Primeiros passos após deixarmos o mosteiro no Japão

 

Após quase oito meses, retornamos do Japão e dois dias depois pegamos um outro avião com destino a Florianópolis para participarmos de um treinamento monástico e do Sesshin Nacional de Inverno da Daissen. Lá, nos aguardava Genshō Rōshi, o grande responsável pela nossa ida ao Japão, mas também, e principalmente, o responsável pela forma como encaramos os desafios que se apresentaram nos angōs.

A vida em um mosteiro de treinamento não é fácil. Na verdade, ela é planejada para ser difícil. Pouca comida, poucas horas de sono, muito trabalho, pressão para se desempenhar diferentes e novas funções, e uma convivência sem pausa dia após dia, mês após mês, com monges, até então, desconhecidos. Cada detalhe do cotidiano é regido por regras rígidas; desde o despertar, antes das 4 horas da manhã, até o apagar das luzes, às 21 horas.

Quando nossos meses de treinos acabaram, durante alguns dias antes de deixarmos o país, viajamos para explorar um pouco a Terra do Sol Nascente. Em nossa última semana, dissemos para nosso sensei:

Estamos em Kyoto, ainda nos readaptando à vida fora do mosteiro. Comer quando e o que quisermos, escolher o que fazer durante o dia, o que ler, quando e sobre o que conversar é muita ‘liberdade’ e estamos valorizando cada detalhe dos nossos dias. Queremos justamente ser capazes de manter esse olhar de maravilhamento diante de nossa vida como um casal de monges.

Diante de tantas possibilidades que um dia comum traz, fica muito nítida a nossa responsabilidade em face de cada pequena escolha. Como reagimos a cada detalhe do dia direciona nossas mentes para um lado ou para outro e isso já influencia a escolha seguinte, e a seguinte, e assim por diante. E por isso a margem de liberdade é, apesar de pequena, tão preciosa, como aprendemos com o senhor. Caminhando no terreno do karma prévio direcionamos, apenas por milímetros, que seja o nosso próximo passo, mas anos depois, esses milímetros se tornam quilômetros. Passo a passo, milímetro a milímetro, vamos adentrando ao Dharma. Os sete meses em Tōshōji foram preciosos para nos ajudar a enxergar com clareza cada pequena oportunidade que temos nas mãos agora, fora do angō.” 

E assim fomos tentando conduzir nossos passos pelas ruas históricas de Kyoto, nos entregando à felicidade do simples caminhar. O Zen não está contido no passado, na sua chamada época de ouro na Antiga China, ou no futuro, onde projetamos nossas expectativas. Ele está sempre sendo atualizado aqui e agora, por cada praticante que resolve saltar no abismo. Mas esse agora traz em si as pequenas e grandes atitudes de nossos antepassados e também contém o embrião de tempos que ainda não chegaram.

Os templos e mosteiros que visitamos traziam a carga do testemunho histórico dos ancestrais que por ali passaram e ao mesmo tempo suas paredes nos sussurravam que o futuro estava sendo plantado ali, naquele instante, por nossos olhares, sentimentos e atitudes. 

Submersos nessa totalidade absoluta do agora, transformamos o mundo ao mudarmos a nós mesmos. Por isso, nos sentamos lado a lado com nossos companheiros. E para alguns desses nossos irmãos de prática, para os que puderam estar no Sesshin de Inverno, entregamos um escrito que tentava entregar uma fração que fosse da nossa felicidade por estarmos de volta. Reproduzimos aqui o que dissemos para que a mensagem chegue também ao resto da comunidade:

Quando cruzamos os portões de Tōshōji, o mosteiro na região de Okayama, no Oeste do Japão, no qual recebemos treinamento monástico por sete meses, não estávamos sozinhos. Levávamos conosco nosso mestre, Genshō Roshi, e toda a comunidade Daissen. E foi justamente isso que nos permitiu estar em casa, mesmo tão longe de casa. 

No último mês de treinamento, estudando e conversando sobre “Blue Cliff Records” – famoso livro de koans que conta passagens das vidas e diálogos de grandes antepassados do Zen – percebemos que, no final das contas, aquelas centenas e centenas de páginas relatam a grande busca pelo verdadeiro mestre e consequentemente, pelo despertar. Praticantes cruzavam a antiga China a pé, atravessando florestas e subindo montanhas em busca de alguém que os guiasse no Caminho de Buddha.

Nos entreolhamos com a certeza de que, terminado o nosso período de treinos, seria motivo de grande felicidade a volta ao Brasil, pois após os primeiros anos de estudo e prática, órfãos pela Ásia, nosso karma nos conduziu ao nosso mestre de vidas. Em outubro de 2023, fomos enviados de volta, pela primeira vez, àquele continente onde tudo havia começado. Dessa vez, era o Japão nosso destino e já havíamos nos tornado discípulos de Monge Genshō. E foi, também, pela primeira vez que sentimos que nada havia a mais lá para buscarmos, pois o mestre que nos conduz no Caminho está em Florianópolis nos esperando.”

Texto de

Monge Muryo 無量, Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

Monja Kakuji 覚慈, Monja na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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