Há vinte e cinco anos, numa cerimônia simples e reservada aos noviços daquela casa religiosa, o abade (monge principal) abençoou as vestes brancas e enquanto outros, que já estavam no caminho, ajudavam-no a me despir das minhas antigas roupas para agora receber estas novas roupas. Novas roupas para uma nova caminhada, embora estivessem muito longe de qualquer novidade ou modismo. Eram roupas que há séculos eram usadas por homens e mulheres na busca pela vida espiritual.
Já estava vestido como postulante, quando, nas leituras que se fazia durante as refeições do Mosteiro de São Bento de Olinda, um livro em especial me chamou a atenção. Era o livro de Enzo Bianchi que se intitulava O Manto de Elias – itinerário espiritual para vida religiosa. O livro explicava como símbolos do vestuário monástico católico podiam ser atribuídos ao modo de viver do profeta Elias, considerado biblicamente como inspirador do modelo da vida monástica no deserto.
No “monaquismo” cristão, ninguém se autoproclama monge/monja, a pessoa é vestida ou investida como tal. Outros monges mais velhos retiram as antigas roupas da pessoa que quer ser monge, que significa um despir-se de seu antigo eu, um abandono da antiga vida, como quem abandona uma roupa muito velha e rasgada que não serve mais para usar. Agora é revestido numa nova vida, tal qual o batismo cristão. Os novos companheiros de jornada espiritual, peça por peça, vão vestindo o novo monge (agora noviço) com seu hábito (roupa monástica) e essa “vestição” o investe do seu compromisso. O manto do monge o lembra a todo momento da sua escolha de vida, dos seus votos, da sua busca, da sua vocação.
O profeta Elias deixou seu próprio manto para seu discípulo Eliseu como quem deixa seu legado, sua herança e também sua missão. A tradição interpreta que, a partir daí esse modo de viver monástico e ascético, começa a ser passado ao longo do tempo para todos que desejam ser monges. O monge cristão é herdeiro do manto do profeta Elias. É uma vida dura, sem vaidades e nem conforto, longe dos prazeres mundanos, longe dos olhares, recolhida no silêncio. O monge renuncia seus cabelos, deixa sua casa, usa roupas de uma época que já passou há muitos séculos e faz votos que deve cumprir até a sua morte.
A roupa do monge também tem a função de lhe lembrar da sua própria morte. Elias não teria morrido como um homem comum, ele teria sido arrebatado ao céu ainda vivo. Aos que o seguiram, ter a morte sempre diante de seus olhos, podia ajudar na conversão de suas vidas. A roupa do monge era também sua mortalha, era seu caixão, era seu túmulo. Simbolicamente, ele morreu para o mundo em busca da sua vida com o sagrado. Em alguns rituais, inclusive, toca-se o sino fúnebre assim que o monge professa seus votos perpétuos e com seu manto completo se prostra no chão, numa atitude de entrega sem reservas… ali morreu o antigo homem.
Na minha experiência como iniciante, apenas um mero estudante do caminho monástico cristão, foi isso que procurei vivenciar: o espírito do manto de Elias. Tive mestres que foram muito inspiradores, homens realmente admiráveis, santos – se assim preferirem. Eles se dedicavam totalmente à sua vocação. É impressionante, como depois de tanto tempo, tais lembranças ainda comovem meu coração. Estava ainda na adolescência, um pouco ingênuo, tudo era tão novo e fascinante. Tudo parecia ter tanto sentido.
Nesta tradição tudo é feito para ter sentido mesmo! Cada gesto, cada olhar, cada cerimônia. Qualquer mínimo detalhe do cotidiano do monge faz com ele lembre de ficar na “presença” de Deus. Sua vida inteira gira agora em torno disso. Comigo não foi diferente, estava ávido de aprender tudo isso! Você aprende que ser monge é uma rebeldia, uma revolução!
Enquanto o mundo busca individualismo, o monge busca vida comunitária; enquanto, outros buscam bens materiais e prazeres, o monge busca ascese e renúncia; enquanto a maioria busca reconhecimento, riquezas e fama, ele busca humildade e esquecimento; enquanto outros querem permanecer jovens para sempre, ele deseja apenas ser um velho monge; ainda que muitos queiram a agitação e a distração, para ele o deleite está no trabalho e no silêncio.
Mesmo para um jovem que acabou de sair da adolescência, não é uma vida fácil. Obedecer, silenciar, converter-se inteiramente, às vezes, machuca, incomoda, angustia. Mas, viver é assim também. Foram anos tumultuados e cheios de dúvidas, muitas idas e vindas, normal para aqueles caminhos que ainda não conhecemos e que vamos desbravando destemidamente na vida. Foi muito marcante essa minha primeira experiência monástica e foi também tão doce e tão linda. Meu sorriso agora se enche gratidão. O caminho religioso se pavimenta pela afetividade também.
A transição para uma outra tradição demorou muitos anos, porque esses laços afetivos já estavam fortes e foram desatados com paciência ao longo do tempo e de outras buscas e vivências. Aos poucos, fui abandonando muitas crenças que, por apego afetivo ou por pura teimosia, ainda queria conservar. Passei um tempo desligado de tudo, passei um tempo sem buscar, só queria “deixar ir…”. E fiquei nu, porque deixei o manto cair.
Passaram também outros anos, até que, um outro manto me seduziu, e me deixei seduzir. Mas, aí já é uma outra história que vou contar depois.
Texto de Monge Taishin. Monge zen-budista na Daissen Ji. Escola Soto Zen.