RAKUSU – Depoimento sobre a arte prática de confecção


Em sânscrito, ‘sutra’ pode significar um ponto de costura e também uma linha ou frase verbal. Se pensarmos no sutra como uma linha, então o universo inteiro é tecido como uma teia diáfana, a partir de infindáveis fios de inteligência.

Experimentei a confecção do rakusu como um desafio de profundo exercício de vida, como mais um aprendizado de resiliência, que tanto preciso. Como uma subida de montanha, um portal do Dharma.

Foram muitas as dificuldades, idas e voltas sobre o mesmo fazer que insistia em sair com as medidas erradas e linhas tortas; assim como a minha mente e a minha prática. O desafio foi curiosamente sofrido e divertidamente imenso, já que foi a primeira peça que ousei costurar na vida!

Adoro quebra-cabeças desde criança e costumo montar e remontar de tempos em tempos nas férias aqueles de mil, duas e até três mil peças, nos quais a seleção das mesmas, tentativas de encaixe e a monotonia da montagem curiosamente nunca me cansam. Paciência nunca foi meu forte na personalidade, mas como somos prismas, a exigência de calma e perseverança do quebra-cabeça gigante por outro lado sempre me fascinaram e ajudaram a desenvolver uma certa obstinação.

Assim assumi o desafio de fazer o rakusu e procurei encarar com alegria todo retrabalho aqui e ali, com sensação de presença real, procurando fazer o melhor a cada corte, a cada dobradura e a cada pontinho pensando na importância do ensinamento do refazer e no sentimento de gratidão que surgia com humildade por ter oportunidade de estar fazendo essa arte da costura artesanal como ancestral prática milenar.

Sensação de incompetência concomitantemente acompanhada de plenitude e senso de serviço maravilhoso à evolução de si mesmo. Acendo incenso. Faço as três prostrações. Coloco pra tocar baixinho a play-list de música clássica. Pontinho por pontinho fui perdendo o orgulho de quem achava que poderia fazer de forma mais fácil, já que costumo fazer tapeçaria, tricô e crochê: mas nada a ver! (kkk)

Mergulho na tarefa com a missão de acolher e cuidar da minha própria loucura com o mesmo respeito que tento toscamente exercitar com os outros. Choro baixinho. Não sei se por causa do sentimento de frustração pela ignorância ou pela total falta de habilidade em que me encontro na recostura de mim mesma.

A minha mente julgadora diz que sou burra e fraca. Mas, no fundo, sei que existem vários tipos de inteligência: não há mais ou menos, apenas diferenças de compreensão e raciocínio, o que pode ser comprovado pelas diversas escolas interpretativas que resultaram dos ensinamentos originais do Buda histórico, Shakyamuni Buddha.

(Como pode alguns homens que nunca ousaram segurar uma agulha fazerem o rakusu com eficácia e eu que adoro trabalho manual enfrentar tanta dificuldade? Medito sobre isso à noite no zazen antes de dormir e logo em seguida à tarefa da tarde, pois de noite não enxergo a costura e sou obrigada a parar…rsrsrs)

Após o stress de idas e vindas, fazendo e desmanchando os pontinhos que insistem em sair tortos, resolvo relaxar e deixar as dobraduras e os pontos fluírem assim mesmo, sem pressa de terminar, passando a acolher o prazer da tarefa, grata por estar vivendo o processo. Persisto com o máximo de atenção ao momento presente. E assim sou seduzida pelo prazer da costura. Fruição para além da dualidade típica da mente racional de bem-feito ou malfeito; começo a tornar-me unificada com o tecido e a linha, surgindo uma sensação de paz e serenidade.

Prossigo, persevero. Termino? Acho que nunca. Apenas mais um passo tortuoso no caminho. Assim como a vida, cheia de idas e vindas, é o meu rakusu, totalmente imperfeito. Simplesmente assim. Por mais que eu capriche e refaça duas ou três vezes, o mini ponto sai tortinho (tentei fazer seguindo as instruções de que minúsculo pontinho seria o ideal).

Relaxo, respiro, tomo um gole de chá; respiro e aceito o meu grau de ignorância e imperfeição. Ao mesmo tempo, quanta alegria por estar vivendo isso! Reflito que a confecção do rakusu é só uma minúscula amostra do longo e cambaleante caminho do Dharma.

Volto a honrar a fruição. Que felicidade ter essa autorização e oportunidade de confeccionar um símbolo de comprometimento com os preceitos que tenho a honra de levar para a vida! Rio sozinha silenciosa e deliciosamente.

Que aula interessante de resiliência! E talvez aí resida a grande aventura e beleza do viver com mais atenção às

pedrinhas do caminho e como contorná-las com menos sofrimento, mais aceitação e sabedoria. Talvez essa seja a verdadeira jornada interna do qual Sensei Genshõ costuma falar de “n” formas, até porque só vivenciando para perceber e repensar a vida como caminhante errante.

 Sempre lembro das palavras recorrentes do mestre: “Continue praticando”. Assim a confecção do rakusu está me ensinando mais uma lição do caminho que resulta em aprendizagem e compaixão sem fim, a começar por si mesmo.

Por Malu Inzan, Daissen Ji, Soto Zen.

 

Referências. Baseado na leitura do livro “A Cura Quântica”, de Deepak Chopra.

Imagem: Daissen

 

 

 

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