Servir à vida: a prática do Ecosativa

 

É importante começar este texto mencionando que se trata da experiência de uma praticante, então qualquer interpretação que ainda não contemple a profundidade do Darma, deve ser acolhida como uma tentativa de percorrer o caminho, compreendendo que a caminhada é realizada com os acertos e erros.

Não lembro a primeira vez que escutei o termo Ecosativa, provavelmente foi em algum post do Instagram relacionado a Joanna Macy, eu só sei que essa palavra me capturou. Antes de me envolver com as questões ambientais e o Darma, eu participei de alguns movimentos sociais na época da universidade, quando cursava a graduação em Direito. Eu tive a oportunidade de conhecer assentamentos do MST, militei no movimento feminista e estudantil. Mas sentia que minha motivação ainda era muito turva, eu não conhecia muito meu mundo interno, por isso acabei me desvinculando dos movimentos sociais.

Um tempo depois, graças as conexões misteriosas da vida, eu tive a sorte de ganhar num sorteio do facebook, um livro do Lama Padma Samten, Meditando a vida. Apesar de não ter dado a devido importância àquela primeira leitura, a conexão se estabeleceu. Naquela época eu morava em Vitória da Conquista, na Bahia, e não conhecia nenhum centro de Darma. Um tempo depois, após uma experiência de sofrimento agudo, meus caminhos me levaram a Salvador, cheguei na cidade disposta a procurar centros de Darma e acabei encontrando o CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodstatva). Quando sentei na sede antiga do CEBB, no bairro dos Barris, eu me deparei com a imagem do livro que tinha ganhado no sorteio do Facebook, e logo pensei: “é aqui que eu vou ficar por um tempo”.

A parir desse encontro, fui me aproximando dos ensinamentos do Lama, descobrindo seu engajamento com as questões ambientais. Nos anos 70, ele teve um papel fundamental contra a implantação de centrais nucleares, ou melhor, a favor da vida. Na época, como professor da UFRGS, junto com outras pessoas da comunidade científica escreveram textos, participaram de fóruns sobre o tema, até que o deputado Carlos Augusto de Souza fez uma emenda proibindo a construção de usinas nucleares no Estado do Rio Grande do Sul[1]. Saber disso de alguma forma me tocou, vi a possibilidade de alinhar a prática espiritual ao engajamento no mundo. Segui praticando com essa motivação, até que num Retiro no CEBB Caminho do Meio, em Viamão -RS, no ano de 2019, eu escutei Lia Beltrão (aluna do Lama) falar sobre o TQR – (Trabalho Que Reconecta), metodologia criada por Joanna Macy.  Eu fiquei encantada com a experiência de Lia, uma visão de vida mais ampla saía das palavras dela e tocava as águas que conectam todos os seres, eu me vi chorando enquanto escutava Lia falar. Depois disso, eu fui me aproximando dos ensinamentos de Joanna Macy, participei de uma oficina sobre o TQR em Salvador e agora estou participando da comunidade de aprendizado do TQR online, onde estamos estudando um livro publicado por Joanna Macy e Molly Brown, “Nossa vida como Gaia”.

A visão sobre a vida que se abriu a partir desses encontros me fez refletir sobre o caminho do Bodsatva. No início, eu escutava muito de outros praticantes da nossa intenção de beneficiar os seres, e na minha cabeça isso se resumia apenas aos seres humanos. Mas sabemos que a vida é muito mais ampla que a vida humana, nossa existência humana pode ser concebida como uma célula de um grande sistema vivo. Por isso, não adianta beneficiar apenas a vida humana, mas sim a vida dos rios, do solo, do ar… Enfim, beneficiar toda a vida que nos atravessa. Como bem menciona David Loy (2018), no seu livro Ecodarma, respondendo os dilemas da crise climática que estamos enfrentando, ele afirma: “a natureza avisa que deixar de cuidar do planeta significa que não estamos cuidando de nós mesmos” (p. 14). O Lama Padma Samten sempre ensina que o eixo das práticas no Budismo é visão, meditação e ação. A visão estaria ligada a maneira que enxergamos a realidade: quando nossa visão se amplia, consequentemente, nossa ação no mundo também muda.

De modo geral, nossa visão sobre a vida ainda é muito estreita, falamos muito sobre a “minha vida”, de uma forma muito pessoal. Por isso, eu acredito que o primeiro aspecto seria trabalhar essa visão em relação à natureza. Segundo a ecofeminista Vandana Shiva[2], “todas as emergências estão enraizadas em uma visão de mundo mecanicista, militarista, antropocêntrica, de humanos como separados e superiores a outros seres que podemos possuir, manipular e controlar.”  Logo, a crise ecológica resulta da nossa falta de visão, nosso senso de separação em relação à vida na terra. Diante dessas questões climáticas que assolam a existência da vida humana, já que a vida, no sentindo mais amplo, tem capacidade de se organizar à revelia dos humanos, Joanna Macy desenvolve uma metodologia que nos ajuda a ampliar a visão e evitar o sofrimento de nossa espécie e tantas outras que estamos colocando em risco.

No livro, “Nossa vida como Gaia”, as autoras nos apontam “a necessidade de ver a si mesmos e aos outros como interconectados e mutuamente energizantes” (p.12). O TQR nos oferece um caminho espiral com visões e práticas que nos ajudam na criação de uma sociedade que promove e sustenta a vida. Na oficina que participei, eu compreendi que começamos com a gratidão pelo solo fértil que nos sustenta, pela vida interdependente que pulsa e atravessa todas as manifestações. Amparadas nesse solo de gratidão, nós podemos sentir e honrar nossa dor pelo mundo, olhar essa dor com novos olhos e sonhar coletivamente outras formas de se relacionar com a vida na terra. A partir desse olhar inclusivo, pontes entre os saberes podem ser construídas e muros podem ser desconstruídos. Com essa visão, podemos caminhar todos os dias na direção dos sonhos, plantando sementes em todas as direções, mas sem expectativa no desenlace, apenas seguimos adiante. Mesmo sem garantias nos resultados da Grande Virada, termo cunhado por Jonna Macy para apontar soluções criativas que podem transformar a sociedade de crescimento industrial para uma sociedade que sustenta e celebra a vida, seguimos com todas as incertezas, pois mais importante que sustentar esperança no sucesso, é manter uma equanimidade no caminho e servir à vida, assim como ela nos serve.

Para Joanna Macy e Molly Brow (2022), servir à vida por meio das ações da Grande Virada inclui três áreas que se fortalecem simultaneamente: ações para deter os danos da terra; análise e transformação da nossa vida comum; e uma mudança fundamental na visão de mundo e nos valores. Dessa forma, o Trabalho Que Reconecta busca oferecer para as pessoas uma metodologia que contribua para que possamos contemplar e experienciar a conexão com a teia da vida. A conexão com a teia da vida nunca se perdeu, mas por não enxergarmos essa conexão, acabamos agindo numa perspectiva de separação.

Para viver em conformidade com essa visão ampla, que poderíamos definir como sabedoria, precisamos agir com compaixão, mas sabemos que por conta dos nossos hábitos enraizados numa estrutura capitalista, nossa visão se estreita muito fácil. Então, para cultivarmos o hábito de servir a vida todos os dias, e deixar que a sabedoria nos toque diariamente, podemos adotar a prática do silêncio, fazendo algumas pausas durante as nossas ações, criando espaços para que possamos soltar velhas formas de ser. Para finalizar este texto, deixo aqui os votos da(o) Ecosatva[3] como um lembrete para que possamos despertar do nosso sono autocentrado:

 

JURO PARA MIM MESMO e para cada um de vocês:

Comprometer-me diariamente com a cura de nosso mundo

e o bem-estar de todos os seres.

 

Viver na terra com mais leveza e menos violência

Em termos de comida, produtos e energia que consumo.

 

Obter força e orientação da Terra Viva,

De nossos ancestrais, das gerações futuras,

e de meus irmãos e irmãs de todas as espécies.

 

Apoiar outros em nosso trabalho em prol do mundo

e pedir ajuda quando eu precisar

 

Seguir uma prática diária

que clarifique minha mente, fortaleça meu coração,

e me apoie no cumprimento desses votos.

 

Texto de Thainá Soares. Praticante do CEBB de Salvador.

 

 

REFERÊNCIAS:

LOY, David. Ecodarma: ensinamentos budistas para a urgência ecológica. BAMBUAL Editora, 2018.

MACY, Joanna; BROWN, Molly. Nossa Vida como Gaia: visões e práticas para assumir nosso papel na criação de uma sociedade que promove e sustenta a vida.

[1] Mais informações: https://cebb.org.br/lama-padma-samten-na-zero-hora/

[2] https://navdanyainternational.org/pt-br/cause/um-planeta-uma-saude/

[3] Do livro Esperança Ativa: como encarar o caos em que vivemos sem enlouquecer, de Joanna Macy e Chris Johnstone, Bambual Editora, 2020.

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