“Estude o Kata, aprenda o Kata e então o abandone”,
Grão-Mestre Morihei Ueshiba, fundador do Aikido.
Quando alguém inicia a prática de Aikido e se depara com a frase acima pode ficar um pouco confuso, por que dedicar tempo e energia para aprender algo que deverá ser abandonado? Kata possui vários significados, o que nos interessa é “forma” (形) ou “Modo correto de fazer algo”. O fundador do Aikido dava especial importância para o Kihon Waza (as técnicas básicas), mas insistia que mesmo estas devem ser abandonadas.
No Aikido o kata tem um significado que está fora dele, ou seja, não é um fim em si mesmo e são necessários tempo e dedicação para começar a desvendar os mistérios contidos em suas entrelinhas. Qualquer caminho espiritual japonês possui um kata, e o ritual nas artes marciais, mais do que preparar para um combate, tem como premissa fazer com que o praticante desenvolva sensibilidade, concentração e principalmente um estado de presença, estes sim, extremamente úteis para nosso dia-a-dia.
O Kata possui um cerne que, assim que interiorizado, deve ser ampliado para além dos limites do tatami, pois somente assim a filosofia da arte será incorporada a nossas vidas. Paradoxo maior que a frase do Grão-mestre é esta história contada por um de seus Uchi Deshi*: certa noite Morihei Ueshiba pede aos seus alunos que durmam cedo e descansem, porque no outro dia iria mostrar os segredos do Aikido para todos. Eles saem para dormir, porém muito ansiosos, acordam cedo e se dirigem rapidamente para o Dôjô na esperança de que iriam finalmente aprender as técnicas avançadas ou a filosofia escondida por trás dos Kata. Morihei Ueshiba entrou no tatami, chamou um aluno e mostrou o mesmo Kihon Waza que eles treinavam todos os dias. “Esse é o segredo do Aikido” disse o Grão-Mestre, e continuou “É isso que eu treino todos os dias”.
No Zen, temos diversas práticas que se assemelham muito aos rituais da Ikebana, Shôdô, artes marciais e do Chadô e exatamente como nestas, no Zen elas não tem um fim em si mesmas. No zazen, o principal instrumento do Zen para confrontar nossa realidade de sonhos, devemos prestar atenção quando entramos no zendô, com que pé entramos, o que fazemos a seguir, como andamos na sala, o que fazer quando estamos de frente para o zafu, para que lado nós viramos, como sentamos, enfim, uma miríade de detalhes que servem para que mesmo? Quem nos observa? Alguém irá nos cobrar por girarmos para o lado errado? Seremos punidos por não fazer reverência na entrada ou saída da sala de meditação?
Nos rituais para o zazen, assim como no Kata, o fim não está em si mesmo, a essência destas formalidades está a serviço de uma mudança de mentalidade e é o dedo que aponta para lua. Quando aprendemos a essência das formalidades e as interiorizamos, podemos leva-las para nossas atividades diárias e transformarmos nossa vida em prática, colocando nossa presença em tudo que fazemos.
Muitas pessoas perguntam o que fazer além do zazen. Não é necessário fazer nada, apenas faça tudo que já faz, mas de maneira diferente, de “forma” diferente. Coloque a mente do zazen nas suas atividades ordinárias como as de lavar roupa, tomar café, dormir, trabalhar e conversar. Esteja presente. As práticas rituais da Sangha de entrar, sentar, fazer cerimônias e cumprimentar as pessoas são importantes instrumentos para prolongar o estado mental que adquirimos no zafu e assim que totalmente entendidas e interiorizadas poderão ser abandonadas.
Interessante é observar que, quando essas práticas fizerem verdadeiramente parte de nossas vidas, não conseguiremos mais abandoná-las, mesmo que queiramos. Como o fundador do Aikido que treinava somente os Kihon Waza e os mestres Zen que transformam todos seus pensamentos, palavras e atos em uma continuidade do zazen, nossas vidas terão se transformado numa prática diária impossível de ser abandonada. Teremos sido arrastados pela correnteza. Quando esse momento chegar não haverá mais questões do tipo quando, onde e como praticar o Zen.
Mas até esse dia chegar, é importante constituirmos uma rotina para o zazen em casa, ter um lugar próprio, mesmo que não seja um quarto com altar e imagem de Buda, mas o mesmo lugar todos os dias, arejado e de pouca circulação de pessoas da casa. Eleger um local como “o local do zazen” faz com que nos habituemos com ele e nosso cérebro terá poucas coisas para se distrair e se acostumar. Se tivermos dificuldades com sons, devemos escolher o horário em que haja mais silêncio não somente em casa, mas também na rua.
Devemos ter em mente que a vida é dukka e nem sempre teremos todas as condições ideais para o zazen e nestes casos devemos estar prontos para adaptações como uma cadeira no lugar da almofada, uma parede amarela em vez de branca, um vizinho escutando música alta ou um cachorro latindo no lugar do habitual silêncio, um quarto de hotel ou da casa de um amigo no lugar do nosso cantinho em nossa casa. Se esperarmos apenas pelas condições ideais nunca iremos treinar a mente, até mesmo no sesshin onde tentamos criar um ambiente propício, temos cheiros, sons dos praticantes ao nosso lado, uma comida que não estamos acostumados, uma cama que não é a nossa, um colega de quarto que ronca, acordar e dormir em horários diferentes, enfim, nossa vida corrida e agitada quase nunca nos dará um dia ideal para sentarmos e é aí que entram nossas disciplinas, foco e força de vontade.
No Japão conta-se a história de um Samurai que antes de sair de casa acendia seu incenso e em suas orações pedia todos os tipos de adversidades e dificuldades, pedia sempre os mais difíceis obstáculos e adversários, chegava a pedir desgraças e sofrimentos, pois ele acreditava que somente nestas condições teria a oportunidade de crescimento físico, mental, técnico e espiritual. Não dá para esperarmos pelo momento adequado, estamos em treinamento em tempo integral.
Certo dia meu Sensei mandou que eu fizesse exame de faixa e eu disse que não estava pronto, que ainda era cedo e ele me disse; “Se fores esperar estar pronto para assumir algo, estarás fadado ao eterno fracasso”.
Texto de Monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
- Literalmente aluno do lar, aluno interno. Aluno que mora com o mestre