O Zen Budismo É (Im)possível

 

“Vocês têm um método para viver? ”. Foi essa pergunta, feita por uma psicóloga infantil, para mim e para minha companheira de vida, que acabou levando-nos ao Zen Budismo. Perguntei-me como poderia existir um “método” para aquilo que é sem método e, mais ainda, um “antimétodo” por si, como a vida? Percebi que a psicóloga tentava dizer-nos que estávamos desamparados. Ela exemplificou, com várias filosofias e religiões, alguns métodos para a vida, afirmando, entretanto, que a maioria das pessoas não os praticava a contento. Cético, julguei negativamente aquela consulta. Depois, contudo, por causa de um dos exemplos citados, lembrei de quando conheci, na adolescência, por volta de 2004, o Budismo pela escola Nichiren, a convite de um amigo. Após algumas reuniões, larguei. Mas algo havia ficado guardado em mim: a afabilidade indescritível daquela religião oriental sem deus. O afável tem origem na ideia de vazio no Budismo. A mãe do meu amigo, na época, tentou explicar-me que o vazio (Shunyata) é indistinguível de todos os seres interdependentes como se fosse um com as formas, tanto da natureza quanto dos seres, nele não há a personificação humana de um “pai” ou um “patrão” que julga, premia e pune. Essa memória veio-me como uma leve brisa. Resolvi estudar as vertentes budistas e escolher uma que me agradasse para tentar praticar e experimentar mais profundamente. No fundo, era para tentar compreender e comprovar a possibilidade da existência de um “método” para o “antimétodo” que é a vida. Assim, encontrei-me com o Zen.

O Zen é centrado na prática da “meditação” zazen, meditação sentada diante de uma parede branca, cuja orientação básica é precisamente não “meditar” sobre nada, nem seguir as ordens dos pensamentos, apenas deixá-los vir e ir, colocando-se em cada instante plenamente no presente, algo que me fez lembrar, no início, o escrivão Bartleby, o famoso personagem de Melville, com sua postura firme, do “prefiro não fazer”, para com as ordens do patrão. Nesse cenário, o Zen fisgou-me de imediato, pelo contentamento da interrupção e da possibilidade de “não fazer nada” contra o imperativo da produtividade do tempo contemporâneo. Não imaginava o quanto uma parede branca, ao invés de um espelho, fosse mais importante para conhecer a si mesmo. A maiêutica de Sócrates mostrou-se pequena diante da parede daqui de casa. O zazen espelha, primeiramente, de maneira abissal, o nosso “eu”, para depois, dissolvê-lo, mostrando-o como uma construção ilusória, existencialmente necessária, mas ilusória, constituindo uma delusão fundamental que nos impede de enxergarmos plenamente a realidade dentro de nós e a um palmo de nós, principalmente, a realidade como ela é. Em seguida, o Zen ganhou completamente meu coração quando me ofereceu como prática complementar ao zazen poemas, contos e “koans” (pequenas histórias públicas paradoxais). Com essas práticas se pode alcançar a iluminação, a experiência espiritual fundamental do Budismo, o despertar das ilusões para a compreensão última da realidade. Não é possível, porém, ter acesso a essa experiência apenas pela linguagem, pelas concepções intelectuais e, portanto, também é impossível explicá-la em palavras para quem não teve a mesma experiência (eu ainda estou longe de chegar nas etapas iniciais, mas já sinto uma verdade na experiência e encontrei algo de maravilhoso nela e aqui). Ainda assim, é possível tentar dizer algo sobre a iluminação a partir dos ensinamentos dos mestres: despertar para realidade essencial é ser despertado pela miríade de todos fenômenos, é ser um múltiplo com tudo e com todos, é compreender o tudo para além das dualidades conceituais. Por isso, o treinamento e a “limpeza” mental do zazen, a rasura, a exaustão da linguagem dos poemas, as aporias, os paradoxos dos contos e dos koans. Nunca imaginei a existência de uma religião que tivesse como prática central apenas sentar, experimentar plenamente o presente, ler atentamente poemas e contos.

Essa prática religiosa ainda me deu mais força de vontade por ser sempre feita de maneira coletiva, com o pressuposto da igualdade da natureza búdica (a possibilidade do despertar) de todos os seres e da igualdade como prática na comunidade, dentro da genuína tradição que se remete ao Sakyamuni Buddha. Sentamos como senta um monge, lemos como lê um monge, recitamos como recita um monge, escrevemos como escreve um monge. Sentamos, lemos, recitamos e escrevemos juntos como o nosso mestre, porque um monge, afinal, assim como o Buddha histórico, é um ser humano como qualquer um de nós, é uma das formas do vazio. A vacuidade une-nos e constitui-nos, é o comum maravilhoso da nossa (inter-) existência. Nesse sentido, permitam-me, leitores, permita-me, meu mestre monge Genshô, forçar a linguagem e a comparação: se a poesia é o componente crucial e indescritível totalmente da realidade, a força maravilhosa e pulsante da vida incapturável em sua completude pela linguagem, ou, para dizer junto com Octavio Paz[1], é “conhecimento, salvação, poder”, “operação capaz de mudar o mundo”, dinâmica “revolucionária por natureza”, “exercício espiritual” e “método de libertação interior”, é, enfim, “prece ao vazio, diálogo com a ausência” e “experiência inata”,  a poesia é, portanto, semelhante à experiência com o vazio, a experiência com o “deus” Zen. Assim, fundamentalmente, o Zen me presenteou com três tesouros: 1) a possibilidade de tornar-me verdadeiramente um poeta, um Buddha, ainda que não seja um poeta de fato; 2) as poesias dos ensinamentos, do Dharma, mesmo quando não estão na forma de poemas; 3) a comunidade de poetas em potência, a sangha. Portanto, para mim, o Zen Budismo pareceu uma religião irrecusável.

Mas o Zen, assim como a poesia, é uma experiência enganadoramente simples. Fazer zazen, ler atentamente poemas e contos do Zen Budismo e praticar os ensinamentos são extremamente desafiadores e difíceis. Simplesmente porque a vida é desafiadora e difícil quando estamos submersos nos sonhos ilusórios de um “eu” separado e soberano. No entanto, o Zen ensina-nos, a poesia também, que a beleza mais vital inclui o tortuoso e a dor. Por isso, a imagem da flor de lótus é um dos grandes símbolos do Budismo, ela nasce na lama. Inspirado nesse princípio paradoxal, e no título de um grande livro do monge Genshô, “O pico das montanhas é onde estão os meus pés”, nessa minha curta prática no Zen, de quase um ano, tentei traduzir essa experiência no seguinte Haiku:

 

Na rua há lama

Piso e vejo o pico

Belo da montanha

 

Portanto, na perspectiva de minha pequena experiência, o Zen Budismo é simplesmente improvável e impossível e, ao mesmo tempo, justamente por isso, é também profundamente provável e possível. O zazen é um treinamento da mente precisamente para experimentarmos a não contradição e não dualidade da realidade. De maneira semelhante, os koans dispõem situações e enigmas supostamente absurdos, confrontando aparentes oposições, insolucionáveis para a mente conceitual, como modo de tencionar insights da experiência de não dualidade da vida. Experiências-chaves para ser um infinito com tudo. Agora, escrevendo esse depoimento, percebi qual foi meu primeiro koan na prática do Zen: como experienciar uma prática religiosa como método para viver, se a vida é o “antimétodo” por natureza? Só tenho uma resposta: continuar sentando em zazen e lendo ensinamentos poéticos do Zen.

 

Texto de Thiago Roney. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

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