Todo ser humano tem momentos de fraqueza. Aqueles momentos em que nosso ego fala mais alto e nos paralisa diante de algo que parece muito maior ou muito menor do que nós. Pode ser que esse algo seja um sentimento, um desafio, um obstáculo… A ilusão de que somos separados do restante das coisas é capaz de nos aprisionar, nos fazer sentir encarcerados dentro de nossos medos, angústias, ansiedade e desejos. Quando eu me encontro rendida dessa maneira, sempre busco na arte aquilo que me devolva a lucidez, amplie minha perspectiva. E tem uma música que me toca muito, e que pra mim fala sobre não sermos apenas parte do todo, uma fração de algo.
Na verdade, nós somos o todo. Somos cada grão de areia, cada sorriso, cada explosão no Universo. Somos cada crime cometido, cada lágrima derramada, cada som e cada aroma. Se pararmos para refletir, podemos perceber que, na verdade, cada ser vivo ou objeto que identificamos separadamente são apenas diferentes manifestações da mesma coisa. Do que realmente somos. Se tocarmos nosso próprio corpo, estaremos tocando em átomos tão antigos quanto a própria idade do Universo. É importante que saibamos reconhecer essas diferentes manifestações (cada pessoa, cada animal, cada vegetal, cada rocha, cada objeto, etc) para viver em sociedade. Mas também é importante que não percamos de vista a nossa verdadeira natureza. Importante que sempre consigamos lembrar que, no fundo, não há nada que diferencie do que eu sou feita e do que qualquer outra coisa é feita.
Gostaria de apresentar essa música pra vocês, chamada La Vida (Respira el Momento) do trio porto-riquenho Calle 13. Deixarei nessa página o videoclipe com legendas em português. Mas também quero compartilhar alguns trechos dessa letra que me fazem arrepiar com tamanha simplicidade e, ao mesmo tempo, profundidade de sua mensagem.
Começo refletindo sobre sermos nós mesmos as pessoas responsáveis pelo nosso caminho, pela transformação em nós e no mundo que julgamos ser necessária. Não existe destino, nem sorte, nem azar, nem um ser que define os seus próximos passos por você. É o caminho que se ajusta aos passos que decidimos dar.
“E se ajusta o caminho aos nossos passos,
Assim como a água se adapta ao copo.”
O que a gente é, é apenas uma forma do todo se apresentar. Como uma quantidade de água presente em um copo. Se formos até o oceano com um copo e coletarmos a água do mar nesse copo, o que temos na mão? O próprio oceano. Pode parecer que não, já que o oceano está bem à sua frente e o copo em suas mãos, e ambos nem sequer se tocam. Mas se você fizer o inverso e derramar a água de volta para o oceano, vai ver na sua frente a prova de que a verdadeira natureza daquela água é ser oceano. De volta para o mar ela se dilui, se reintegra, sem dificuldade e sem esforço. Ela nunca foi uma água dentro de um copo, e sim um pouco de oceano que foi moldado por um objeto, o copo. Essa analogia nos ajuda a entender um pouco o que somos, pois todos nós (seres vivos e inanimados) somos como a água do oceano sendo moldados pelos nossos corpos, nossas experiências e nossas crenças.
Outra passagem que me chama muito a atenção é uma que fala sobre enxergar essa nossa verdadeira natureza.
“Ainda que calculemos tudo e demos nome próprio a todas as coisas
O nosso espírito não pode ser visto em um microscópio.”
Para mim, é como um lembrete de que não existe ferramenta tecnológica que dê conta de nos mostrar quem verdadeiramente somos. Não tem como captar nossa essência olhando para uma minúscula fração do todo, mesmo que aumentada milhares de vezes para que possamos enxergar. Me lembra que ver e ser a nossa verdadeira natureza é uma habilidade adquirida apenas fora desse pensamento dualista: ou algo é pequeno para ver no microscópio ou é grande para ver com um telescópio, ou uma pessoa é pequena diante do Universo ou ela é grande diante de uma pequena formiga. Não é bem assim. Mesmo que queiramos medir os tamanhos, calcular os pesos, definir as cores, os cheiros, as texturas de cada coisa, o que cada coisa verdadeiramente é não é visível aos olhos das pessoas que ainda não atingiram o Despertar, ou seja, que ainda não foram capazes de enxergar sua verdadeira natureza. Pois só quem já percorreu esse caminho até o Despertar é que sabe como foi para enxergá-la. E se faz necessário sermos capazes de quebrar essa dualidade que nos separa do restante das coisas, esse pensamento binário do preto ou branco, e ser a própria miríade da vida. Veja só:
“Crescemos junto aos corpos celestes.
Somos o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste.
Somos a terra com todos os seus vestígios,
Uma supernova entre todas as estrelas.”
Vivemos com a limitação imposta pela crença de que somos um nome, um conjunto de memórias, uma alma que habita um corpo. Mas não, somos como a água fora do oceano. Ela não deixa de ser oceano. Assim como o que somos não deixa de ser o que é só por estar sendo moldado por nós. Continuamos sendo todas as coisas, e assim nada dessas coisas tem um “eu” inerente, uma identidade própria permanente.
A nossa crença nessa separação alimenta o nosso ego, aquele que só existe porque se vê separado, até mesmo acima de tudo. E, a partir dessa crença, construímos ideias e ideações sobre tudo ao nosso redor. Estamos o tempo todo criando novas crenças em nossa mente. Nesse quesito, um trecho da música diz:
“A 150 milhões de quilômetros de distância
Há uma via láctea repleta de neurônios
Porque reproduzimos mais ideias do que pessoas.”
Nós não somos as nossas ideias. As nossas ideias são construções que criamos e propagamos por aí. O que somos fisicamente são átomos muito antigos, e o que somos subjetivamente não é algo que habita esse corpo físico temporariamente e depois segue para novos “recipientes”. Pelo contrário. O que somos subjetivamente é algo que se manifesta a partir da origem desse corpo e das nossas ideias dentro desse corpo.
Em outra analogia interessante, o oceano também tem suas águas moldadas por movimentos de vento, placas tectônicas e etc. Assim formam-se as ondas. Mas as ondas, quando as vemos, conseguimos entender que são ainda o próprio oceano, não é? Quando elas se quebram e perdem este formato de onda e essa existência de onda, o oceano continua lá, e novas ondas já estão surgindo. Nós somos como essas ondas, manifestações da nossa verdadeira natureza, que nessa analogia é o oceano.
Nesse entendimento, o nascimento e a morte são apenas processos de criação e desaparecimento de ondas. Quando as ondas quebram, não pensamos que morreram e abandonaram esse mundo para sempre. E quando novas ondas nascem, sabemos muito bem que não há distinção entre elas e o oceano. Mas o nosso ego vive dessa noção de que nós somos como ondas que se destacam do oceano, criam vida própria, saem flutuando por aí e, quando chega o fim de sua existência, simplesmente desaparecem completamente para sempre.
“A morte nunca nos venceu
Porque tudo o que morre é porque, alguma vez, nasceu.”
Portanto, não precisamos brigar com a morte e ser inimigos dela. Ela também é o que nós somos. Quando me lembro dessa perspectiva sobre as coisas, os meus medos, angústias, ansiedades e desejos ainda me acompanham mas não mais me paralisam. Porque eu sei que, para viver aqui e agora, preciso abraçar os fatores humanos da minha existência. Mas também entendo que nada que me afete é tão importante a ponto de se sobrepor ao todo à qual pertenço. E, assim, o medo até virar coragem. Aí fico mais leve. Sigo em frente.
Texto de Angella Monteiro Santiago, Daissen-ji, escola Soto Zen
Fontes:
A UNICIDADE DE TODAS AS COISAS – Daissen
Nossa Verdadeira Natureza – Daissen
Minhas percepções a partir do Módulo I do CED e dos livros de Monge Genshô