não mudou nada durante tanto tempo, uma vez que para muitos, essa sentença, seria até mesmo um elogio, seja pela questão física ou pelo temperamento. Contudo, a sabedoria do Sr. K se mostra pelo reconhecimento da ilusão dessa constatação na postura e no empalidecer, porque ele sabe que mudou, que é outro, porque reconhece a mudança como princípio da vida, isto é, a marca existencial de impermanência conforme o Budismo.

Os monges Zen têm como prática principal a compaixão. Com a compaixão, a humildade serena se instala no cotidiano. É quase impossível, por exemplo, conhecer algum monge que diga que é um desperto, que já alcançou o Satori. Ao contrário, uma de suas qualidades é justamente reconhecerem sua perfeita imperfeição e do mundo. Dois fragmentos se aproximam desse ensinamento. Primeiro, “O esforço dos melhores”: “Em que está trabalhando? ”, perguntaram ao sr. K. Ele respondeu: “Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro” (BRECHT, 2006, p. 17). Segundo, “O elogio”: “Ao saber que tinha sido elogiado por ex-alunos seus, disse o sr. K.: ‘Depois que os alunos se esqueceram há muito dos erros do mestre, ele ainda se lembra muito bem deles’” (BRECHT, 2006, p. 43).

A compaixão em si pode ser verificada na definição de amor do Sr. K., não colocando em primeiro plano seu “eu” nas relações, mas sempre o outro, como se vê no fragmento “Amor a quem? ”, em que conta a seguinte história: “Dizia-se da atriz Z. que ela tinha se suicidado devido a um amor infeliz. O sr. Keuner disse: “Ela se suicidou por amor a si mesma. De todo modo, ela não pode ter amado X. Senão ela não lhe teria feito isso. Amor é a arte de produzir algo com as capacidades do outro. Isto requer atenção e afeição do outro. Isto sempre se pode obter. O desejo exagerado de ser amado tem pouco a ver com o amor genuíno. O amor a si tem sempre algo suicida”.  (BRECHT, 2006, p. 81). O “amor a si”, como se percebe, é o amor ao “eu” como uma entidade sólida e inerente. Assim, esse amor é suicida na medida em que ele fere a vida e o verdadeiro amor a si, o si enquanto verdadeira natureza de ser um com tudo, de ser com a vida.

Ser um com tudo e com a própria vida no cotidiano, dizem os mestres, é se colocar plenamente no presente, com a atenção receptiva do zazen no dia a dia, sendo simples, direto e prático. Fazendo todas as atividades como um fim em si, isto é, fazendo de todo meio um fim. Há vários relatos no Zen sobre a prática desperta. Por exemplo, certo monge perguntou a seu mestre: “Qual é o significado do Zen? ”, o mestre respondeu: “Você tomou o seu café da manhã? ”, “Sim”, afinal, o mestre respondeu: “Então, lave a sua tigela”. O mestre Zen Umon, por sua vez, quando perguntado sobre a prática cotidiana de acordo com a natureza búdica, respondeu simplesmente: “Quando andar, apenas ande; quando sentar, apenas sente; Acima de tudo, não vacile” (SCOTT, 2000, p. 14-16). Essa experiência diária e direta de fazer dos meios um fim em si aparece de maneira irônica no fragmento “O escravo de seus fins” das histórias do Sr. K., conforme se observa: “O sr. K. fez as seguintes perguntas: ‘Toda manhã meu vizinho ouve música no gramofone. Por que ele ouve música? Porque faz ginástica, eu soube. Por que faz ginástica? Porque precisa ter força, dizem. Para que precisa ter força? Para derrotar seus inimigos na cidade, diz ele. Por que tem que derrotar seus inimigos? Porque quer comer, eu soube’. Depois de saber que seu vizinho ouvia música para fazer ginástica, fazia ginástica para ser forte, queria ser forte para matar seus inimigos, matava seus inimigos para comer, ele fez a sua pergunta; ‘Por que ele come? ’” (BRECHT, 2006, p. 16).

O treinamento Zen e a própria realização do despertar estão extremamente ligados à postura dos monges e praticantes. A meditação zazen requer uma postura firme e relaxa, as atividades rituais pedem uma postura concentrada, e os movimentos de um mestre transmitem a sabedoria pela postura. A postura é o reflexo da postura ou perspectiva mental. De maneira similar, o Sr. K. também ressalta a questão da postura como expressão de sabedoria. No fragmento “Sobre postura”, o Sr. K diz que “A sabedoria é uma consequência da postura. Como ela não é o objetivo da postura, a sabedoria não move ninguém a imitar a postura. Da maneira que eu como, vocês não comerão. Mas se comerem como eu, isso lhes será útil. Eis o que digo: pode ser que a postura faça os atos. Mas vocês têm que organizar a necessidade, para que assim seja. Com frequência percebo, disse o que pensa, que tenho a postura de meu pai. Mas não pratico os atos de meu pai. Porque pratico outros atos? Porque há outras necessidades. Mas vejo que a postura dura mais tempo que a maneira de agir: ela resiste às necessidades. Alguns podem fazer apenas uma coisa, se não querem perder a reputação. Não podendo seguir as necessidades, sucumbem facilmente. Mas quem tem postura pode fazer muitas coisas e não perde a reputação” (BRECHT, 2006, p. 88). A postura, portanto, diz muito sobre as pessoas e sobre a sabedoria. Assim, no fragmento “O que é sábio no sábio é a postura” temos a seguinte história: “Um professor de filosofia foi ao sr. K. e lhe falou de sua sabedoria. Depois de um momento, o sr. K. lhe disse: ‘Você está sentado de modo incômodo, fala de modo incômodo, pensa incomodamente’. O professor de filosofia se irritou e disse: ‘Não era sobre mim que eu queria saber, mas sobre o conteúdo do que falei’. ‘Não tem conteúdo’, disse o senhor K. ‘Vejo que anda grosseiramente, e não há objetivo que alcance ao andar. Você fala obscuramente, e nada esclarece ao falar. Vendo sua postura, não me interessa o seu objetivo’” (BRECHT, 2006, p. 11).

Por fim, o Sr. K., no fragmento “Quando estou em harmonia com as coisas”, aponta curiosamente o que acontece com ele com uma descrição muito próxima do caminho do Zen e do despertar, vejamos: “‘Quando estou em harmonia com as coisas’, disse o sr. Keuner, ‘eu não compreendo as coisas, elas me compreendem’” (BRECHT, 2006, p. 107). O fundador do Zen Soto, mestre Zenji Dogen, deixou-nos um ensinamento sobre a natureza da prática e do despertar que é impossível não lembrar depois de ler esse fragmento do Sr. K. Dogen escreveu: “Aprender o caminho de Buda é aprender sobre si mesmo. Aprender sobre si mesmo é esquecer-se de si mesmo, é estar iluminado por tudo, no mundo. Estar iluminado por tudo é deixar cair o próprio corpo e a própria mente. ” (SCOTT, 2000, p. 22). Assim, parece-nos interessante a possibilidade de ver alguma penetração do Budismo e do Zen na criação literária de Brecht, isto é, da possibilidade de ler o Sr. K. também como uma espécie de mestre Zen.

 

Texto de Thiago Roney. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Referências:

BRECHT, Bertolt. Bertolt Brecht: Poesia. Introdução e tradução de André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.

BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2006.

BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Seleção e tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000.

HAN, Byung-Chul. Filosofia do zen-budismo. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

SANTOS, Gabriela Braga J. Arte e mercadoria em Kafka e Brecht, a partir de Walter Benjamin. São Paulo, 2018. Dissertação de mestrado da FFLCH da USP. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8144/tde-20052019-111151/publico/2018_GabrielaBragaDeJesusSantos_VCorr.pdf> Acesso em: 26 de setembro de 2021.

SCOTT, David. O Livro de Ouro do Zen. David Scott e Tony Doubleday. Tradução de Maria Alda Xavier Leônico. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

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