O tempo nunca chega

 

Aujourd’hui, maman est morte, Ou peut-être hier, je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile: “mère décédée enterrement demain. Sentiments distingués”. Cela ne veut rien dire. C’était peut-être hier.

Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: “Mãe morta.
Enterro amanhã. Sentimentos sinceros”. Isso não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.

(Albert Camus – L’Étranger)

 

A passagem que escrevo acima me vem sem esforço, porque há um pouco mais de 10 anos tive de memorizá-la para a aula de francês. E esse talento – Não foi treino, foi talento mesmo – passa de geração em geração em minha família. Minha mãe é um calendário e uma agenda telefônica ambulantes. Minha irmã mais velha decora peças teatrais inteiras.

E eu sou uma mistura das duas. Mas foi da minha avó materna que herdamos isso. E dela, também, é que me veio a mania – e já não o talento – de cantar estimulada por uma palavra aleatória, vinda de uma frase jogada. 

Eram recorrentes momentos tão casuais como o de estarmos, eu e meu pai, na sala, ele tentando me convencer a aplicar a fórmula de Bhaskara, e eu tentando dissuadi-lo, justificando-me

com voz irritada “Não, pai. O professor não resolve assim! Aí eu não estou acostumada!”. E à minha fala se impunha um eco cantante: 

“Você me deixôôôô, malacostumada, com o seu amôôô!”…

A primeira vez que li essa passagem de “L’Étranger”, fiquei bem intrigada por saber que telegramas são sempre datados, de forma que se saberia quando o remetente teria mandado a mensagem – dia 15 ou 16 – e, assim, o suspense sobre se definir o “hoje” e o “amanhã” do texto estaria desfeito. 

Tentei formular contextos em que escrevemos referências temporais condizentes com a realidade cronológica do nosso destinatário, e aí qualquer confusão poderia ser possível para que a frase, então, fosse aceitável. Fato é que a vida ainda não havia me preparado para que, anos depois, eu não incorresse no erro de só perguntar à minha irmã: “Mas quando ela morreu?”.

Agora, vejo que o sábio teria sido: “em que dia do mês ela morreu?”. Isso porque hoje, já não mais em contato com a minha família – escrevo estas palavras já dias depois de ter recebido a notícia -, não sei em qual dia de 2025 será o aniversário de morte de minha avó: “15 ou 16 e fevereiro?”; não sei.

A cada final de Angō, Dōchō Rōshi oferece-nos um ryaku handai, e comemos café da manhã ocidentalizado. E, no término do último shusoryo, não foi diferente. 

Na verdade, foi sim. Pois eu, pela primeira vez, era uma das pessoas a preparar o café da manhã. E lá estava, na cozinha, inventando codinomes, acrescentando “Santo” ao  nome dos monges, ao invés de “San”. Essa minha mania de apelidar as pessoas fazendo jogos de palavras, também herdo de minha avó. Meu avô chamava-se Orfir,

mas ela – e somente ela – o chamava de “Aufiro”. Um dia, indaguei: “Vó, por que você chama o vovô assim?”, com deboche de carioca do subúrbio, que lhe servia de assinatura, sem hesitar, revida: “O marido é meu, chamo do que quiser” – rimos juntas. Acabo de me lembrar, inclusive, de quando Muryo ainda era Thomás. Eu o chamava de Thomas Jefferson, outras vezes, ainda, de “T.J.”. 

Naquela manhã, então, era Asa Tenzo. Faríamos french toast, salada de frutas com iogurte, pão com manteiga – também foi com minha avó que aprendi a comer manteiga com pão -, café, geléia. Ou seja, não tinha como ser uma manhã ruim.

Cheguei à cozinha antes do shinrei. Com minha lanterna, sozinha, comecei a organizar os ingredientes. Tudo estava de acordo com o planejado. O relógio a meu favor, os bowls já separados, o aquecedor a lenha já deixava o lugar mais aconchegante e a manteiga menos dura. “It feels like home”, mal completei o pensamento e o telefone da cozinha tocou. Quando não se fala japonês, como eu, evita-se atender o telefone.

Mas, naquele dia, quase todos estavam na Chōka, então, foi meu “moshi, moshi, Kakujidesu” que teria que ser respondido. Ninguém do outro lado. Tocou de novo.

Nada. Depois de algumas ligações que não se completaram, finalmente chegou-me a notícia: “Então, vovó morreu”.

A voz da minha irmã era a de sempre, a minha que estava engasgada. E burra. 

Perguntava o que se não pergunta, pensava o que não se pensa. E ao meu “quando”, a resposta foi “hoje”; um hoje que não saberei precisar.

Quando o Genshō Sensei veio para nos visitar em dezembro, trouxe-nos duas cartas.

Uma da minha sogra, outra dos meus pais. Esta última continha quase nenhuma

palavra, eram fotos, acompanhadas de legendas, com tom de boletim de informação:

“Todos aqui tivemos covid. Foi pesado. Sua avó não se levanta mais da cama desde então”.

Há uns 20 anos, ela já não gozava de saúde plena – morreu aos 92. Tinha senilidade.

Nos últimos 5 anos ela “não estava mais aqui”, era o que até eu dizia. Hoje, percebo, que, sim, ela estava. Olhava para ela, e a via. Era ela que não me via mais. Ela, uma das pessoas que mais me enxergou. Nos constantes sumiços do mapa que meus pais davam, ela aparecia. Como caída do céu – na verdade, era de Cometa mesmo que vinha, na ponte rodoviária Rio-Campinas.

Largava a vida que tinha e despencava “nesse gelo de São Paulo”, como gostava de murmurar, e na companhia de três netos chatos que de tudo reclamavam. Menos da comida maravilhosa e farta que só ela fazia. 

Quando participei do musical Cats, era só ela que estava lá. Quando dancei na ópera Aida, de novo, só ela. Foi ela, também, quem me viu ir para o palco duas horas depois de eu ter quebrado o cóccix – palavra que sei escrever desde os 14 anos por causa desse episódio.

Escutando minha irmã ao telefone, pensava “que karma este o meu, estar longe da minha mãe e não poder dar todo o apoio que gostaria…”. Quantas não foram as vezes em que, inclusive, questionei-me sobre o karma que levou minha avó a passar tantos anos viva, cheia de dores, rancores infinitos, frustrações assombrosas. 

Nos episódios constantes de delírios que tinha, as histórias que vivia eram sempre de medo e angústia. Nunca acordava, achando-se feliz. Ela sempre repetia contos de abandono e padecimento que seu cérebro havia inventado. Somente no último ano, quando suas forças diminuíram, ela alcançou uma quietude maior, mesmo que também não pacífica.

Depois do café da manhã, fui à casa de Dōchō Rōshi, contar-lhe do falecimento de minha avó. Ao me ver, reagiu:

– Kakuji-san daijoubudesuka?

– Não. Minha avó morreu.

Arregalando os olhinhos puxados:

– Você terá que ir embora?

– Não. Mas tô muito triste.

– Vamos fazer um hōji para ela amanhã de manhã!

Consegui, então, telefonar para os meus pais. Em uma chamada de vídeo, depois de quase 5 meses sem vê-los, sem nos falar, lá estávamos, Muryo e eu, com meus irmãos, minha mãe, meu pai. Aconselhávamos meus pais – que passaram décadas vivendo para cuidar dela em casa – a inventarem uma nova vida. E, na hora, só pensei: “é só isso que é a vida; pura invenção”.

Durante a noite, houve ensaio para o hōji da minha avó, pois Dōshō Rōshi quis fazer algo muito especial, e as funções estavam redistribuídas. Ao som de Tzuize Goeika, vindo do hatto, Muryo relembra nosso último retiro no Brasil, antes de termos embarcado aqui para o Japão. Lá, havíamos também recebido uma ligação para nos avisar que minha sogra estava sendo hospitalizada.

A segunda noite do sesshin, passamos na UTI com ela. Ela dormia no leito, eu na poltrona, e Muryo zelava nossos sonos em kinhin. Ela havia caído e estava com um grande coágulo, correndo risco de perder a vida. Avisamos meu cunhado, quem – como minha avó – deixou tudo e foi imediatamente do Rio para SP. No leito, minha sogra ordenou que voltássemos para o sesshin. Fomos. 

Chegamos na hora do shinrei.

Zazen, kinhin, zazen. Eu de jikido. Na primeira frase do Ino, não era possível conter mais uma única lágrima. Por muito tempo Makahannya Haramita lembrava-nos

hospital. Mas até isso passou. 

Porque tudo passa.

Tínhamos só aquelas horas longe do celular, e durante a cerimônia, tudo poderia estar acontecendo lá no hospital. Só depois do café da manhã é que teríamos qualquer

informação – e nem na cozinha estávamos trabalhando, para receber informações mais facilmente. Um dia inteiro de zazen, kinhin, zazen, descanso, dokusan, zazen, ensaio para a próxima cerimônia de jukai, e nada de telefonemas. E assim você se acostuma com a esperança de estar tudo bem; a falta de notícias relaxa o cérebro.

Quando Genshō Roshi foi embora aqui de Toshōji, deixou-nos com a saudade, mas também com a força de sua presença. Em poucos dias, já nem mais pensava na carta de meus pais. Estávamos no Rohatsu sesshin, e só depois de semanas é que mostrei a carta para Muryo. E, mais uma vez, tudo foi engavetado. O agora que vivo aqui abafa qualquer preocupação com coisas que não posso resolver.

Na manhã de um possível dia seguinte àquela morte atemporal de Dona Áurea Ferreira Chagas – nome que ocupou o altar de Tōshōji por algumas horas -, cada sino, gon, cleck, poc, tudo era um último pulsar dela em mim. O tempo do amanhã, hoje, da criança que passava as férias na avó, era todo o ser. E eu ficava como o mokugyo me dizendo:

“cada momento é todo o ser, é o mundo inteiro. Reflita agora se algum ser ou qualquer mundo é deixado de fora do momento presente. O tempo-ser tem a qualidade de fluir. O assim chamado hoje flui para amanhã, o hoje flui para o ontem, o ontem flui para o hoje. E hoje flui para hoje, amanhã flui para amanhã. Porque fluir é uma qualidade do tempo, momentos do passado e do presente não se sobrepõem ou se enfileiram lado a lado. […] Em essência, todas as coisas no mundo inteiro estão ligadas umas às outras como momentos. Porque todos os momentos são o tempo-ser, eles são o seu tempo-ser. Você pode supor que o tempo esteja apenas passando, e não entender que o tempo nunca chega”. (Dōgen)

Desta vez, a trilha sonora da morte foi Daihishin Darani regado à Baika. E em cada Chōka é ainda nela que penso. Mas também vai passar. Pois nunca chegaremos.

O ihai de minha avó feito por Dōchō Rōshi já está pendurado na porta do meu quarto aqui de Tōshōji. 

Caminho pelo keidai como quem anda em um set de filmagem. Que templo lindo! Estar aqui com meu amor de vidas, fazendo um treinamento monástico, ativamente inventando vidas! Que karma bom é esse da minha avó! Conseguiu esperar até que sua neta fosse monja e estivesse aqui em Tōshōji. E que karma bom esse o meu! Pude dar aos meus pais o que nunca poderia, se estivesse lá no Brasil.

 

Texto de Monja Kakuji 覚慈, Monja na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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