Minha memória, sem os seus apoios, já não é memorável: então não me lembro muito bem de como conheci o Sensei Genshô e o que, logo em breve, viria a ser a Daissen. Uma palestra pública, pequena, final de tarde, talvez, em Florianópolis; fui, não estando desinformado sobre o assunto. Tinha feito há anos os meus questionamentos e pesquisas solitárias; li aqui e ali o que poderia ter lido. Sentei e pratiquei, sozinho ou não, de outras formas ou mesmo, quem sabe, o que naquela época achava que era o shikantaza. Queria mesmo mais saber quem eram aquelas pessoas e o que elas faziam para se autoentitularem Comunidade Zen-Budista. Sim; praticavam meditação sentada, o zazen. Sim, eu poderia ir, mesmo sem ter praticado antes; e fui.
Como dizer que, desde jovem me interesso por certas coisas? Meditação, misticismo, “estados alterados de consciência”, a inefabilidade e os limites da linguagem… Nunca me deixei levar o suficiente, porém, por nenhum caminho dito “espiritual” até então. Não fugi da religião de criação da minha família – cristão católico – a ponto de passar pela catequese e pela crisma: lembrança forte da primeira é a da catequista trazendo, semanalmente, salgadinhos muito gostosos para um grupo de crianças desinteressadas. A crisma não tinha os salgadinhos; porém era legal conhecer o resto da molecada. o, porém, já sabia que tudo isso era mais questão de respeito e de carinho com meus familiares, especialmente com meus avós, do que uma questão pessoal.
Neste aspecto, religião nunca foi um problema muito presente. Não sei se fui atrás do budismo por ou para uma busca religiosa. Com algumas questões na cabeça, com certeza, como continuam a aparecer até hoje. Só estava, como sempre, muito curioso, e com vontade de saber mais. Vai que fosse e gostasse. Vai que. Era como se algumas pequenas correntes fluíssem para o mesmo lugar.
Me chamou a atenção desde o começo a simplicidade. Havia e há a formalidade, claro; quem entra num zendô a conhece muito bem. Mas, por mais simples que possa ser a formalidade – no sentido de haver uma forma, uma imagem – a ser vista e seguida, a simplicidade pegou de surpresa: simplesmente sentar. Cada um de nós se voltava para a parede branca, aparentemente “separados”, embora lado a lado; só-sentar. Tão simples, tão difícil! Porém nesse momento, de alguma forma, tive a certeza profunda de que, apesar dos pesares, era “isso mesmo”. Sei que não consigo me expressar bem aqui.
Ufa! Tendo sentado desse modo, então, nada muito surpreendente que, desde o começo, me senti muito acolhido pelos outros praticantes, que naquela época não eram tantos quanto o são hoje. Dá para contar com as duas mãos, no máximo. Lembro praticamente de cor de todos; e de alegria das alegrias! Muitos continuam conosco. Alguns já se foram. Outros botaram o focinho para dentro, cheiraram, e foram buscar outro lugar. Outros, como eu, ficavam certas épocas em um ir e vir constante, aceito sem comentários e recriminações. Ouvia algumas vezes a orientação, no decorrer do tempo: “na dúvida, sente, veja os outros, e faça do mesmo jeito”, dita como um corte, se assentando lentamente na minha cabeça teimosa.
Ter começado a praticar com a Daissen numa época em que a comunidade era consideravelmente menor do que hoje, tem as suas curiosidades. A prática não era mais simples com menos gente. Um exemplo? Sensei Genshô era mais generoso no uso do kyôsaku, o “bastão da compaixão” – pelo menos é o que dizem as lembranças dos meus primeiros sesshin. Do mesmo modo de como pude ver, falar e conhecer, sem muitos avisos ou detalhes prévios, gente que não fazia tanta ideia de quem eram essas pessoas, e do quanto elas foram e são de interesse e importância para o Zen no geral, no Brasil; para as suas comunidades e para a sangha. De como tive a incrível oportunidade de estar perto de tais “luminares” sem sequer saber direito de quem se tratavam – e de que talvez tenha sido muito melhor assim!
Muitos detalhes e camadas vieram com o tempo, claro, assim como o ir e vir das ondas do mar trazendo – e levando – camadas de areia; com as viagens dos praticantes para outros lugares e sanghas, e das visitas de outros para praticar conosco. As visões e oportunidades para a Daissen se ampliaram com cada passo. É evidente que a Daissen de hoje é maior e mais eficiente, de acordo com vários critérios; com mais comunidades e mais pessoas, com muito mais gente dando o seu melhor, audaciosamente indo e levando a prática onde não muitos sentaram antes.
Neste aspecto, por exemplo, foi refrescante ver a forma com a qual a Daissen lidou com a pandemia atual, desde o seu começo. Muitos grupos e negócios fecharam as portas; pude ver, na clínica, um pouco o peso dos últimos anos. Esse momento, meio obscuro no qual o melhor curso de ação não era tão claro – e que poderia levar ao mesmo buraco na prática da Daissen – foi usado quase como um trampolim, com a prática on-line e com todos os recursos parecidos; não somente mantendo o mesmo ritmo de encontros e o mesmo número de praticantes, mas crescendo, ouso dizer, de forma exponencial. Aqui, nada mais a fazer do que parabenizar o caminho da Daissen como um todo.
Eu mesmo fiquei chateado em ter de interromper, por excelentes razões pandêmicas, o “dia dos iniciantes” na Daissen Ji. Gosto muito de sentar com, e poder ajudar, aqueles que estão vindo em suas primeiras visitas, que estão sentando em zazen pela primeira vez. Pessoalmente, também, esse tipo de prática sempre foi muito importante – e o que sinto que posso fazer de melhor para a Daissen. Como se pudesse, de alguma forma, compartilhar com outros desse “primeiro” momento que nunca existiu; desse momento que se perpetua a cada momento. Para aquela primeira vez em zazen da qual nem me lembro mais direito. Só agora, 15 anos depois, sento pela primeira vez. Estou falando besteira? Se for, que seja das boas!
Sentar e estar com a sangha é a sua vida estar enraizada e entrelaçada de tal modo que este entrelaçamento até te pega desprevenido, muitas e muitas vezes. Há vários momentos em que a vontade é se afastar da prática e da sangha e, sem querer, algo te segura de leve. Para se aproximar, algo parecido também acontece: os caminhos visíveis, os portões entreabertos. Há outros momentos em que você escuta palavras de agradecimento de alguém por algo muito importante, sendo que esse algo nem mesmo tinha passado pela sua cabeça – você nem mesmo se lembrava. E nem fazia ideia do quão importante tinha sido aquilo. É aqui, então, que não consigo dizer o quanto a Daissen está presente em meus pensamentos, minhas palavras, meus atos; e que me reverencio profundamente perante todos.
Texto de Lucas Seigaku, praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.