“Eu preciso de alguém que mostre o meu lugar neste mundo”, Rey, em Star Wars: Os Últimos Jedi.
O anseio de Rey se assemelha ao de muitos. Em diversos momentos na vida podemos nos perguntar qual é o nosso lugar no mundo, qual o sentindo da vida e tantas outras dúvidas existenciais que nos levam ao sofrimento e a confusão, mas também nos impulsionam em busca de respostas, e muitas vezes é isso que nos coloca frente ao Budismo. Rey foi levada ao caminho da Ordem Jedi.
Star Wars pode, facilmente, se colocar como uma das maiores franquias da cultura pop, com milhões de fãs em todo o mundo. O primeiro filme, Star Wars: Uma Nova Esperança foi lançado há 44 anos, depois disso foram lançados mais 8 filmes, 2 spin-offs, 4 filmes animados e 8 séries.
Desde antigamente, narra-se o mito da jornada de um herói que sai em uma aventura e se torna um componente decisivo para vitória em um conflito, nesse caminho entre a aceitação do chamado para aventura, o encontro com um mestre e a vitória sobre as crises internas e externas, o herói passa por grandes transformações. George Lucas, o criador da saga, diz que adotou o papel de recontar os mitos antigos de uma forma nova. Joseph Campbell, conhecido por seus trabalhos no campo da mitologia comparada, expostos em livros como O Herói das Mil Faces, atuou como mestre de Lucas, que observou integralmente a “jornada do herói” descrita por Campbell ao escrever os roteiros da saga clássica (Ameaça Fantasma, Ataque dos Clones, A Vingança do Sith, Uma Nova Esperança, O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi).
Tanto Lucas quanto Campbell acreditam que o mito é um paradigma para a vida, algo que mostra nosso lugar no mundo. A mitologia comparada mostra que os povos, em lugares e tempos diversos, contam sempre as mesmas histórias. Assim, narrativas concebidas nessa estrutura podem ser compreendidas por todos, pois são profundamente humanas. Talvez seja essa a verdadeira razão da permanência de Star Wars durante 44 anos. A mitologia pode sempre ser recontada, e Star Wars o faz de forma brilhante.
Mas qual seria a relação de Star Wars com o Budismo? Além de inspirar-se na “jornada do herói”, Lucas buscou inspiração em outras filosofias e culturas, uma delas é o Budismo. Segundo o estudioso budista Alexander Berzin, George Lucas em viagem a Dharamsala, na Índia, antes de fazer o primeiro filme, conheceu o mestre budista tibetano Tsenzhab Serkong Rinpoche, que também foi tutor do Dalai Lama. Há quem afirme que o Yoda foi inspirado nesse mestre budista, dizem que até a fisionomia dos dois era parecida, a face bastante enrugada, o que os leva a aparentar mais idade do que tinham. Além da semelhança física, eles tinham em comum uma grande sabedoria, humildade e um leve senso de humor. Podemos notar também nas vestes dos Jedi inspiração nos mantos dos monges zen budistas.
Além das especulações de semelhanças estéticas, observamos o Dharma permeado no conceito da Força e, com isso, nos diálogos e ensinamentos proferidos pelos Cavaleiros Jedi.
O conceito da Força, segundo Obi-Wan Kenobi, é: “um campo de energia criado por todos os seres vivos, ela nos envolve e penetra. É o que mantém a galáxia unida”. A Força é responsável pela criação de tudo, ela existe em todas as coisas e por meio dela existem os Cavaleiros Jedi. “Tudo o que um Jedi faz é imerso no fluxo das correntes e redemoinhos da Força”, foi escrito no livro Star Wars e a Filosofia, de Jason Eberl e Kevin S. Decker, isso nos faz lembrar dos monges budistas que tem o Dharma imerso em tudo o que fazem.
Se a Força é a criadora de tudo e em tudo há a Força, ela pode ser um símbolo de interdependência, nada existe individualmente, todas as coisas possuem uma energia comum, por isso nada é separado, todas são coisas fazem parte de um único cosmos e fluem entre ele e com ele. A Força é fluxo, assim como toda a existência. Como disse Mestre Yoda a Luke Skywalker, em O Império Contra-Ataca: “Luminosos seres somos nós, não essa rude matéria. Precisa a Força sentir à sua volta, aqui, entre nós, na árvore, na pedra em tudo, sim”. Yoda expressa sobre a Verdadeira Natureza.
Muitas das frases do Mestre Yoda nos remetem aos ensinamentos budistas. Como quando ele ensina Luke sobre a habilidade da telecinese e diz ao jovem Padawan para levantar a nave, em resposta Luke diz ser impossível, mas Yoda fala: “Para você tudo impossível é, não ouve o que digo eu? ” Luke retruca: “Mestre, levitar pedras é uma coisa, mas isso é totalmente diferente”; no que Yoda arremata: “Não! Não diferente é, só diferente em sua mente”. Luke então diz que irá tentar fazer a nave levitar, mas Yoda completa: “Não! Tente não, faça ou não faça! Tentativa não há”. Mestre Yoda ensina Luke que a mente pode enganá-lo, que ele precisa enxergar além das aparências, pois as coisas não são como o jovem enxerga. Nessa cena, o Mestre também expõe a Luke que ele deveria se comprometer com as coisas, as tentativas são inúteis. Em nada ajuda a nossa prática a nossa tentativa, podemos dizer a nós mesmos “hoje vou tentar fazer zazen”, essa tentativa é vazia de sentindo, será somente uma desculpa que damos a nós mesmos e em nada servirá para avançarmos no Caminho. Quando dizemos que iremos tentar fazer algo já condicionamos a nossa mente a não fazer. Nossa mente tende a nos enganar e, por isso, as tentativas são falhas, como diz Genshô Sensei: “faça, não pense”.
Uma das muitas frases emblemáticas de Yoda é: “Em um lugar escuro estamos nós, e mais conhecimento ilumina nosso caminho”. A frase também possui um aspecto budista, já que o conhecimento, a sabedoria, são essenciais em nossa prática, para que possamos nos desvencilhar da ignorância de nossas mentes deludidas. O conhecimento sobre nós mesmos, sobre a existência como ela é, torna-se indispensável para que prossigamos no Caminho de Buda.
Obi-wan, em O Retorno de Jedi, também ensina Luke sobre as delusões da mente e como as coisas não são como realmente enxergamos, quando mostra ao aprendiz que Anakin Skywalker e Darth Vader não são a mesma pessoa, ele diz: “Muitas das verdades que temos dependem do nosso ponto de vista“. Obi-wan havia ensinado isso ao próprio Anakin, pai de Luke, no filme A Ameaça Fantasma, quando diz: “Seus olhos podem trair você, não confie neles”. Nossa mente pode nos trair. Como diz o mestre zen Denshô Quintero, precisamos “duvidar da própria compreensão”.
Shmi Skywalker, mãe de Anakin, também contribui com um ensinamento valioso, em Ameaça Fantasma: “Você não pode impedir a mudança, assim como não pode impedir que os sóis se ponham”. Ela sabia que a mudança é inevitável e exerce seu poder em todas as coisas, sem distinção; nossa capacidade de aceitar a impermanência será fundamental a nossa paz, afinal, a vida é dukka, ou seja, cíclica, repleta de altos e baixos, não existe felicidade ou tristeza, existe dukka; a vida é fluxo e precisamos saber seguir esse fluxo, seguir a corrente sem nos deixar levar pelos altos e baixos, somente fluindo com a correnteza.
Na história criada por George Lucas existe a Força e o Lado Negro da Força, muitos podem entender isso de uma maneira dualista, contudo, podemos observar nessa consonância mais um ensinamento budista ao percebermos que a Força não está separada do Lado Negro, ambos existem dentro de uma mesma pessoa. A luz e escuridão dependem um do outro, elas se complementam. E é por isso que mesmo o maior dos Jedi carrega dentro de si a semente do mal, assim como temos em nós a natureza búdica, também temos a semente da maldade, que pode nos levar a uma vida de obscuridade. Essa semente pode ser entendida de muitas formas, uma dessas formas é o medo e apego. Anakin desde criança tinha em si medo e apego, com o tempo esses sentimentos o levaram à arrogância, desobediência e raiva. Quando Anakin perde sua mãe e começa a ter pesadelos sobre a morte de Padme, ele busca os conselhos do Mestre Yoda:
— O que devo fazer, Mestre Yoda?
— Treine-se para deixar ir tudo o que você tem medo de perder.
O conselho de Yoda está ligado diretamente ao Dharma. O Cânone Pali afirma que o medo da morte é um impulso humano “perigosamente sedutor”, assim como o lado negro da Força. Como disse o Buda, no Dhammacakkapavattana Sutta: “esta é a nobre verdade de dukka: nascimento é dukka, envelhecimento é dukka, enfermidade é dukka, morte é dukka; tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero são dukka; a união com aquilo que é desprazeroso é dukka; a separação daquilo que é prazeroso é dukka; não obter o que se deseja é dukka; em resumo, os cinco agregados influenciados pelo apego são dukka. (…) Esta é a nobre verdade da cessação do sofrimento: é o desaparecimento e cessação sem deixar vestígios daquele mesmo desejo, abrir mão, descartar, libertar-se, despegar desse mesmo desejo”.
Assim como lembra Yoda: “O medo é um caminho para o lado sombrio. Medo leva à raiva; raiva leva ao ódio; ódio leva ao sofrimento”. Não se apegar aos desejos, à sede insaciável, à tanha, é a única forma de não se iludir com o nosso Lado Negro da Força.
Para o antropólogo Ernest Becker, acreditar em algo maior do que a morte é uma boa maneira de administrar nossos medos. Para alguns, essa crença pode ser em uma deidade; para nós, budistas, é o Dharma; para Yoda, é a crença na Força. “A Morte é uma parte natural da vida, feliz fique por aqueles que na Força se transformam. Apego leva ao ciúme, a sombra da ganância isso é”, afirma o Mestre Jedi. Temos mais um exemplo budista nos disseres de Yoda, quando ele diz que se deve ficar feliz por aqueles que na Força se transformam, mais uma vez ele nos ensina que a vida é fluxo, é continuidade, nada surge ou acaba, só continua.
Mas como treinar a mente para “deixar ir tudo o que você tem medo de perder”? A resposta pode ser: a prática de zazen. Sabemos como pode ser difícil no começo, pois nossa mente, como diz Genshô Sensei, “é como um macaco louco”, mas é importante não ceder à frustração e desistir, é preciso manter o foco, o esforço correto e, porque não, a esperança. Afinal, como diz Leia Organa Solo, “a esperança é como o sol. Se as pessoas só acreditam nele quando o veem, como vão aguentar a noite? ”
Podemos, ainda, traçar paralelos entre o código Jedi, que serve para guiar os cavaleiros da ordem, e os preceitos e guias do caminho budista, como o Caminho Óctuplo. Para os Jedi, o código aponta a necessidade de compreensão e superação do apego, da raiva e da ganância, de forma análoga às três raízes prejudiciais, ou os três venenos da mente, como apontado por Buda, no Mula Sutta: “Isto foi dito pelo Abençoado, dito pelo Arahant, assim ouvi: “Bhikkhus, há essas três raízes prejudiciais. Quais três? A raiz prejudicial da cobiça, a raiz prejudicial da raiva, a raiz prejudicial da delusão“. Com paciência e treino consistente, o Padawan (aprendiz da ordem Jedi), cultiva a mente serena que irá possibilitá-lo manter-se distante do caminho negro da Força, ou seja, do cultivo de suas sementes negativas. Semelhantemente, o Caminho Óctuplo foi traçado pelo Buda como a forma ideal para a prática, por meio do cultivo das oito qualidades adequadas para o despertar.
Para o mundo de Star Wars, o Lado Negro é um de muito poder, reservado para aqueles de grande ambição, os Sith. Eles utilizam da potência dos sentimentos como a raiva e o orgulho para o benefício próprio, causando destruição e morte por onde passam. Seu fator motivador geralmente é o apego, o desejo de que a natureza impermanente das coisas não seja assim. Como o caso do Darth Plagueis, mestre Sith que buscava a imortalidade, ou o próprio Darth Vader, a persona Sith de Anakin, que foi enganado por Palpatine e seduzido a trair a ordem Jedi, acreditando que esse seria o caminho para salvar sua amada. Em todos os casos, o Sith, em sua sede por poder, causa sofrimento para muitos e para si mesmo. Sawaki Roshi, mestre Zen, diz que pessoas que buscam o caminho e a prática espiritual, como o zazen, para o próprio benefício, como trabalhar melhor ou ter mais coragem, uma forma de materialismo espiritual, são como “Zen tenmas”, ou “demônios celestiais”, estão profundamente deludidas e estão longe do Dharma de Buddha. Esta compreensão traduz bem para o universo dos Jedi e dos Siths.
Os Jedi compreendem que todo o treinamento e o esforço devem servir o propósito de manter a ordem no universo, a ordem na Força, e pouco deve a ver com os desejos egoicos. Isso é semelhante ao caminho do bodhisattva, no conceito do Budismo Mahayana, onde o praticante dedica sua prática ao despertar de todos os seres, e acredita que a iluminação final só será possível quando todos despertarem, algo muito coerente com a percepção da interdependência. Podemos enxergar a condição dos Sith com grande compaixão, já que todos nós, assim como eles, passamos por este tipo de desejo, principalmente a vontade de se ver livre de sofrimento e da morte, ou de uma crise existencial. Isto faz parte e é bem característico do começo da prática, mas, como apontam os mestres, devemos compreender que este não é todo o caminho. Para os Jedi, os Sith são os cavaleiros sensitivos à força que se perdem neste percurso. Podemos entende-los então como um bom lembrete de mantermos o compromisso com uma prática coerente e honesta com as Três Joias: Buddha, Dharma e Sangha, e com o auxílio de um mestre em que confiamos, para não nos perdermos.
Há muitos ensinamentos budistas em Star Wars, transmitidos, principalmente, pelo Mestre Yoda. Entre eles, como foram ilustrados acima, estão o desapego, a luta contra o medo, a necessidade de enxergarmos nossa verdadeira natureza, enxergar as coisas além das aparências, a impermanência e interdependência de todas as coisas, a busca pelo controle da mente e pelo equilíbrio. O seguimento dos princípios como esses não significa o controle da Força que existe num universo ficcional do cinema, mas sim da “Força” que está contida em todos nós, da “Força” presente no Buda-Dharma, a “Força” que poderá nos fazer enxergar além de nós mesmos, algo além da nossa fantasia do EU, da fantasia do passado e futuro, seguir esses princípios significa estarmos absorvidos na “Força” que pode levar a nos reconhecer como o próprio universo.
Que a Força esteja com vocês!
Texto de Débora Muccillo e Matheus Coutinho. Praticantes na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Dica de leitura:
O Dharma de Guerra nas Estrelas, de Matthew Bortolin.
A obra O Dharma de Guerra nas Estrelas, de Matthew Bortolin, analisa a saga sob a perspectiva do Budismo, valendo-se da história para elencar os ensinamentos de Buda. Dando um foco diferente a Star Wars, o livro é um caminho para que encontremos alguma luz, explorando temas como karma, atenção, sofrimento, transcendência e nirvana.
Referências:
https://www.lionsroar.com/was-yoda-based-on-this-buddhist-master/
https://www.eusemfronteiras.com.br/mestre-yoda/
http://www.budavirtual.com.br/o-yoda-foi-baseado-nesse-mestre-budista/
https://meteorobrasil.com.br/videos/meteoro-shorts/o-budismo-em-star-wars/