Perfeiçoes
No budismo chama-se de Paramita [sânscrito] ou Parami [pali] a transcendência de certas práticas cultivadas até a perfeição. Tais práticas são cultivadas por arahants e bodhisattvas, como guia, para percorrer o caminho da vida sensorial do Samsara para a iluminação, o Nirvana. Nesse sentido transcendência não se refere a uma realidade externa, mas a um esforço de superar por meio de condutas a mente autocentrada. A mente transcende quando é capaz de atribuir um duplo grau a realidade, atravessando do ponto relativo para o absoluto, ou seja, experienciar uma profunda interconexão entre a habilidade de estar auto consciente e a habilidade de experimentar o mundo dos objetos. As Paramitas representam as qualidades que definem essas condutas. Sua prática direciona as ações que um bodhisattva deve esforçar-se para realizar, a fim de purificar o karma e os kleshas e então desenvolver a bodhicitta no mais alto grau de transcendência.
As origens das Paramitas são encontradas no Jataka (sânscrito ou pali) conjunto de mais de 550 fábulas, extremamente populares, relativas aos nascimentos anteriores de Siddhartha Gautama, o futuro Buddha. Esses contos estão preservados em todos os ramos do budismo e relatam estórias variadas e com humor. Mostram como Buda viveu muitas vidas com o objetivo de realizar a iluminação e sempre finalizam com um ensinamento de valor moral e espiritual. Esses contos fazem parte da literatura budista sagrada e são encontradas na parte de Sutta-pitaka, uma divisão do texto Cânon Pali, em uma seção chamada Kuddaka Nikaya do budismo Theravada. A partir desses textos essa escola definiu dez perfeições e organizou a coleção do Jataka culminando em dez estórias, cada uma ilustrando uma das perfeições. No budismo Mahayana encontramos uma coleção de contos Jataka, conhecidos como Jatakas “apócrifos”, indicando que esses contos têm origem fora da coleção padrão, leia-se Canon Páli. Possivelmente foram organizados, originalmente, pelo Sarvastivada, que definiu seis perfeições e assim organizou a sua coleção. Contudo, uma das coleções mais conhecidas desses trabalhos “apócrifos” tem origem conhecida; o Jatakamala ou “Guirlanda de Jatakas”, também chamado de Bodhisattvavadanamala. Provavelmente composto no terceiro ou quarto século da era Cristã, quando houve grande esforço para compilar vários ensinamentos budistas num corpo único fora do Canon Páli. As histórias no Jatakamala concentram-se nas Perfeições, especialmente aquelas de generosidade, moralidade e paciência. Portanto sob a perspectiva histórica, existem dois modos principais de seguir o caminho para se atingir a iluminação: o que segue as orientações obtida nos cânones mais antigos, que são observados pelos arahants e aquele que segue as tradições desenvolvidas a partir das experiências de visionários do início da era Cristã, que são observados pelos bodhisattvas.
O ideograma chinês para “Paramita” tem o significado de “atravessar para outra margem”. Então, as seis Paramitas são as seis virtudes de caráter que se, cultivadas corretamente, permite que o praticante atravesse da margem da ignorância e alcance a outra margem, a da iluminação. Além disso, essas travessias permite uma transformação tal nesses praticantes, que adquiram os meios hábeis que os tornam capazes de ajudar outros seres a fazer essa mesma transição e cruzar em segurança. As seis perfeições são: Dana Paramita generosidade ou doação; Sila Paramita disciplina, virtude ou conduta apropriada; Shanti Paramita paciência, tolerância, autodomínio, aceitação ou resiliência; Virya Paramita energia, diligência, vigor, esforço ou persistência; Dhyana Paramita meditação, concentração ou contemplação; Prajna Paramita sabedoria proveniente da investigação da realidade que leva para a realização direta do vazio e da interdependência. Essas são as chaves para o surgimento da completa iluminação e permitem atingir um estado livre das emoções perturbadoras e dos obstáculos para alcançar um bem-estar supremo.
DANA PARAMITA PERFEIÇÃO DA GENEROSIDADE. A primeira prática da travessia é a perfeição da generosidade; Dana. Ela está bem no início do caminho espiritual, antes das outras perfeições, porque é algo que todos podemos fazer com facilidade. Isto significa que, por mais deludidos, irritados, ciumentos ou gananciosos que possamos estar, nós ainda podemos doar, simplesmente por ser a generosidade uma qualidade muito básica nos seres. Dana determina a maneira como nos relacionamos com a nossa pessoa, com os outros seres e como estabelecemos nossa percepção da existência. A dificuldade em praticar esta perfeição nos alerta a respeito de nosso auto-centramento, nos alerta ao quanto estamos sucumbindo aos apegos. A dificuldade de praticar Dana, nos revela, principalmente, o quanto o medo de escassez não nos permite realizar a interdependência com todos os seres. A ausência de Dana gera sofrimento. Sua prática é um antídoto contra esse agarrar-se com desespero as coisas. Dana Paramita é a prática da perfeição da generosidade que nos ajuda a abrir nossas mentes e nos prepara para percorrer o caminho do bodhisattva. O caminho da bondade e da compaixão.
Buddha nos ensinou que existem três níveis de Dana que podem ser traduzidos em termos de benefício mínimo, benefício de longo alcance e benefício verdadeiramente transcendente e altruísta. O primeiro nível de prática de Dana é quando existe a pressão externa e uma relutância interna para fazê-lo. Tem um valor limitado, porque o verdadeiro espírito, imbuído no ato de dar, é realmente abandonar o que se doa, mas esse tipo de Dana, com resistência, é uma generosidade incompleta e insatisfatória. O segundo nível de prática de Dana gera um benefício de longa duração. Neste nível a doação não apresenta resistência. Sabe-se que se têm o suficiente, e o que é dado, é dado com um sentimento de amizade, sem um agarramento desesperado às coisas. Por fim, O terceiro nível de generosidade é onde a prática é tão largamente exercida, que só uma mente livre de desapegos é capaz de realizá-la. Neste último nível a transcendência se dá porque o pensamento não precede a ação. Não existe apego, sequer há a ideia de um “eu” envolvido no ato de generosidade.
SILA PARAMITA PERFEIÇÃO DA MORALIDADE Sila está diretamente ligada a conduta ética e apropriada que os praticantes do budismo procuram adquirir e manter. Pode ser traduzido como “virtude”, “boa conduta”, “moralidade”, ou “disciplina moral”. A existência no samsara pode ser inconcebivelmente difícil e desafiadora, com muitos conflitos e ambiguidades morais. Esta condição nos oferece, constantemente, situações reais ou em potencial para ação em direção ao bem ou ao mal. Esses entroncamentos ambíguos e perturbadores determinam uma complexidade moral que nos pressiona a escolhas que colocam a prova nossa capacidade de discernimento. Para que tenhamos referenciais que funcionem como bússola para orientar nossos posicionamentos morais, Buddha recomendou três critérios ao fazermos julgamentos morais. O primeiro é o Princípio da Universalidade; é a sabedoria do espelho, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro, sentir o que ele sente, sofrer ou alegrar-se com suas dores e alegrias, não fazer distinções ou agir com preconceitos. O segundo é o Princípio Consequencial; é necessário avaliar as consequências tanto de quem age, quanto de quem sofre a ação, para determinar se um comportamento é benéfico ou prejudicial. Por fim, o terceiro critério de julgamento moral é o Princípio Instrumental, ou seja, um comportamento é benéfico se ele nos conduz para mais perto do objetivo; Nirvana ou prejudicial, se nos afasta dele. Sila é a base sobre a qual todo Nobre Caminho se apoia. A prática de Sila está definida pelos três elementos do Caminho Óctuplo; conduta corporal correta, conduta verbal correta e conduta mental correta.
De acordo com o Dharma existem três tipos de conduta corporal; abster-se de tirar a vida de outros seres, abster-se de tomar o que não é dado e abster-se de conduta sexual imprópria. Para a conduta verbal existem quatro regras de linguagem; abster-se da linguagem mentirosa, abster-se da linguagem maliciosa; evitar a linguagem grosseira e abandonar a linguagem frívola. Em relação a conduta mental o Dharma de Buddha nos orienta a mantermos a mente livre da má vontade; ter as intenções isentas de raiva e livres de inimizade, aflição e ansiedade. A segunda regra da conduta mental é o entendimento correto, isto é evitar ver as coisas de forma distorcidas. Ao abstermo-nos de comportamentos destrutivos e praticarmos Sila Paramita, é possível obter o benefício de evitar todos os problemas que surgem por atos, fala e pensamentos prejudiciais, criando uma base de confiança consigo próprio e com os outros. Além disso, a prática dessa Paramita nos ajuda a superar nosso comportamento negativo compulsivo e desenvolver o autocontrole, levando à uma mente calma e estável para agir como verdadeiros bodhisattvas. Por fim, em um estágio avançado de prática, o pensamento budista coloca o estado de transcendência da moral e a ética, como uma forma de liberdade e afastamento do sofrimento em oposição aos primeiros passos dessa prática que é, de forma simples, uma adaptação a uma imposição externa.
KSHANTI PARAMITA PERFEIÇÃO DA PACIÊNCIA Kshanti Paramita significa a perfeição da paciência e da tolerância as quais devemos praticar com pessoas difíceis, circunstâncias desafiadoras e condições adversas. Adquirimos essa perfeição com uma profunda aceitação das três marcas da existência; impermanência [anicca], sofrimento [dukkha] e não-eu [anatta]. Contudo, aceitar estas marcas não é uma atitude de resignação e complacência, mas uma ação positiva de profunda compreensão e entendimento do Dharmma. A prática da perfeição da paciência é uma prática extremamente ativa, mesmo que tenha uma característica extremamente mental é preciso uma atitude positiva de acolher, analisar e observar. Esse processo é a travessia da margem onde está estabelecida a dinâmica dos três venenos; a raiva, a inveja e o orgulho para a margem da resiliência amorosa e tolerante. Esses três venenos transitam em nossa mente criando toda forma de sofrimento a nós e aos outros. A prática de Kshanti se fortalece na meditação, no silêncio e na observação paciente de nossos obstáculos e limitações. Se desenvolve no reconhecimento e aceitação dos apegos e eversões ao nosso ser. Em seguida, na dissolução desses padrões condicionados de pensamentos, de estados mentais e de reações às condições mundanas que permeiam nossa experiência no mundo. Ksanti Paramita é a perfeição que se adquire ao se experienciar profundamente a impermanência, o sofrimento e o não-eu, libertando a mente dos apegos e levando-a para a margem da equanimidade e compaixão.
VIRIYA PARAMITA PERFEIÇÃO DA ENERGIA Viriya, palavra sânscrita, significa energia ou zelo. Viriya Paramita é sobretudo o a perfeição da coragem, do esforço heroico para atingir a iluminação. Praticar a Viriya Paramita é desenvolver o próprio caráter, obter coragem como forma de perfeição espiritual e então oferecer esses esforços de forma destemida para o benefício dos outros. O esforço e a coragem são essenciais na prática dessa perfeição, dessa forma o discípulo permanece com sua energia desperta para o desenvolvimento e cultivo de qualidades mentais benéficas e abandono de qualidades mentais prejudiciais. Contudo, somente a prática do esforço não é suficiente para despertar a energia do propósito, é preciso a persistência nesse esforço, então a energia se manterá presente. Se tiver persistência, significa que o esforço também tem energia, assim é possível considerar que o esforço vem primeiro e depois a energia em seguida. É necessário considerar também que, quando se aplica esforço e persistência a um propósito, é certo que surgirão obstáculos no caminho, o maior obstáculo nessa prática é a preguiça. Viriya Paramita é o antídoto para a preguiça. Para eliminar a preguiça faz-se necessário identificá-la. Podemos distinguir três tipos de preguiça; a preguiça da apatia, do desânimo e por estar envolvido com objetivos inferiores. O primeiro tipo de preguiça, a apatia, diz respeito a compreender que esse é o momento em que se tem o corpo certo com todas as liberdades necessárias para alcançar os mais elevados objetivos e esse tempo não deveria ser desperdiçado, assim é urgente que haja o esforço e a persistência de lutar contra o desejo do ócio e com o prazer do nada fazer. O segundo tipo de preguiça é o desânimo. O desânimo é alimentado pela descrença em si próprio e se nutre na crença de uma incapacidade de realização dos propósitos. É uma desesperança com o próprio caminho da realização da iluminação. O terceiro e último tipo de preguiça é causado por se estar envolvido com objetivos e atividades inferiores. Para vencer esses obstáculos os ensinamentos do Dharmma nos orienta a praticar Viriya paramita. Esforço e persistência geram a energia necessária para essa prática.
Ainda sobre Viriya é preciso saber que há dois tipos de energia; a energia corporal [Kayka -Viriya] evidente pelo vigor e dinamismo físico e a energia mental [Cetasika -Viriya] o entusiasmo alerta. Há também dois graus de habilidade com relação a energia; a energia comum [Pakati- Viriya] e a energia desenvolvida através da meditação Bhavana- Viriya. O melhor método para superar os obstáculos do torpor e da preguiça é o treinamento meditativo.
Viriya Paramita é adquirida e desenvolvida pelo esforço e persistência com a prática da meditação, resultando num fluxo de energia física e mental e auxiliando o praticante a alcançar suas mais nobres intenções.DHYANA PARAMITA PERFEIÇÃO DA MEDITAÇÃO Basicamente a meditação é dividida em duas correntes: Samadhi ou permanência serena e Satori que significa obter uma compreensão, um olhar profundo, um insight. Todas as nossas experiências de reconhecimento do mundo nos chega através dos sentidos; visão, audição, olfato, paladar, tato e a mente, isso quer dizer que tudo o que conhecemos e vivenciamos pelos sentidos, bem como as alegrias, tristezas, esperanças e medos são processados pela mente e acabam se tornando a nossa identidade e o referencial ao qual interagimos com a realidade. A prática da quinta Paramita permite experienciar esses elementos dissociados de qualquer interpretação, ou seja, reconhecer um pensamento somente como um pensamento, uma emoção apenas como uma emoção, ou ainda um estímulo sensorial como simplesmente uma sensação.
Um fator extremamente importante ao se praticar Dhyana Paramita é a atenção plena, que no contexto das perfeições é um fator que contribui para o desenvolvimento da meditação sentado. Atenção plena significa “lembrar”; Smriti [sânscrito], é a qualidade de lembrar-se de estar aqui e agora, que na verdade é tudo que temos. Atenção plena é estar em silêncio, diz respeito a ter uma mente completamente quieta e presente no que está acontecendo, em oposição a uma mente confusa, com diálogos, pensamentos encadeados, memórias e opiniões que se contrapõem criando um denso ruído de fundo que nos hipnotiza e nos induz a um constante sonambulismo. O ponto vital da atenção plena é a sensação de presença, de conhecimento e de estar consciente de lembrar que seu inimigo direto é o esquecimento. A prática de Dhyana paramita é muito simples, o grande desafio é mantê-la constantemente.
Nos seus ensinamentos, Buddha dividiu a atenção plena em quatro aspectos; atenção plena ao corpo, atenção plena às sensações, atenção plena aos fenômenos externos e atenção plena a própria mente. Estes aspectos são objetos mentais, independentes para a contemplação, sem que possuam um sentido absoluto de realidade intrínseca. A atenção plena é uma prática intensa, dependente de energia e onde desejos, apegos e aversões são apaziguados. Nessa prática, a mente, a partir de um lugar totalmente livre de manifestações e diante dos quatro aspectos da atenção plena, pode focar diretamente naquilo que é perturbador e dissolver esses estados. Esse processo gera lucidez e leva à uma clareza final sobre a vacuidade de todas as experiências, mesmo que a procura seja simplesmente por estar plenamente atento.
Por fim, atenção plena é sinônimo exato de Zazen _ Shikantaza; o apenas sentar. No zen é considerado o caminho direto. O praticante tendo dentro de si a base da lucidez de Buddha, a partir de suas imperfeições, pratica a paramita da meditação para chegar a iluminação. Pratica-se o que se é de modo imperfeito para chegar a perfeição daquilo que é. O calmo sentar do Zazen é na sua grandeza a plena atenção refinada, Dhyana Paramita.
PRAJNA PARAMITA PERFEIÇÃO DA SABEDORIA Depois de contemplarmos os ensinamentos das Paramitas e começarmos a operar com as qualidades pacificadoras da nossa relação com o mundo, a meditação [Dhyana Paramita] poderá se desenvolver até o ponto da chamada sabedoria transcendente. Nesse ponto somos capazes de atribuir um duplo grau a realidade, nos deslocando do plano relativo para o absoluto, como quem olha para um desenho bidimensional e desloca a visão para a tridimensionalidade. Este desdobramento significa a capacidade de transformar nossas experiências externas e internas de observador separado do objeto observado [dual] para uma relação de inseparatividade com esse objeto [não-dual]. Isso se dá por causa da liberdade natural da mente, que é capaz de produzir dentro dela mesma a divisão de objeto a ser contemplado e observador que a contempla. Essa dinâmica resulta numa mente dual que passa a atuar presa aos objetos surgidos com ela, estabelecendo o primeiro movimento da mente avidya [ignorância]. É essa mente que cria o samsara; a mente que vive a separação entre objeto e observador. A prática da Perfeição da Sabedoria nos guia para a flexibilização de nossa visão e de nossas ações, tornando possível a contemplação da inseparatividade, leia-se não-dualidade e a transformação de nossas relações obtusas para a amplitude de experiências. Essa prática nos auxilia para a travessia da margem da confusão e ignorância para a margem da sabedoria e da visão da vacuidade.
Há um veículo hábil para nos conduzir nessa travessia; o Sutra do Coração da Sabedoria, que pode ser compreendido como um princípio ativo para completar a travessia de uma margem à outra. A essência desse Sutra é: “Forma é vazio, vazio é forma: forma nada mais é que vazio, vazio nada mais é do que forma”. Essas palavras são a introdução a uma experiência de contemplação da vacuidade e da criação luminosa e co-emergente das formas. A prática consiste em sustentar, por cada vez mais tempo, o olhar que compreende essa afirmação. No instante em que o ensinamento penetra na nossa experiência de mundo, começamos a transformar nossa compreensão da realidade e a desfazer a solidez das formas. A ignorância se dissipa e de uma grande abertura da mente, do Coração, do âmago, do centro da Grande Perfeição da Sabedoria surge a verdadeira compaixão, a compaixão do Boddhisatva.
Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.