No Budismo há a concepção de fracasso? O que seria não lograr êxito em algo que havíamos tanto almejado? Isso é realmente importante? Bom, a priori, se faz necessário compreender que vivemos num mundo dual, isso significa que haverá sempre dois lados, o famigerado maniqueísmo: bom e mau, belo e feio, vitória e derrota, riqueza e pobreza, amor e ódio etc. Este mundo das vicissitudes corresponde à instabilidade das coisas, portanto, a todo momento coisas boas e más podem nos acometer, pois estamos subjugados pelo apego, o que corresponde em uma das principais causas do sofrimento.
Contudo, apesar de haver os dois lados da moeda: o absoluto e o relativo, sendo o sofrimento inerente à compreensão relativa das coisas, deveríamos não dar a devida importância aos nossos sentimentos? Desconsiderar nossas derrotas? A realidade é que não somos Buddhas, portanto, não obtemos completo discernimento, e necessitamos olhar-nos de modo compassivo. Para transitarmos nesse mundo quimérico, precisamos de um “eu”, e assim sendo, não conseguimos furtá-lo das mais variadas intempéries que surgem ao longo do seu itinerário. O erro, o fracasso, trata-se de elemento imprescindível para impulsionar-nos a enxergar a verdadeira essência das coisas, em um maior aprofundamento, ultrapassando a mera camada epidérmica da existência.
Um belo exemplo acerca do fracasso, ou até mesmo triunfo, pode ser visto na Magnus Opus “O Velho e o Mar”, do renomado escritor Ernest Hemingway, que traz à lume a vida de Santiago, um velho pescador que passa 84 dias sem fisgar um peixe sequer, e por conta disso, pretende lançar-se em alto mar, numa missão de auto-redenção. Alvo de várias piadas pelos pescadores, o protagonista não hesita que conseguirá tornar-se respeitável novamente, e decide partir sozinho em sua jornada.
O ponto alto do livro, para além dos brilhantes monólogos de Santiago, é quando ele consegue fisgar um espadarte de tamanho descomunal, e a partir disso, segue na árdua tarefa de matá-lo. O pescador atravessa dias e noites a fio, com sua alimentação racionada, e enfrentando dificuldades pelo extremo cansaço, mas com sua perseverança, consegue acertar um arpão no enorme peixe, dando cabo à sua vida. Mal havendo tempo para regozijo, nota-se que o sangue de sua presa começa a atrair vários tubarões, e o velho não vê outra saída, senão, enfrentá-los com as poucas ferramentas que tem em mãos. E vence-os, mas não evita que seu espadarte seja despedaçado, chegando ao porto apenas com sua gigante carcaça anexada ao barco, o que impressiona a todos.
Perceba, o velho pescador levou apenas o esqueleto do espadarte ao porto, mas isso ainda sim, é uma bela vitória, concorda? Os fracassos podem ser considerados verdadeiras superações. Praticar o zazen, e a plena consciência possibilita-nos encarar as adversidades comedidamente, extraindo significados dhármicos salutares, que escapam do ciclo de infindáveis repetições, que é o Samsara, fruto da concepção relativa de não enxergar a totalidade das coisas. Surgindo, assim, o “eu” que é percebido por meio dos agregados: corpo, sensações, percepções, formações mentais e consciência, que criam suas camadas.
Desse modo, essas camadas do “eu” originam o apego, aversão e ignorância, ao qual o Buddha chamou de venenos da mente, e esses venenos obscurecem-nos de tal forma que apenas enxergamos a dualidade, e consequentemente sofremos pela fluidez das coisas, as quais não conseguimos vislumbrar estabilidade. As vitórias são efêmeras, bem como, as derrotas; todavia, no plano do absoluto tais conceitos são irrelevantes ante a Unidade de todos os seres. E ao estudar o Zen podemos desvencilhar-nos desses grilhões, como pode ser expressado no ensinamento do mestre Dōgen: “Estudar o Zen é estudar a si mesmo, estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo, esquecer-se de si mesmo é ser iluminado por todas as coisas“.
Texto de José Soares. Praticante da Daissen Ji. Escola Soto Zen
Referências:
HEMINGWAY, Ernest. O Velho e o Mar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 103ª ed. 2021.
GENSHŌ, Monge. O Caminho Zen. Florianópolis SC: Conselho Editorial Daissen, 2020.