Budismo Hoje entrevista a arquiteta Carol Lefèvre (nome de Dharma Engetsu Genki) para conhecer melhor uma estratégia interessante de difundir o Dharma: o desenho. Ela é formada em arquitetura na FAUUSP e trabalha com design gráfico e ilustração. Iniciou a prática do Zen em 2006, quando conheceu a monja Coen no retiro de Zen e Yoga no interior de São Paulo. Começou a praticar no Zendô Brasil e recebeu preceitos de Coen Roshi em 2009. Foi quando recebeu o nome Engetsu (En – completa ou redonda; e getsu – Lua).
Em 2013 saiu do Brasil para praticar o zen-budismo e viajar pelos Estados Unidos, México e América Central. Inicialmente visitou diversos zen centers. Nos Estados Unidos visitou o Zen Center de Los Angeles, Yokoji Zen Mountain Center (perto de Palm Spreings), Sweetwater Zen Center (São Diego), Zen Center de São Francisco, visitando tanto Green Gulch quanto o City Center, Zen Mountain Monastery e Fire Lotus Temple (NY).
No Zen Center de São Francisco morou no City Center por um ano entre 2014 e 2015, dois anos em Tassajara, no Zen Center Mosteiro localizado nas montanhas do Big Sur, entre 2016 e 2018 e novamente no City Center entre 2018 e 2019.
Durante o período em residência em Tassajara fez parte do Doan Ryo, aprendendo os instrumentos e treinando as diversas posições nas cerimônias de zazen e oryoki. Em São Francisco foi ino, do final de 2018 e 2019, sendo responsável por organizar as cerimônias, os retiros, treinar as pessoas no doan ryo.
Em Tassajara, durante a Guest Season (Temporada de Convidados, numa tradução livre), foi chefe da equipe de jantar formada por um grupo de 14 pessoas. Em Tassajara, a Guest Season é uma oportunidade de trazer a prática para o trabalho do dia a dia e compartilhar tanto para pessoas que vão para lá para conhecer o zen, quanto para os hóspedes. Em janeiro de 2020 recebeu novamente os preceitos leigos do seu professor americano Rinso Ed Sattizahn, mantendo o Engetsu, e complementando com Genki, Gen – revelar Ki – alegria.
Em 2020 veio para o Brasil e acabou ficando no país por causa da pandemia. Em 2022 começou a praticar com a Sanga do Via Zen de Porto Alegre e esteve por dois meses na Montanha do Grande Buda em Viamão onde pôde dar apoio nos sesshins e cerimônias e também organizou um retiro de Zen e desenho. E desde que iniciou a sua prática zen sentiu uma conexão entre a prática do Zen com a atenção desenvolvida ao desenhar e começou a organizar encontros de Zen e desenho.
Em 2009 organizou um zazenkai de zen e desenho no zendo Brasil e desde então tem organizado encontros na cidade de zen e desenho. Em São Paulo, foram encontros na Praça do Pôr do Sol, no minhocão, na av Paulista e no largo da Batata. Em 2022 organizou o retiro presencial de Zen e Desenho no Via Zen em Viamão e criou a primeira jornada Zen deZenho online. Agora em fevereiro 2023 aconteceu a “Caminhada Zen deZenho” no centro de São Paulo.
Budismo Hoje: Carol, desde 2009 você organiza zazenkais zen-desenhos. De onde surgiu a inspiração?
Carol: A inspiração inicial veio da minha própria experiência ao sentar zazen pela primeira vez. Eu conheci o zazen num retiro de zen e yoga em 2006 e desde a primeira vez que eu sentei, eu senti que o estado corpo-mente que eu entrava no zazen tinha muito a ver com como eu me sentia quando desenhava, principalmente certos exercícios de desenho de um curso de como desenhar com o lado direito do cérebro. Foi como que eu estivesse re-conhecendo uma experiência. Ai, no Zendo Brasil eu primeiro comecei a me reunir com amigas para fazer zazen e desenhar. E eu pensava que essa conexão do zazen e do desenho não deveria ser uma coisa “minha”, mas uma possibilidade humana, que todos poderiam sentir isso também. E dai veio a vontade de organizar esses eventos para mais pessoas e de fato, os feedbacks foram sempre muito positivos.
Budismo Hoje: Quais benefícios práticos você percebe nas pessoas que caminham, meditam e desenham?
Carol: Acho que os benefícios práticos são todos que envolvem a pessoa estar mais presente e atenta no seu dia-a-dia. Na meditação nós começamos a observar o nosso corpo e os nossos pensamentos, no lugar de acreditar nos pensamentos. No desenho, o aprendizado é sobre olhar e ver como as coisas são realmente. Deixar o que a gente pensa que deve ser e focar no que nós realmente estamos vendo. Quando você desenha uma árvore, você realmente olha para ela, como os seus galhos, como que as linhas acontecem, as cores mudam no tronco, as linhas das folhas. Esse olhar traz presença. E o caminhar também nos ajuda a estar em contato com as coisas. As pessoas, o nosso corpo que vai mudando também conforme a gente caminha.
Budismo Hoje: Sua iniciativa vem reverberando de forma bastante positiva, inclusive recentemente esta ação foi destaque na Folha de São Paulo. Percebeu, neste método, um meio hábil para difundir o Dharma?
Carol: Sim, e tanto pela prática quanto pelos ensinamentos. Eu percebo que unir o zazen com o desenho possibilita que pessoas que não entrariam numa sala de zazen venham praticar. E, muitas vezes, depois de um zen desenho começam a fazer zazen com regularidade. E, o desenhar ajuda a entender de uma maneira muito prática, até corporal vários ensinamentos. Vou citar aqui em minhas palavras o ensinamento do mestre Dogen no Genjokoan que tem muito a ver com o processo do desenho, de que quando a gente tenta impor a nossa visão ao mundo é delusão e que quando a gente se deixar tocar por todas as coisas é iluminação. No desenho, quando a gente força muito, a gente percebe que ele não acontece, mas quando a gente se deixa tocar pelas formas, pelas coisas, a gente experimenta realmente ser um com o que está a nossa volta.
Budismo Hoje: Como o zen impacta na sua vida profissional, como design e ilustradora?
Carol: Quando eu comecei a praticar em 2006, eu senti que me reconectei mais com o desenho. Além disso, os sutras me inspiravam, eles tem muitas imagens… Naquela época eu também comecei a contribuir com o jornal do Zendo Brasil, eu apreciava a busca e criação das imagens para os assuntos do jornal. E também a atenção e a presença que a gente desenvolve com o zen vão penetrando todas as áreas da nossa vida e no caso de design e da ilustração, a prática ajuda na presença e também na consciência no processo. Muitas vezes ter que criar um design, ter uma ideia para uma ilustração é um processo “doloroso”, vem insegurança, autocrítica, muitas coisas. E o zen ajuda a atravessar esses estados com atenção e curiosidade. E também com a percepção de que vai passar. Então o zen também ajuda nesses “altos e baixos”do processo criativo.
Budismo Hoje: Seu nome de Dharma, Engetsu Genki, norteia suas ações, de certa forma?
Carol: Engetsu eu recebi da Monja Coen, En é completo ou redondo e Getsu é lua. Esse nome sempre me pareceu um Koan, até hoje sinto ele meio misterioso. Eu me lembro ao explicar o nome na cerimônia de preceitos, ela disse que era como a lua que reflete a luz do sol. Que o sol eram os ensinamentos budistas. Eu sempre gostei muito de compartilhar o Darma, acho que esse é o reflexo da luz do sol. Eu fui monitora para os iniciantes no Zendo Brasil e em São Francisco eu tive a função de Ino e tinha que receber e orientar as pessoas para os sesshins e treinar os residentes do ZC nos instrumentos.
Genki eu recebi do meu professor americano Rinzo, Ed Sattizhan. Gen é de revelar, investigar e Ki de alegria. Eu percebo esse nome como um espelho de características minhas. O Gen para mim traz esse aspecto de curiosidade, de ir a diferentes lugares, gostar de me colocar em situações novas. E o Ki, é de uma alegria compartilhada, que eu sinto que se conecta com essa característica de compartilhar o Darma. Eu gosto como fica em inglês: Complete Moon Reveal Joy
Budismo Hoje: Você viveu em vários monastérios zen nos EUA, nos últimos anos, além de ter ação profícua no Via Zen, no Rio Grande do Sul. De que forma toda esta experiência impacta a sua vida leiga e profissional?
Carol: Quando eu sai do Brasil em 2013 eu não sabia exatamente o que iria acontecer, eu sentia que era uma oportunidade de vida que eu não poderia desperdiçar, já que eu tinha todas as condições para fazer isso. Nunca pensei como um “sabático”, era apenas eu vivendo a minha vida. E à partir daí as oportunidades foram surgindo. Eu descobri que era totalmente possível viver dessa maneira, parte viajando e parte vivendo em zen centers, parte no Brasil. Tem seus desafios e os seus momentos críticos, mas é possível.
Do ponto de vista profissional teve um impacto de duas maneiras, eu tive todo um desenvolvimento dentro do zen center em áreas diferentes do que eu trabalhava antes. Em Tassajara eu fui chefe da equipe do ‘dining room’, Tassajara de abril até setembro funciona como um ‘resort’, com águas termais, trilhas e uma série de retiros. A função dos praticantes é cuidar para que as coisas aconteçam, tem a equipe da cozinha, a do ‘dining room’ que serve as refeições para os hóspedes, a equipe da casa de banho, do escritório e da jardinagem. Eu coordenava uma equipe que variava ao longo dos meses e chegou a ter 14 pessoas. Também foi um treino de escuta, porque as pessoas muitas vezes têm necessidades próprias e é importante saber ouvir. A dinâmica toda era muito diferente do universo de um escritório de Design Gráfico onde a maior parte das vezes estamos na frente do computador resolvendo um problema que depende de nós. Também acontecem interações num escritório de design, claro, mas é muito diferente de quando a comunicação é um dos atributos primeiros do trabalho. Também a experiência de ter feito parte do Doan Ryo (o grupo que organiza e faz as funções nas cerimônias) e ter sido Ino “head” da sala se meditação, onde eu organizava os sesshins, as cerimônias e também treinava as pessoas nas funções do templo. Também muita comunicação, treino em dar feedback para as pessoas. Então, por um lado eu me desenvolvi em aspectos bem diferentes do que a minha profissão de designer.
Por outro lado, eu ter passado tanto tempo fora do mercado de trabalho de design, fez com que eu diminuísse os meus contatos na área. No começo eu consegui manter alguns trabalhos à distância de design e de ilustração, mas quando eu fui morar em Tassajara, onde a gente praticamente não tinha internet, aí foi mais difícil. Eu estava no Brasil quando a pandemia começou, tinha vindo para passar 3 meses e acabei tendo que ficar. Foi um desafio porque eu primeiro achava que ia voltar e quando percebi que não ia dar tive que fazer um esforço para me reconectar com pessoas na área de design e demorou para eu conseguir ter trabalho.
Agora o que eu estou fazendo é focando em criar cursos e jornadas online trazendo o Zen e o desenho. No ano passado fiz a primeira “Jornada Zen deZenho” e agora estou fazendo uma segunda jornada, “Zen na Vida”. Quero poder contribuir com as minhas experiências, especialmente para as pessoas que ainda não estão prontas para entrar num templo zen e também criar uma maneira de sustentar a minha maneira de viver.
Para saber o que está rolando, é só me seguir no instagram @carol.engetsu.zen
Budismo Hoje: Carol, qual a mensagem que você deixa para nossos leitores, sobretudo aqueles que se interessam pela interface entre o zen e a arte ou a ludicidade?
Carol: A minha mensagem é façam, experimentem! Para mim o Zen é, acima de tudo, como nós vivemos a nossa vida, como estamos presentem com tudo o que existe dentro e fora de nós e como tomamos atitudes que beneficiem ao maior número de seres (incluindo nós mesmos). Acredito que o mundo precisa de mais arte, mais ludicidade, mais criatividade, mais sonho. E que o que criamos pode vir desse lugar de silêncio que o zazen nos proporciona. E também o próprio fazer artístico, seja o desenho, a música, a dança, a interpretação podem ser também um zazen expandido, uma prática de presença. Veio-me a imagem que o Krenak colocou no livro “Ideias para adiar o fim do mundo” de saltar em paraquedas coloridos, e eu acredito nisso, precisamos nos dar mais o direito de brincar, de poder errar, criar vem de poder experimentar, e quando essa criação vem desse lugar mais profundo, conectado, tem muita potência, então, de novo, FAÇAM!!!
Entrevista realizado por Sonielson Kidô. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.