Reencontrei o Caminho

 

 “Estou participando de um grupo budista, topa ir comigo?” Esse convite, feito por uma amiga há quase 10 anos foi o início da minha (re)descoberta do caminho do Buda.

Cresci numa família cristã evangélica.  Quando criança frequentava a escola dominical, os cultos semanais e fui batizada aos 10 anos por iniciativa dos meus pais. Porém, assim que entrei na adolescência, espontaneamente passei a desenvolver um senso crítico, a notar contradições naqueles ensinamentos e instintivamente comecei a perceber que aquela prática religiosa não fazia sentido para mim.

Aos poucos, para o desgosto da minha mãe e da maioria dos familiares, fui me afastando da igreja evangélica e na fase adulta, agora casada e com uma vida independente da família biológica, finalmente pude confessar a mim mesma, ainda que com enorme sentimento de culpa, que não acreditava naquele Deus.

Sentia fortemente no meu íntimo que não haveria de existir um ser poderoso, onisciente e onipresente e que se realmente existisse um Deus, ele estaria dentro, e não fora de mim. No entanto, não conseguia explicar para mim mesma de onde vinha tal certeza, já que não foi isso que tentaram me ensinar durante todos aqueles anos que frequentei a igreja evangélica.

Já adulta, me permiti conhecer outras tradições religiosas, porém sempre procurava aquelas com viés cristão por medo de “trair” meus familiares. Mas como nenhuma delas foi capaz de trazer respostas para minhas indagações mais profundas, acabei me afastando das questões religiosas, me entreguei nas distrações do meu cotidiano e isso caiu no esquecimento.

Ocorre que vivi um longo e fracassado casamento que se seguiu inevitavelmente de um divórcio traumático. Esse evento fez irromper em mim uma enorme angústia existencial. Ao mesmo tempo em que buscava cura para as dores emocionais com apoio de psicólogo eu questionava o sentido da minha existência.

A partir daí senti nascer em mim uma legítima necessidade de encontrar respostas para minha crise existencial por meio da prática religiosa. Passei a visitar igrejas evangélicas, católicas e grupos espíritas, em busca de práticas e ensinamentos com os quais eu me identificaria, mas que nem eu mesma ainda sabia o que seria. E foi então que recebi o convite da minha amiga para conhecer o grupo budista.

No dia marcado, entramos numa pequena sala de um edifício comercial estabelecida no centro da cidade e me deparei com uma cena inédita para mim: um grupo de pessoas sentadas no chão em cima de tapetes e almofadas aguardando o início da reunião.

Para minha surpresa, senti imediatamente uma forte conexão com aquelas pessoas e muito confortável com a dinâmica do grupo que consistia em ler escritos budistas de variadas tradições, seguido de debates, alguns pequenos rituais e intervalos de meditação silenciosa de 1 a 3 minutos, no máximo.

Daquele dia em diante passei a participar com bastante frequência e a me sentir parte daquele grupo, porém ainda não estava totalmente convencida de que teria encontrado as respostas para minhas mais profundas indagações sobre a existência humana.

Com o passar do tempo, foi decidido que o melhor para o grupo seria professar uma única tradição budista e associar-se a uma instituição. Então, o coordenador do grupo convidou um monge zen budista para um minirretiro, quando na oportunidade ele apresentaria ao nosso grupo os ensinamentos daquela tradição.

Em fevereiro de 2014 tivemos a felicidade de receber pela primeira vez na nossa cidade e estado o orientador espiritual Genshô Sensei, monge zen budista da comunidade Daissen com sede em Florianópolis/SC.  O evento começou com uma palestra no nosso pequeno espaço de encontros semanais, plateia lotada.

Assim que aquele monge iniciou sua fala, senti desabrochar em mim um lampejo de lucidez! Tudo o que ele dizia fazia sentido para mim, foi um sentimento indescritível! À medida que ele ia explicando os ensinamentos zen budistas, eu pensava: “É isso…! É isso! ” Senti que finalmente alguém tinha dito algo sobre a existência humana que eu poderia realmente acreditar.

A partir dali nosso grupo decidiu seguir a tradição Zen-Budista e associar-se à comunidade Daissen. Passamos a realizar encontros semanais com a prática de zazen sob orientação de Genshô Sensei. E foi aí que meu trabalho duro começou.

Acredito sinceramente que conheço o Dharma de Buda de outras vidas, talvez por isso o Zen Budismo me pareceu intelectualmente palatável, mas na prática não foi bem assim.

Os conceitos de “impermanência, apego, não-eu, forma e vazio” e tantos outros, significou, na prática, um enfrentamento direto com meus piores defeitos, o que exigiu de mim o reconhecimento do meu ego forte. Metaforicamente falando, digo que o Zen me quebrou, derrubou todas as estruturas e paredes da minha casa e disse: “Agora sua tarefa é reconstruir tudo novamente”.

Os meus piores defeitos foram escancarados para mim logo no primeiro Sesshin (retiro em silêncio).  Acordar às 4h20 da manhã para praticar longos períodos de zazen e suportar as dores nas costas e pernas foi o menor dos problemas. Difícil mesmo foi reconhecer e enfrentar a minha vaidade, orgulho, irritabilidade e tantas outras expressões do ego.

Durante as palestras eu sentia necessidade de me destacar dos demais e de parecer inteligente. Para isso tentava elaborar perguntas difíceis e provocativas para o monge com intuito de testá-lo. Fazia a pergunta e pensava: “Ah! Essa ele não vai saber responder!”. E para minha surpresa, a minha pergunta era acolhida com muita amorosidade e a resposta sempre calma e assertiva do mestre voltava para mim como um chicote no ego.

Ainda no meu primeiro retiro, fui levada à prova durante a refeição formal com o orioky. Tive muita dificuldade com o ritual, de utilizar todas aquelas tigelas, colheres, pano, desamarrar e amarrar os guardanapos, comer sem deixar nada nas tigelas, tudo isso dentro de um tempo limitado.

O pior para mim foi dar o nó final da amarração do guardanapo. Eu não conseguia! Olhava para os lados, todos haviam terminado, dado o nó final perfeito e me aguardavam. Comecei a ficar nervosa, suava muito e tive que ser socorrida por um praticante. Me senti humilhada, exposta e derrotada por aquele simples guardanapo! Decidi que isso nunca mais aconteceria! Durante o intervalo me tranquei no quarto e pratiquei o nó do guardanapo até conseguir! Durante as refeições que se seguiram, eu fazia a amarração final com altivez, era uma das primeiras pessoas a terminar, olhava para os lados e via pessoas com dificuldade, mas eu havia vencido!

Porém, para minha decepção, no retiro seguinte pude perceber que eu tinha esquecido tudo!  E foi naquele momento que tive um insight, me senti muito envergonhada, pois finalmente pude perceber o quanto estava sendo egoísta e orgulhosa.  Então comecei a entender todo o significado do retiro: o pensar primeiro no outro, a importância da prática em grupo, da unidade, e a partir daí tudo fluiu com naturalidade.

Apesar de todas as dificuldades iniciais eu não desisti porque percebi o quanto precisava praticar zazen e me aprofundar nos ensinamentos de Buda.

Com o decorrer dos anos minha prática se consolidou e o sentimento que tenho é que reencontrei o caminho do Dharma de Buda nessa vida por meio de uma prática denominada Zen Budismo.  Por ter essa convicção, pedi permissão ao Genshô Sensei para fazer os votos de leigo, ele aceitou ser meu professor e em agosto de 2019 foi realizada minha cerimônia de Jukai quando recebi meu nome budista: Ekai.

Sinto atualmente que muitos dos meus defeitos anteriormente citados foram bastante abrandados, mas que ainda há muito trabalho pela frente a ser realizado, o que exige de mim muita disciplina para praticar zazen.

Os ventos do samsara permanecem rondando e insistem em me retirar do caminho: um trabalho até de madrugada, problemas familiares, uma taça a mais de vinho na reunião com amigos, visitas em casa etc. Tudo isso é motivo para não acordar cedo e manter a constância da prática do zazen. E quando me dou conta, minha mente está novamente turbulenta e tenho que começar tudo novamente.

Mas eu não desisto, eu persisto porque agora reencontrei o caminho! Sei que esses ventos do samsara são como os pensamentos que surgem em minha mente durante o zazen: eles surgem e eu não os prendo, deixo ir. Então, sento na minha almofada, de frente para parede, coluna ereta, olhar 45 graus, mãos em mudra cósmico, ligo o cronômetro, respiro profundamente, solto o ar devagar e inicio meu zazen: confio na postura, confio no tempo.

 

Depoimento de Wilma Ekai san. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

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