Sangha: Lugar de Harmonia e Transformação

 

“Se deseja ir rápido, vá sozinho. Se deseja ir longe, vá acompanhado”.

Provérbio africano

 A espécie humana tem apenas algumas centenas de milhares de anos e desde muito cedo tivemos que nos associar a outros seres humanos, mas a vida em grupo não é somente uma experiência humana, muitos animais vivem em bandos e algumas destas sociedades, como a dos insetos, são muito complexas. Para esses animais, assim como para nós humanos, se associar a outros grupos é uma maneira eficaz de manter a sobrevivência. Porém, com o processo de urbanização que passa a ocorrer a partir do século XVIII e a consequente sensação de segurança que o ambiente controlado nos sugere, a pergunta que fica é se isso ainda é necessário? Ainda temos a necessidade de pertencer a um grupo? Para muitos especialistas em comportamento a resposta é: sim; sobretudo nesse momento que vivemos.

Muitas práticas religiosas procuraram – e ainda o fazem – reunir seus membros em comunidades. Segundo Zygmunt Bauman a palavra comunidade nos remete a algo bom, uma sensação de aconchego, um local onde nos sentimos seguros, um lugar onde podemos descansar e refletir. Para Bauman a comunidade é um campo de possibilidade para a afirmação de uma identidade e da autoafirmação do indivíduo em conviver entre seus iguais.

Quando uma pessoa resolve tornar-se “oficialmente” um budista, uma das etapas da cerimônia é o refúgio nas três Joias, o Buda, o Dharma e a Sangha. Sangha é a comunidade. Tomar refúgio na Sangha significa unir-se aos companheiros de prática, compartilhando alegrias e tristezas, se fortalecendo e tornando-se Uno no caminho. A própria palavra companheiro tem um forte significado de união, na Idade Média a tripulação dos barcos se chamava “companha” que deriva do Latim “Cum” que significa “com” + “Panis” que é “pão”. Literalmente companheiro é alguém com quem se reparte o pão, alguém com quem se anda junto. Este conceito de companheirismo está quase em oposição ao momento em que vivemos, a chamada pós modernidade. Passados alguns meses após o início da pandemia, alguns psicólogos e sociólogos diziam que as pessoas haviam de tornado mais empáticas e compassivas com o sofrimento do outro. Que a morte, sempre nossa companheira mais íntima, havia exposto nossa fragilidade e que isso nos havia tornado mais humanos e próximos uns dos outros. Porém, bastou um único dia de paralização dos caminhoneiros, para que as pessoas se esquecessem dos outros e corressem para os postos para encher os tanques de seus carros e um movimento, embora pequeno, ocorreu também em relação aos mercados, assim como no início da pandemia.

Em tempos de relações fluídas a ideia de não engajamento, ou de um comprometimento que permita uma mudança rápida, caso a relação não seja mais vantajosa, é cada vez mais frequente. Como consequência vamos experienciando momentos de fragmentação que nos dão constantemente a sensação de fracasso. A partir dos anos 60 e 70 aconteceram alguns movimentos que enfraqueceram as instituições que foram importantes para a construção de nossa identidade. As crenças religiosas, a família e a escola. Com o aumento da valorização da competitividade o indivíduo perdeu suas referências externas e passou a conviver numa sociedade onde tudo é permitido. Esse processo de individualização traz responsabilidade total sobre nossos atos, mas segundo Sartre, vem acompanhado de angústia e desconforto. A mudança da sociedade de produção para a sociedade do consumo mudou o foco das pessoas para o imediatismo, hedonismo e a individualização, e isso passou a relacionar o consumo com felicidade.

Para o buscador espiritual que também faz parte desse contexto social líquido onde não existem certezas e a informação muda na velocidade de um clique, encontrar um lugar que o sustente em sua investigação é crucial. A Sangha Budista é hoje muito diferente da Sangha Monástica dos tempos de Buda e é exatamente essa diferença que pode nos propiciar uma prática mais forte.  No Zen a Sangha é formada por praticantes monges, monjas, leigas e leigos, e isso é bastante acolhedor para aqueles que desejam conhecer o Dharma de Buda sem se comprometer com a vida monástica, pois hoje os leigos não apenas sustentam a Sangha, eles participam de todas as atividades dos monges como zazen, samu e cerimônias. Muito além dos ensinamentos sobre o Buda e o Dharma, a Sangha promove o encontro com outros praticantes que estejam no mesmo caminho. É muito comum escutarmos relatos de pessoas que dizem não conseguir ter disciplina em sua pratica pessoal em casa, sozinhos, e que quando em comunidades, seus companheiros os apoiam. O símbolo da Sôtô Shu, uma folha de pinheiro, é muito emblemático, pois o pinheiro que cresce afastado de outros pinheiros invariavelmente cresce torto, enquanto o que cresce em meio a floresta de pinheiros cresce reto, apoiando-se uns nos outros.

O mestre vietnamita Thich Nhat Hanh diz que Sanghakaya, o corpo da Sangha, é nosso próprio corpo e tomar refúgio na Sangha é viver como um tecido no organismo vivo que é a Sangha. Isso não é um ato de fé, mas sim a própria prática. Como escrevi no começo, algumas comunidades de insetos são incrivelmente complexas e uma abelha operária, por exemplo, vive em média um mês. Porém fora de sua colmeia ela sobrevive por algumas horas, talvez um dia. Na colmeia ela possui objetivos específicos como colher néctar e nutrir as larvas. Não sobra tempo para levantes, revoltas ou brigas com outras operarias.  Ela vive pelo bem de sua comunidade e de suas companheiras. A colmeia é o corpo da abelha, assim como a Sangha é nosso corpo. O que os insetos nos ensinam é que viver numa dimensão maior que a pessoal é possível.

Nossa geração foi moldada em uma sociedade individualista, desigual, de educação precária, e de altos índices de violência urbana, fatores agora somados a incertezas, medo de contaminação, isolamento social e ruptura das rotinas provocadas pela pandemia nos colocam numa situação de solidão e medo. Como praticantes budistas e membros de alguma Sangha temos a oportunidade de realizar o entendimento de que nossos atos, quaisquer que sejam, influenciam o Todo, não existe no Cosmos um único grão de areia fora do lugar. Precisamos mudar o conceito errôneo de que minha liberdade termina onde começa a do outro, minha liberdade termina onde termina a do outro. Nesse sentido não posso ser livre enquanto houver em qualquer canto da Terra qualquer tipo de dominação ou controle. Não posso ser feliz se existe no planeta alguém passando fome. Não sou saudável onde existe qualquer tipo de doença. Como disse Jidu Krishnamurti “Não é medida de saúde estar bem ajustado a uma sociedade profundamente doente”.

Frequentando uma Sangha, estudando o Dharma de Buda, nos apoiando, buscando o esclarecimento e a sabedoria podemos transpor os obstáculos, sejam eles reais ou construídos, que nos obscurecem a visão de uma existência integral. Devemos nos esforçar não somente para praticar, mas também para manter a Sangha contribuindo de alguma maneira para sua preservação e até mesmo expansão, pois muitos podem ser os beneficiados. Em tempos de pandemia se evidenciou ainda mais o conceito já antigo de que um Dôjô ou uma Sangha não são somente os espaços físicos, mas são formados por pessoas e estas se fazem através de suas relações. Somos feitos de encontros e vamos nos estruturando na jornada. Ninguém nasce pronto e vai se gastando, isso acontece com coisas, com objetos. Pessoas nascem não prontas e vão se construindo. Portanto, não sou minha versão mais velha, isso era quando tinha 15 ou 16 anos. Sou uma versão mais nova de mim mesmo, renovada pelas experiências e trocas com cada cenário que encontrei no caminho, e parte importante desse passeio foi vivido na Sangha. Pertencer a uma Sangha nos faz membros de uma grande família, faz de todos os praticantes nossos irmãos e irmãs, e para que a Sangha seja um local de transformação se faz necessário que na Comunidade impere o espírito de harmonia, compaixão e equanimidade. Esse deve ser nosso maior propósito como praticantes Zen Budistas.

 

Texto de Monge Chudô, Monge zen budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

Bibliografia:

Bauman, Z. Vida Líquida, Austral:Paidos, 2015

http://www.nossacasa.net/shunya/tomando-refugio-na-sangha/

 

 

 

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