Pequenos Atos

 

Todo o universo está em repouso, todo o universo e todos os objetos, minerais, animais e plantas, toda a natureza está em meditação. São todos livres e permeáveis, todos fluem. Estão em constante mudança e nada impedem, são o próprio significado de liberdade. Assim também é o nosso corpo. Este corpo que temos é feito de natureza, exatamente a mesma substância, desde a mais material à mais invisível e sutil. Estar em meditação é fluir, é não prender, não acumular, não impedir, ser um com todas as coisas.

Podemos dizer que todo o universo está em meditação, mas, na verdade ele, a natureza e nenhum objeto sabem disso. Todos apenas não deixam de ser o que são originalmente. Também nós somos assim, feitos da matéria do universo e ainda temos a habilidade de pensar, de imaginar, abstrair, iludir (e se iludir), acreditar, confundir pensamentos com a verdade, acumular ilusões (e assim construir outras) e se apegar a qualquer coisa. O apego, quando não é visto como tal, se torna uma ilusão, um obstáculo. A imaginação e a crença, quando não são vistas apenas como ferramentas e são confundidas com a realidade, se tornam poderosas prisões (embora invisíveis). A predisposição de se enganar e se enredar a coisas que não existem, senão de forma abstrata (dentro da mente, apenas), é a mesma liberdade (e toda a potência) do pensar e discernir corretamente.

Ao mesmo tempo que você deixa a infância e se torna adulto, tem a oportunidade de perceber sua ignorância sobre sua situação existencial. Qual a resposta para “quem eu sou? ”. Então temos a meditação para nos levar à realização de nossa natureza original, desimpedida, fluida, impermanente e eterna. Porque a nossa natureza tem exatamente as mesmas características do universo, nós seguimos a trilha dos budas, através da meditação vazia, para alcançá-la plenamente em nossa consciência, nesta vida. Inicialmente pode ser difícil de entender e confiar que você é capaz dessa abertura de consciência, o despertar de buda, de tão preso a sistemas de pensamento autorreferentes (o ego e a sociedade). Assim a meditação vazia, o zazen, poderia ser chamada também de meditação de abertura além do tempo e do espaço, meditação sempre sem limites ou ainda de não-meditação sem início e sem fim. Isso significa que você deve se abrir incondicionalmente, você não deve justificar a si mesmo pelas condições do passado que te trouxeram até aqui. Em antigos sutras1 fala-se de causas e condições, que trouxeram as pessoas até onde elas estão e como são agora. Mas nenhuma causa ou condição passada fez você estar aqui ou ser o que é agora. Você sempre está aqui como sempre estiveram os Tathagatas2, profundamente vivendo o momento presente. Isto, que é a Verdade, não se funda em circunstâncias relativas (causas e condições). Sempre está aqui, exatamente antes de surgirem os pensamentos e as conclusões sobre isto ou aquilo.

A meditação (vazia) se expande muito além do sentar-se (em zazen) e também muito além do bem e do mal. No seu dia a dia, quando você está andando, comendo ou falando, ou seja, o que for que você estiver fazendo, a trilha dos budas, a trilha do autoconhecimento, se manifesta por meio das suas ações, pequenas ou grandes, visíveis ou invisíveis. Suas ações são a sua consciência no mundo, e a sua consciência muda junto com as suas ações. Você transcende a si mesmo (a ignorância sobre si mesmo) através das suas ações físicas e mentais, e não-agir é a grande ação, em sintonia com a grande atividade (a consciência cósmica).

Por meio da meditação (não-ação) você abre a sua consciência, porque quando você não age você vê imediatamente as suas ações do passado e do futuro, você conhece o seu ponto de vista particular e os seus desejos, entende como ele é condicionado pela sua educação, experiências e expectativas passadas. Quando você deixa de agir você vê dentro da sua mente como seria se tivesse agido, o que teria feito ou falado. Você dá atenção para este espaço ilusório. Então você pode perceber que se identificar com qualquer ação específica (ideia específica) te isola falsamente da consciência do universo. A não-ação acontece externamente e também internamente a você em seus pensamentos e impulsos mais particulares. Dessa maneira a meditação vai trazendo autoconhecimento e liberação. Assim você vai além do bem e do mal.

Aquele que se identifica com o bem (ou com o mal) coloca a si mesmo em um ponto cego para a consciência do universo (por ser um ponto relativo na sociedade, dependente das circunstâncias). Então tudo o que você precisa fazer é experimentar a liberdade, o fluir da sua natureza original. Assim você não bloqueia o seu caminho nem o caminho dos outros (humanos ou não-humanos) e vai além. Você pode doar, constantemente, o que tem de mais livre (e melhor) em si mesmo. Todo o universo é doação inerente e espontânea, você apenas segue o exemplo. Você pode doar o seu apego e o seu egoísmo para o universo, e a melhor maneira de fazer isso é servindo e ajudando outros seres sem desejar recompensas ou reconhecimento. Ao mesmo tempo, doar também é ter atitudes que melhoram a vida de todos, sem distinção. Quanto mais você doar de si mesmo (menos possuir de si mesmo), mais próximo ficará de todos os outros seres, isso se chama compaixão, e ela aparece assim, espontaneamente. Você não separa mais o mundo entre bem e mal, entre os bons (para você) e os maus (para você). É você que não está mais dividido, tudo é a sua natureza original, sem discriminação, sem distinção. Você assim está ficando livre de si mesmo, livre daquilo que era capaz de criar sofrimento para si e para os outros, em pequenos atos.

 

Texto de Monge Seigen, aluno de Saikawa Roshi. Escola Soto Zen.

 

  1. Sutras: Textos canônicos abordando os ensinamentos para o despertar de buda.
  2. Tathagata: Uma outra designação para Buda. Literalmente “aquele que não veio e que não vai” ou “aquele que foi”, “aquele que despertou”.

 

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