As Dez Grandes Histórias de Nascimento do Buda e as Dez Perfeições do Budismo Theravada
Parte I – Introdução
Os contos játacas são parte da literatura budista em todas as formas de budismo existentes. Entretanto, sua popularidade nas diferentes regiões por onde o budismo se estabeleceu é desigual. É nas culturas do Himalaia, do Sul e do Sudeste Asiático, onde as játacas encontraram mais apresso, convertendo-se em elementos centrais de diversas práticas religiosas populares. No budismo theravada em especial, elas conquistaram um espaço sem rivalidade, muitas das vezes sobrepujando a popularidade dos sutas entre os leigos. Em países como a Tailândia e o Mianmar, as játacas são onipresentes nas artes e integram até mesmo práticas coletivas de tranquilização da mente. Curiosamente, as játacas são menos populares no ocidente, onde o budismo é comumente associado a determinadas qualidades como mansidão, equilíbrio e abandono de paixões exacerbadas. Talvez devido a esse estereótipo de religião desapaixonada, as játacas tenham atraído relativamente pouca atenção de budistas ocidentais, uma vez que suas tramas shakespeareanas estão repletas de paixão, desgoverno, insensatez e excitamento. Mas o que são exatamente as játacas e por que elas importam? Nesta série de textos que se inicia, pretendo mergulhar na história das Dez Grandes Játacas e explorar seus personagens, enredos e sua relação com as Perfeições (Pāramī) do budismo teravada. Este primeiro texto será uma introdução geral ao tema, enquanto cada próximo salientará uma játaca por vez.
As representações dos játacas são comuns nos templos tailandeses. Foto: TimsThailand.com
Histórias de nascimento
De acordo com a tradição, o Buda histórico precisou atravessar várias vidas antes de conseguir acumular as qualidades necessárias para atingir o Despertar. As várias vidas pelas quais ele passou tomaram a forma de narrativas conhecidas como játacas. Nelas, o futuro Buda (Bodissata) costuma ser o personagem principal, ora sendo um animal ou um camponês, ora sendo um rei ou uma dama – ou qualquer outro personagem. Em cada história, o Bodissata enfrenta adversidades múltiplas, desenvolvendo os atributos e habilidades que serão indispensáveis para que ele se torne o futuro Buda. Únicas em seu estilo literário dentro do cânone budista, essas narrativas sobressaem-se por serem verdadeiros épicos ou epopeias, onde personagens ricos, complexos, ambíguos, falhos e/ou virtuosos enredam-se em intricadas teias de acontecimentos que envolvem desde tentativas de golpe de Estado até disputas cosmológicas entre divindades. Talvez muita gente acredite que esse tipo de trama se assemelhe mais com A Guerra dos Tronos do que com o que se espera de um texto budista. Entretanto, a realidade é que as játacas são imensamente populares na Ásia e é importante que os budistas brasileiros entendam o porquê.
As játacas theravada (Jatakatthavannana) costumam ser a referência primeira quando se fala dessa literatura budista, pois a coleção presente no Khuddaka Nikaya é considerada a mais completa sobrevivente. Ela é composta de 550 histórias (das quais apenas 547 remanescem) descrevendo os nascimentos anteriores do Buda (ver Tabela 1). Por isso são geralmente chamadas de Histórias de Nascimento do Buda. O Buda teria contado essas histórias com o objetivo de ilustrar seus valores e ensinamentos ou para explicar determinados comportamentos de pessoas com quem ele se relacionou ao longo de sua vida. Dentre as 547 histórias de nascimento, as últimas dez se destacam. As Dez Grandes (ou Mahanipāta), como são conhecidas, não apenas são as mais longas e complexas como também as mais populares, servindo de inspiração para apresentações teatrais, pinturas e altos-relevos em templos budistas há séculos. A tradição teravada associou cada uma dessas histórias às Dez Perfeições (Pāramī)[1], o que significa que em cada uma dessas vidas o Bodissata precisaria desenvolver ou aprimorar em especial uma das perfeições, abrindo assim o caminho necessário para que em sua última vida (como Gotama) pudesse atingir o Despertar.
Tabela 1 – Disposição da coleção Jatakatthavannana por seção | |
Título da seção | Numeração das histórias |
Eka (Um) nipāta | 1-150 |
Duka (Dois) nipāta | 151-200 |
Tika (Três) nipāta | 251-300 |
Catukka (Quatro) nipāta | 301-350 |
Pañca (Cinco) nipāta | 351-375 |
Cha (Seis) nipāta | 376-395 |
Satta (Sete) nipāta | 396-416 |
Attha (Oito) nipāta | 417-426 |
Nava (Nove) nipāta | 427-438 |
Dasa (Dez) nipāta | 439-454 |
Ekadasa (Onze) nipāta | 455-463 |
Dvadasa (Doze) nipāta | 464-473 |
Terasa (Treze) nipāta | 474-483 |
Pakinnaka (Misto) nipāta | 484-496 |
Visati (Vinte) nipāta | 497-510 |
Timsa (Trinta) nipāta | 511-520 |
Cattalisa (Quarenta) nipāta | 521-525 |
Pannasa (Cinquenta) nipāta | 526-528 |
Satthi (Sessenta) nipāta | 529-530 |
Sattati (Setenta) nipāta | 531-532 |
Asiti (Oitenta) nipāta | 533-537 |
Maha (Grande) nipāta | 538-547 |
Nem sempre está clara a relação entre uma játaca e a perfeição a ela atribuída. A tradição tailandesa converteu-se numa espécie de padrão quando se fala nessa associação. Entretanto, em outras fontes em Páli como o Jataka-Nidana e o Cariyapitaka, algumas játacas possuem atribuições diferentes da versão tailandesa. Por exemplo, enquanto os tailandeses associam a játaca de Nemi com a perfeição da determinação, os outros escritos relacionam o conto de Nemi com a generosidade. Entretanto, as três fontes concordam em outras situações. A relação entre a perfeição da generosidade e o conto de Vessantara, por exemplo, é unanimidade. A seguir, uma tabela com as játacas e suas respectivas perfeições na tradição tailandesa.
Tabela 2 – As Dez Grandes e suas Perfeições associadas na tradição tailandesa | ||
História | Motivação para o relato | Perfeição |
Temiya | Discussão sobre a grande renúncia | Renúncia |
Janaka | Discussão sobre a grande renúncia | Energia |
Suvannasama | Debate sobre o apoio aos pais | Amor Bondade |
Nemi | Um sorriso (também se refere à renúncia) | Determinação |
Mahosadha | Discussão sobre a perfeição da sabedoria | Sabedoria |
Bhuridatta | Discussão sobre a observância do Uposatha | Virtude |
Candakumara | Discussão sobre a tentativa de homicídio de Devadatta | Paciência |
Narada | Discussão sobre a habilidade do Buda em eliminar visões erradas | Equanimidade |
Vidhura | Discussão sobre a perfeição da sabedoria | Verdade |
Vessantara | Uma milagrosa chuva de lótus. | Generosidade |
A associação entre as Dez Grandes játacas e as perfeições contribuíram, sem sombra de dúvida, para sua imensa popularidade e perseverança no imaginário popular. Entretanto, as játacas fazem mais do que demonstrar as perfeições do futuro Buda. Suas histórias estão repletas de personagens diversos e multifacetados que interagem com o Bodissata. Sua grande variedade possibilita que sejam explorados problemas reais com os quais os leigos se deparam. Em outras palavras, acabam servindo de exemplo de como pessoas comuns podem aprimorar as perfeições enquanto enfrentam situações e desafios do dia a dia. Através de diálogos e debates de intenso caráter dramático, juntamente com descrições épicas de cenários e personagens, as játacas assumem um posto dentre as maiores obras literárias do mundo antigo, o que sua popularidade tanto como entretenimento quanto como texto religioso atesta. Nas játacas, o caráter e a coragem do futuro Buda e de seus seguidores são colocados à prova na relação que estabelecem entre si, e o resultado final é o aperfeiçoamento de virtudes. Nesse sentido, o Buda e seus seguidores são representados como majestosos heróis épicos, tal qual vemos em poemas como A Ilíada e A Odisseia. Dessa forma, o leigo consegue estabelecer uma ligação com os personagens e é capaz de retirar deles qualidades que deseja espelhar.
Personagens: O Bodissata, seus familiares e amigos
Não é apenas o Buda que aparece nas Játacas. Vários de seus amigos e familiares já cruzaram seu caminho em outras vidas. Os pais do Buda, sua esposa, seu filho, bem como discípulos seus como Ananda, Mogalana, Sariputa, Upalavana e Devadata são alguns exemplos de personagens que aparecem em vidas passadas no Mahanipāta mais de uma vez. Em geral, esses personagens desempenham nas Dez Grandes papéis e funções similares às que desempenham na vida do Buda Gotama. Os pais do Buda, por exemplo, costumam ser os pais do Bodissata, exceto no Candakumara (onde o pai do Bodissata é identificado com um vilão) e no Suvanasama (os pais de Sama são identificados como vidas passadas de Kassapa e Bhaddakapilani).
Os discípulos do Buda talvez sejam os personagens dos sutas que mais apareçam em versões de vidas passadas nas Dez Grandes. Sariputa e Mogalana, os dois discípulos chefes do Buda são personagens coadjuvantes recorrentes. Ora eles são amigos ou irmãos, ora ajudantes, discípulos ou protetores do Bodissata. É Ananda, entretanto, que presenteia o leitor com personagens de vidas passadas mais interessantes. Assim como o próprio Ananda, que é sempre descrito nos sutas como um discípulo menos bem sucedido do que Mogalana e Sariputa, as vidas passadas do primo e ajudante do Buda estão abarrotadas de personagens riquíssimos, cheios de nuances e ambiguidades. Ele pode ser um rei impiedoso que depois se torna virtuoso, ou uma pessoa que gosta de fazer apostas, ou mesmo um membro de uma família de caçadores. Ananda também surge como uma divindade secundária ou mesmo como mulher (o que é raro, uma vez que nas narrativas budistas da Dez Grandes, troca de gênero é algo incomum), prova de sua associação com a sanga feminina[2].
Os adversários do Buda também marcam presença no Mahanipāta. Devadata, o primo do Buda que tentou matá-lo e dividir a sanga é costumeiramente representado como um vilão. Nas Dez Grandes ele aparece como um maligno brâmane nada menos do que quatro vezes[3]! Outro famoso adversário do Buda nos sutas é Sunakkhatta, um príncipe que deixou a comunidade monástica budista sob a influência de professores detratores do budismo e depois passou a espalhar acusações contra o Buda. Ele revela-se nas Dez Grandes em duas ocasiões como um professor que ensina coisas erradas. Na primeira, ele ensina a religião védica, enquanto na segunda, advoca o fatalismo.
As mulheres nas Dez Grandes
Produto de sociedades patriarcais, as játacas privilegiam os homens em detrimento das mulheres. Em nenhuma das histórias do Mahanipāta, por exemplo, o Bodissata é uma mulher[4]. O entendimento misógino de que o nascimento como mulher é um infortúnio aparece vez ou outra em certas passagens budistas. Os mesmos textos budistas, entretanto, contradizem-se ao afirmarem mais de uma vez que as mulheres têm total capacidade de atingirem o Despertar, assim como os homens. Essa tensão entre uma visão de inferioridade da mulher, por um lado, e o reconhecimento de sua total capacidade, de outro, é uma tônica presente no budismo de modo geral. O budismo foi a primeira das grandes religiões a aceitar mulheres como sacerdotes (monjas) e o Buda reconheceu diversas mulheres não apenas como discípulas, mas também como arahants (seres que atingiram o objetivo final do budismo, o nibana). Todavia, Buda nunca deixou escritos e os textos que temos hoje são fruto de séculos de compilações. As játacas, portanto, não escapam de preconceitos sociais que dominavam a sociedade indiana. Não obstante, apesar do papel das mulheres ser menor em relação ao papel masculino, as personagens femininas estão longe de serem insignificantes nas narrativas das Dez Grandes. Pelo contrário, muitas personagens apresentam profundidade e complexidade, bem como revelam-se agentes fundamentais para os enredos onde estão inseridas.
Em grande medida as Játacas falam sempre do ponto de vista masculino. Subentende-se que que os contos adotem um eu-lírico masculino monástico. Consequentemente as mulheres são comumente descritas como um constrangimento ao celibato dos monges. As características associadas à essa suposta ameaça são bastante negativas: perigosas, luxuriosas, sedutoras, manipuladoras. Há situações onde personagens femininas aparecem seduzindo monges, tentando matar as namoradas ou esposas de personagens masculinos, mentindo e manipulando seus maridos. Entretanto, os contos também retratam positivamente diversas personagens femininas, que geralmente são corajosas e gentis para com o Bodissata. De modo geral, o Mahanipāta apresenta as personagens femininas como boas e amáveis esposas e mães, igualmente capazes de seguir a vida santa e, muitas das vezes, dotadas de mais sabedoria do que os homens.
Murais da játaca de Vessantara no Wat Nong Wang, Chiang Mai, Tailândia. Foto: TimsThailand.com
Os reinos de existência
Os contos Játacas não são exclusivamente compostos de histórias humanas. Há uma miríade de situações fantásticas onde animais como macacos e leões, espíritos e até divindades protagonizam narrativas. Nas Dez Grandes, os animais têm menor papel do que em outras játacas, mas espíritos e divindades são personagens regulares e influentes. Alguns desses seres se tornaram personagens mitológicos do folclore de vários países budistas, tais como as nagas (cobra de várias cabeças) e as yakkas (gigante que pode ser violento e quando pacificado é retratado como protetor de templos budistas).
Humanos que progrediram espiritualmente são considerados superiores aos deuses. Estes, por sua vez, costumam aparecer como auxiliadores do Bodissata, agindo na melhor das hipóteses como servos do futuro Buda. Brahma, por exemplo, que é descrito como o criador do mundo em fontes hinduístas, aparece nas Játacas não como uma entidade única, mas sim como uma categoria de deuses. Nas Dez Grandes encontramos apenas um deus dessa categoria, o Narada Brahma do conto játaca que leva o mesmo nome.
Sakka, rei dos deuses e senhor do Paraíso de Tavatimsa é a principal divindade a cumprir esse papel. Sendo um deus compartilhado por hindus, budistas e jainistas, o popular Sakka é constantemente lembrado como a divindade cujo trono superaquece ou treme em decorrência da virtude de um grande ser humano. Isso se dá porque a posição dele como rei dos deuses seria temporária e poderia ser, a qualquer momento, perdida em favor de um humano. Quando sua atenção é capturada pelo movimento de seu trono, Sakka sabe que deve ir ao mundo dos homens e mulheres para descobrir quem fez seu assento se mover. Ao se defrontar com os humanos, Sakka testa suas virtudes e pode oferecer auxílio, coisa que ele faz repetidas vezes ao longo das Dez Grandes.
Administração pública e renúncia
A tradição budista – as játacas, inclusive – costuma contar uma história bastante conhecida por budistas e não budistas, segundo a qual Buda foi um príncipe que renegou o trono em favor da vida de renunciante[5]. A historiografia, entretanto, tem apontado que o Buda, na verdade, nasceu numa república e seu pai era um líder eleito. Entretanto, mesmo que Buda não tenha sido exatamente um príncipe, a forma republicana de governo não muda o essencial: o aparente contraste entre a vida mundana de um xátria (a casta de guerreiros e administradores públicos do qual o Buda fazia parte) e a vida santa como renunciante. Ao longo das Dez Grandes, o Bodissata defronta-se com essa questão recorrentemente. Enquanto algumas histórias louvam a vida como xátria e governante, outras depreciam a mesma posição, apontando o caminho do abandono das ações mundanas como a via superior. No primeiro conto das Dez Grandes, por exemplo, Temiya é um príncipe que chega ao ponto de fingir ser deficiente físico para fugir do peso de herdar o trono. O jovem Temiya sonha com uma silenciosa e simples vida na floresta. Na última játaca, entretanto, Vessantara é um rei que perde o trono e depois a reconquista de maneira apoteótica, não sem antes passar, todavia, por um período vivendo de maneira reclusa na floresta.
As diferentes formas como os personagens monarcas são descritos também oferecem uma ideia da perspectiva conflitante dentro das játacas a respeito da casta dos xátrias e suas obrigações políticas e administrativas. Enquanto a maioria dos reis são descritos como pessoas moralmente questionáveis e de habilidades limitadas, em algumas histórias (como nos contos de Suvannasama, Narada e Mahosadha) as autoridades reais são personagens que demonstram humildade ao ouvirem os conselhos de sábios. De modo geral, o Mahanipāta apresenta múltiplas visões a respeito da administração pública e governança política e, apesar de apontar para a reclusão na floresta como renunciante como a via superior, a vida como governante é descrita ora com simpatia, ora como um mal necessário (com exceção talvez do conto de Temiya), pois seria a oportunidade necessária para o Bodissata desenvolver as habilidades de liderança que ele precisa para ser professor dos humanos e deuses em sua última vida como Gotama.
É importante lembrar também que, como um xátria, o Buda tende a defender a posição dessa classe em oposição aos brâmanes, a casta que representa parte da religião védica e o bramanismo. Nos sutas o Buda sempre destaca virtudes que aprendeu com o pai, um governante xátria. No famoso Suta Agañña o Buda compara os xátrias aos brâmanes e repete diversas vezes o quanto os primeiros são superiores aos segundos “quando o padrão é o clã”, ou seja, quando se leva em conta as habilidades que cada casta desenvolve. Entretanto, o Buda conclui que “aquele com a conduta e o conhecimento consumados é o melhor dentre devas e humanos”. Isso significa que o Caminho Óctuplo é superior a qualquer casta ou clã e que quem o segue está acima de devas e humanos. O budismo, portanto, louva a casta dos xátrias ao mesmo tempo em que abre a possibilidade para que o sistema de castas seja superado através do desenvolvimento de conhecimento e virtudes, algo que está à disposição de todos, independe da origem social.
A tensão entre a administração pública e a vida como renunciante na floresta pode ser entendida como uma versão em menor escala do atrito mais geral encontrado ao longo da história do budismo, aquele que envolve a vida do leigo e a vida do ordenado. Acadêmicos das humanidades que estudam o budismo teravada tendem a enxergar uma divisão entre as práticas dos budistas leigos (que visariam renascer numa posição mais auspiciosa) e as práticas dos monges ordenados (que visariam o Despertar). No entanto, essa divisão não existe de maneira tão clara na prática. Consequentemente, a literatura budista em geral – e as játacas em particular – não opõem de maneira frontal a vida do governante à do renunciante. Um rei, assim como um leigo qualquer, pode praticar o Caminho. Apesar da vida santa como renunciante ser considerada a via superior, as játacas também validam diversos papéis sociais desempenhados pelos budistas leigos, bem como experiências meditativas ou simplesmente gestos de bondade, como parte integrante do Caminho budista.
As játacas e a literatura indiana
Para se compreender melhor as játacas é preciso entender que elas são parte de algo maior que é a cultura artística da Índia antiga. Do ponto de vista literário, elas possuem grande relação com outros épicos indianos, notadamente o Mahabharata e o Ramayana, que foram compostos na mesma época que o Jatakatthavannana e compartilham com ele temas e personagens em comum. Tais similaridades aparecem também em fontes hinduístas tardias e também em fontes jainistas.
Um desses personagens que é comum tanto nas játacas quanto na literatura indiana em geral é Indra, também conhecido como Sakra em sânscrito e Sakka em páli. Já falamos antes sobre como essa divindade auxilia frequentemente o Bodissata em vários momentos, geralmente através de deuses que estão sob seu comando. Dois dos principais deuses sob o comando de Indra – Matali e Vissakamma – também surgem como personagens em outras literaturas indianas.
Outro personagem recorrente é Narada, um mitológico sábio que aparece em diversas fontes literárias indianas. Ele é comumente retratado como um mensageiro ou como um intercessor em tramas que envolvem deuses e humanos. Na játaca de Narada, o sábio aparece como um deus da categoria Brahma. Além dele, o rei Janaka é uma figura proeminente em várias narrativas indianas e costuma estar associado à renúncia da vida mundana. Na játaca de Janaka os versos onde ele diz não se preocupar com a cidade de Mithila também podem ser encontrados no Mahabharata e na literatura jainista.
A proximidade das játacas com a literatura indiana não-budista significa menos simpatia por suas ideias do que influência cultural em comum. Um olhar mais apurado vai demonstrar que as játacas fazem uma leitura particular dos temas e personagens compartilhados com outras religiões e sistemas de pensamento. Além disso, os brâmanes – representantes da religião védica – são comumente retratados como os piores vilões, repletos de qualidades indesejáveis, o que demonstra a opinião dos compositores das játacas em relação à religião védica.
As játacas e as artes
A relação entre texto, práticas espirituais e imagens é uma das coisas mais fascinantes da história do budismo. Sabemos que representações das Dez Grandes estão entre as mais antigas manifestações artísticas dos templos budistas. Em diferentes períodos elas serviram como oferta, exemplificação, recurso didático, meio de obtenção de méritos, inspiração ou mesmo divulgação do trabalho de artistas, pintores, escultores e artesãos.
Apesar das Dez Grandes serem modernamente associadas em conjunto, nos primórdios do budismo elas eram representadas em separado. Nas famosas grutas indianas de Ajanta, por exemplo, grande parte das Dez Grandes encontram-se representadas separadamente. Janaka na caverna 1, Sama na caverna 10, Mahosadha na caverna 1, Bhuridatta na caverna 2, Vidhura na caverna 2 e Vessantara nas cavernas 16 e 17.
Em que momento as Dez passaram a representar uma perfeição cada é difícil de precisar. As dez pāramī certamente eram tema central para os budistas primitivos, mas nada que as associe às Dez Grandes são encontradas nas fontes budistas mais antigas. Apenas no século XI é que serão achadas evidências dessa associação numa sequência de pedras e tijolos de ordenação monástica de Thaton no sul do Mianmar, onde as Dez aparecem em conjunto, possuindo um significado simbólico e sequencial. A partir dessa época, as játacas apenas crescem em popularidade e as representações artísticas das dez últimas histórias de nascimento do Buda crescem exponencialmente.
Templo de Ananda, Bagan, Mianmar. Foto: Lionslayer. Link: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Ananda1.JPG
Em Bagan, por exemplo, que possui a maior quantidade de templos budistas por metro quadrado em todo mundo e é o maior sítio arqueológico budista existente, as játacas estão representadas em vários templos, incluindo o Templo de Ananda, considerado o mais belo templo birmanês e um dos mais belos templos budistas de todos os tempos. Este templo, construído pelo rei Kyanzittha em 1105 é famoso por sua arquitetura, mas também por suas placas artísticas feitas de ladrilhos de terracota esmaltado representando uma játaca cada uma. Na base da estrutura do templo que se estende de sul a oeste, há 552 imagens dos guerreiros de Mara marchando para atacar o Buda, e também uma procissão de deuses; de oeste a norte, os guerreiros da entrada são retratados sendo derrotados pelos poderes sobrenaturais do Buda; do canto sudoeste do primeiro terraço ao lado norte do terceiro terraço estão dispostas 537 placas, cada uma relacionada a uma história específica das játacas; do lado norte do segundo terraço até o quinto terraço, as representações são da játaca Temiya; o quinto terraço possui 547 placas que recontam a játaca de Vessantara, divididas em duas partes. Por fim, 537 placas na primeira camada e o segundo conjunto acima da primeira camada no telhado possui 375 placas representando as Dez Grandes.
Por volta do século XVII as Dez Grandes haviam crescido tanto em popularidade no Mianmar que haviam passado à condição de destaque na arte budista, suplantando as outras játacas. É possível que isso tenha acontecido pelo fato dos temas ligados à realeza e ao comércio terem atraído a atenção da monarquia birmanesa e da nova poderosa classe mercantil. No século XVIII esse processo estará completo, com a proeminência das Dez adquirindo status praticamente oficial. A partir de então, entende-se que as últimas vidas do Buda são a fase mais importante de seu crescimento espiritual e são indispensáveis para o desenvolvimento das perfeições do Buda.
Wat Chong Nonsi, Bangcoc, Tailândia. Foto: Supakit Pitakbanjod.
Esse processo não se deu apenas no Mianmar. No Sião (atualmente Tailândia), as Dez estão entre as representações artísticas preferidas nos murais dos templos budistas desde o período de Ayutthaya (1351-1767), convertendo-se na mais popular expressão da devoção leiga. Infelizmente, a maioria dos grandes murais do período de Ayutthaya contendo as Dez se perderam ao longo do tempo, com a notável exceção do Wat Chong Nonsi, templo localizado em Bangcoc que data do reinado do rei Narai no fim do século XVII. Desde essa época as Dez são agrupadas como uma sequência onde cada história remete a uma das perfeições. A exceção fica com a játaca de Vessantara que se tornou ao longo do tempo a mais proeminente de todas, conquistando uma posição ímpar que lhe permitiu ser vista e retratada como uma história única e excepcional, quase independente das demais.
Mural do Wat Chong Nonsi representando a játaca de Vidhura. Foto: Supakit Pitakbanjod.
Já no início do período Rattanakosin, depois da fundação de Bangcoc, as representações das játacas passam por profunda transformação. O ar cosmopolita da nova capital do Sião permite que os artistas incrementem sua arte com elementos modernos e estrangeiros. No mural da játaca de Janaka localizado no Wat Makkam No em Suphanburi, por exemplo, o barco pintado pelo artista é claramente europeu, bem como parte dos marinheiros representados. Templos dessa época onde as sequências das Dez podem ser observadas incluem Wat Yai Intharam, Wat Kongkaram, Wat Bang Yikhan e Wat Suwannaram. Ao longo dos séculos XX e XXI as Dez continuaram sendo retratadas nos templos tailandeses, embora haja uma tendência atual em dar destaque para a játaca de Vessantara.
Representações artísticas das játacas também estão presentes em outros países teravada. No Sri Lanka, por exemplo, as Dez não são entendidas como um grupo especial em sequência. Entretanto, as histórias de nascimento do Buda são igualmente populares na ilha do sul da Ásia. Diversas játacas avulsas são representadas em murais desde os tempos mais antigos, em especial a játaca de Vessantara. O Camboja, por sua vez, assim como a Tailândia, representa as Dez Grandes como um conjunto distinto, embora a tradição de refazer novas representações das játacas, ao invés de preservar as antigas tenha deixado poucas imagens antigas para uma apreciação histórica.
Nos tempos modernos, as játacas continuam sendo fonte de inspiração para diversas representações artísticas. O tailandês Somtow Sucharitkul tem montado óperas baseadas no Mahanipāta. Uma adaptação de Temiya chamada The Silent Prince estreou em Houston em 2010. Dois anos depois seria encenada em Bangcoc pela Opera Siam. Em 2014 Janaka foi encenada como uma ópera balé pela Orquestra Filarmônica Siam e pelo Coral Orpheus.
As játacas e as práticas budistas
Desde tempos remotos as játacas tem destacado espaço entre os praticantes budistas, tanto entre os leigos quanto entre os ordenados. Elas eram consideradas um dos nove aṅgās (divisões) dos ensinamentos. Ao final da maioria das játacas de curta extensão encontram-se comentários e é dito que muitos ouvintes atingiram um dos estágios do Despertar após ouvirem instruções sobre as Quatro Nobres Verdades em conexão com a játaca correspondente ao comentário anexo. Pode-se concluir, portanto, que desde os primórdios acredita-se que apenas ouvir uma das játacas com Plena Atenção e aliado com outras práticas como Samadhi e fatores do Caminho Óctuplo já é, por si só, uma prática salvífica.
Apesar de estarem presentes em representações artísticas nos murais dos templos e nas cavernas desde tempos remotos (o que indica a sua influência festiva coletiva e também seu impacto no imaginário popular), parece que foi entre os séculos XI e XIII na região central do Mianmar que as representações e interpretações das játacas – e em especial das Dez – ganharam os contornos que ainda são predominantes hoje. No reino de Bagan as játacas parecem ter constituído um núcleo muito bem conhecido de imagens e narrativas compartilhadas por birmaneses, viajantes, estrangeiros e diferentes grupos linguísticos e tribos, a partir dos quais o caminho do Bodissata foi promovido e transcendeu as barreiras da cultura, da língua e das castas.
É provável que fosse nos dias festivos que essas histórias encontrassem mais marcadamente uma expressão popular, quando eram representadas em peças, recitadas ou mesmo cantadas em diversas línguas – o Páli ou línguas locais – possivelmente acompanhadas por músicas. As játacas de modo geral apontam para virtudes como generosidade e ética e a observância do Uposatha[6]. É provável que, historicamente, as játacas fossem recontadas quando os leigos se reuniam aos monges para observar preceitos extras, usarem roupas brancas no dia de Uposatha, onde todas as atividades seriam uma espécie de Bhāvanā[7] coletiva compartilhada por todos os presentes. Dessa forma, estar num templo onde uma játaca seria representada de alguma forma, elevaria nos leigos um sentimento auspicioso uma vez que o praticante estaria na presença da história do Buda.
As játacas continuam fazendo parte dessas festividades nos dias de hoje. No Mianmar, por exemplo, uma competição anual nacional premia a melhor performance de uma das histórias do Mahanipāta. A história selecionada muda de ano para ano, mas o uso de músicas é recorrente. Especula-se que muitas dessas canções datem do século XIX.
No Vesak realizado no Sri Lanka, as játacas ganham especial relevo, uma vez que as histórias permeiam o entendimento leigo e monástico do Caminho Budista como parte da uma vida maior do Buda. Cheio de luzes, imagens e belas decorações, a arte desse dia festivo dá visibilidade aos temas abordados nas játacas, além de terem introduzido inovações recentes como músicas modernas, o que demonstra a continuidade da importância dessas histórias nos países teravada.
Conclusão
Creio que tenha ficado evidente que as játacas são muito importantes na história do budismo, especialmente no sul e sudeste da Ásia. Dentre essas histórias, o Mahanipāta – as Dez Grandes histórias do nascimento do Buda – ganhou proeminência como um grupo seleto e único que representa cada uma, uma das dez perfeições do budismo teravada. Essas histórias épicas são populares entre os leigos porque apresentam personagens humanos cheio de falhas em situações que são familiares aos budistas que não são ordenados. Nelas, luxúria, vingança e ganância são temas recorrentes, o que atrai a atenção de pessoas comuns que lidam com esses problemas no seu dia a dia. Cada história tem uma moral e oferecem lições não apenas sobre como o Buda conseguiu aperfeiçoar suas habilidades, como também amostras de leigos que fizeram coisas grandiosas e que servem de exemplo para os ouvintes.
No próximo texto, vamos dissecar a primeira das Dez Grandes játacas, a história de Temiya, o príncipe que fingia ser deficiente físico para fugir de suas obrigações como herdeiro do trono. A perfeição que vamos discutir é a renúncia. Até a próxima.
Texto de Tiago Ferreira. Praticante theravada, residente na Tailândia.
Referências
Livros:
NAOMI APPLETON, SARAH SHAW. The Ten Great Birth Stories of the Buddha – The Mahanipata of the Jatakatthavanonoana. Silkworm Books. Bangkok, 2015.
buddhasasana.com.br
https://en.m.wikipedia.org/wiki/Ananda_Temple
[1] No budismo mahayana há apenas 6 perfeições, enquanto há 10 no budismo teravada. A saber: generosidade (dana), virtude (sila), renúncia (nekkhamma), sabedoria (pañña), energia (viriya), paciência (khanti), honestidade (sacca), determinação (adhitthana), amor bondade (metta), e equanimidade (upekkha).
[2] De acordo com a tradição, Ananda seria aquele que interferiu em favor da criação da sanga feminina.
[3] O que demonstra a tensão entre o budismo e o bramanismo.
[4] Em outras játacas, entretanto, o Bodissata foi não só mulher como animal diversas vezes.
[5] Alguém que renuncia aos bens materiais e vive como andarilho errante, e sobrevivendo de doações.
[6] Dia especial de observância budista. O Buda dizia que era um dia para purificar a mente. Sua data muda de acordo com o país e segue as fases da lua. Nesse dia, budistas são convidados a assumirem mais preceitos além dos cinco preceitos comuns.
[7] Cultivo ou desenvolvimento de estados mentais saudáveis.