Texto da série “Memórias de um Casal de Peregrinos”
Quando o viram andando sobre o mar, ficaram aterrorizados e disseram: “É um fantasma!” E gritaram de medo.
Mas Jesus imediatamente lhes disse: “Coragem! Sou eu. Não tenham medo!”
“Senhor”, disse Pedro, “se és tu, manda-me ir ao teu encontro por sobre as águas”.
“Venha”, respondeu ele.
Então Pedro saiu do barco, andou sobre as águas e foi na direção de Jesus. Mas, quando reparou no vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!”
Imediatamente Jesus estendeu a mão e o segurou. E disse: “Homem de pequena fé, por que você duvidou?” (Bíblia, Mateus, 14:26-31)
Na ala feminina da Plum Village da Tailândia, quem conduzia as discussões chamadas de Dharma Talks era uma monja de uns 80 anos de idade, que andava como quem flutua.
Quando estive em Israel, fui levada para visitar o mar morto, e, lá chegando, olhei aquele cenário e me perguntava como Jesus havia caminhado sobre algo líquido. Fui entrando devagar, com uma certa dúvida sobre o poder da densidade daquelas águas, cheguei a acreditar que meus pés não poderiam firmar-se no fundo, que seria impulsionada a ponto de andar como quem pula em câmera lenta – veio-me a imagem de astronautas na lua. Segui alguns metros a passos largos, para longe das margens. Timidamente, deitei-me. Facilmente, boiei. Como uma estrela estatelada na superfície daquele imenso lago, deixando os braços e pernas afastados do corpo, olhava o céu. Percebi que não haveria como aquele recorte de azul celestial que meu campo ótico alcançava, um frame salpicado de nuvens salgadas, ardendo minhas narinas, não ser altamente influenciado por aquelas águas e, lá, então e também, por meus olhos.
Foi na Ásia que senti o quanto o ar, as árvores, os animais, a água que bebemos – ou que deixamos de beber – e, até mesmo, as nuvens exercem interferências em nosso agir. Seja pelo que absorvemos e acaba por formar nossas células, ou pelo que nossos sentidos captam e mudam a nossa maneira de agir. Na Índia, víamos as pessoas tocarem as testas das vacas, fazendo uma rápida oração, logo após, benziam-se em seu suor. Sentia um misto de repulsa e curiosidade nesse repetido espetáculo diário que a mim era apresentado. Em poucos meses de Índia, via Muryo encostando as mesmas testas, de forma um pouco mais demorada do que faziam os nativos, mas percebia um certo ar de concentração mística naquele ato. Nada perguntei, pois não queria escutar nenhuma explicação que me impelisse a fazer o mesmo – nem sempre era fácil achar lugar para lavar as mãos. Já no fim do primeiro dia desse novo hábito Muryanesco, lembrei-me de anos antes, após nosso primeiro voo à Ásia, quando faríamos escala em Abu Dhabi, e, portanto, havíamos decidido em lá ficar uma semana, turistando. Em uma ida ao deserto, fomos levados a uma “fazenda” de camelos. Visitantes andavam em seus lombos, mas Muryo só os acariciava. Recusou-se ao passeio. E tocava-lhes como quem toca vacas sagradas, ou acaricia um filhote de cachorro que dorme ao pé de sua cama e lhe lambe a careca de monge, ou aconchega em seu colo uma gata idosa que está doente e cada toque é uma despedida. Essa lembrança foi o suficiente para me propor a andar alguns muitos minutos atenta às mãos, à procura de uma torneira para tirar o suor alheio e, assim, aproveitar a plena atenção para não parar de mandar metta, desejando a libertação de todos os seres, junto ao meu anja[1] pelas ruas indianas.
Compartilhando um Segredo e uma Prática
Na nossa vida na Ásia, Kakuji e eu sempre caminhamos muito mais do que jamais fizemos no Brasil. Na Tailândia, na maior parte das vezes, andávamos pelo prazer de conhecer cada canto dos bairros que rodeavam os lugares onde nos hospedávamos. Na Índia, buscávamos evitar o transtorno, já previsto pelas experiências prévias, de se negociar o preço da corrida com o motorista do rickshaw, ou fugir da superlotação dos transportes públicos (quando eles existiam). E, claro, caminhávamos também, sempre que possível, para poupar nossas economias.
Nas estreitas ruas dos arredores de Chiang Mai, aprendemos educação e respeito pelo outro com os motoristas tailandeses. No início, distraídos, andávamos pelo meio de ruas pouco movimentadas e quando nos dávamos conta, havia um ou mais carros nos “seguindo” pacientemente. Nenhuma buzina era ouvida, nenhum acelerar de motor, nenhum grito nos pedindo para sair da rua. Muito pelo contrário, eles mantinham uma distância respeitosa tal que demorávamos a nos dar conta de que estávamos atrapalhando o trânsito. Quando percebíamos a situação, abríamos passagem aceleradamente e nos desculpávamos com as palmas das mãos unidas, em Añjali ou “thai wai”, o cumprimento tailandês, e, em troca, ganhávamos sorrisos na maior parte das vezes. Caminhando pela beira de estradas, no norte do país, inúmeras ofertas de caronas aconteciam. Quando eram as calçadas das cidades que recebiam nossos passos, nos era oferecida ajuda a qualquer vacilação que deixávamos transparecer: “estão perdidos?”, “querem ir para onde?”. Assim, caminhar pela Tailândia, nos ensinou a sermos gratos ao seu povo.
Na Índia, a situação era bem diferente. Simplesmente, lá, não se dirige sem buzinar a todo momento. Todos buzinam entre si, para você, para os outros pedestres e, talvez, desconfio, só pela força do hábito. Andar pelas ruas lotadas, inicialmente, era uma experiência intimidante. Poluição sonora, visual, olfativa e contato físico com multidões de desconhecidos quase que ininterruptamente. Com o passar dos dias, semanas e meses começamos a nos acostumar. Uma adaptação necessária já que moramos naquele país por quase 1 ano. Sabíamos que seria inevitável enfrentar as ruas para chegar aos destinos de cada dia e precisávamos treinar encarar tudo com o máximo possível de equanimidade.
Ainda assim, motos, rickshaws, carroças, carros, vans e ônibus eram sempre uma ameaça real com a falta de espaço físico para todos nas calçadas – ou melhor, nas partes mais periféricas à circulação dos veículos de transportes, motorizados ou não/ isso quando existia alguma área destinada aos que andam. Então, perambular a pé exigia paciência e atenção. Além de se pleitear espaço entre pedestres, barracas vendendo de tudo o que se pode imaginar, veículos estacionados onde se suporia não ser permitido e outros circulando por onde, também, não se suporia ser permitido, havia os animais: cachorros, macacos, cabras e vacas, muitas vacas.
Era comum encontrar macacos e cachorros aleijados ou amputados devido aos atropelamentos. Algumas vacas eram magras, deitadas no meio-fio com olhares tristes e distantes, outras grandes e fortes, algumas vezes irritadas, distribuindo cabeçadas. Bois gigantescos abriam caminho entre a multidão aos berros e pequenos bezerros nos direcionavam olhos suplicantes.
Para muitos indianos, as vacas são sagradas. Mas era muito comum, também, presenciarmos elas serem enxotadas com agressividade ou até mesmo surradas com pedaços de pau pelos que as conduziam de um local a outro. Algumas vezes, eram vítimas de crianças jogando pedras, de motoristas as assustando com buzinas ou mesmo as empurrando com o para-choque ou de simples transeuntes que, sem nenhuma razão aparente, davam tapas quando passavam por elas. Vez ou outra reagiam com suas cabeças e chifres, mas na maior parte do tempo apenas arregalavam olhos de pavor e fugiam.
Por outro lado, os que as viam como sagradas, as tocavam na cabeça reverentemente, para depois levarem a mão à própria testa como que pedindo para serem abençoados. Alguns, até, ofereciam comida a elas. Mas o mais comum era as vermos revirando lixo em busca de alimento. No meio do caos das ruas do país, muito rapidamente percebi que meus olhos buscavam sempre o olhar delas e que muitas vezes era correspondido. Naqueles olhos/miradas, encontrei cansaço, resignação e cumplicidade.
Passei, então, a me concentrar e mandar metta para elas, como havia aprendido com professores do budismo Theravada. Desejava que se libertassem do sofrimento e das causas do sofrimento, que fossem livres e felizes. Estendia a mão e, se elas oferecessem a cabeça, as tocava – não para pedir bençãos, mas para oferecer minha compaixão silenciosa. Enquanto umas se decepcionavam por ser apenas um toque e não algo para comer, virando-se e caminhando em direção oposta, outras pareciam apreciar o contato e até fechavam os olhos.
Esse ritual, transformou as ruas indianas para mim e para Kakuji. Nós e as vacas compartilhávamos um segredo, uma prática espiritual. Depois disso, quando retornamos aos templos Theravada tailandeses, lembrava dos olhares das vacas indianas e do contato da minha pele com suas cabeças empeiradas, quentes e suadas quando ouvia os cânticos, em Pali, de metta: Sab be, sat ta a-ve ra, su kha je vi no, ka tam, pun nam pa lam, may ham, sab be, pa khi, pa van tu, te…
A prática que há anos vem transformando nossas vidas é simples e direta. Ela é centrada no ato de nos sentarmos total e completamente entregues ao tempo e ao espaço, ao agora e ao aqui. Mas quando nos levantamos de nossos zafus, a prática continua no nosso caminhar, na forma como interagimos com os outros seres. A simplicidade é o verdadeiro poder da prática, pois ela é inserida na vida real e não nos ideais imaginários. O Dharma é feito da mesma matéria das nossas próprias vidas. Como ensina Monge Genshō, “Embora os mitos criem facilmente o extraordinário, não precisamos fazer isso para que o budismo dê os seus resultados, não precisamos dizer que os monges têm poderes extraordinários e fazem milagres. Nosso poder extraordinário é não precisar de poderes extraordinários”[2].
O Manto de Nuvens
As nuvens que cobriam nossa Índia, transformavam-se em longas chuvas, invadiam nossos despreparados calçados, e mesmo após algumas horas de seu término, não as esquecíamos, pois deixavam as misturas dos odores mais acentuadas, por dias. Tornávamo-nos um pouco mais nuvens. “Las nubes blancas son el kesa que envuelve mi zazen”, disse Daichi Zenji. Kodo Sawaki Roshi explica que nos sentamos em zazen, envoltos no okesa, e a pessoa que éramos, junto a ele, assim, desvanece-se[3]. Enxergamos que as nuvens são tão continuação de nós, como nossos próprios braços. Porque é no zazen que fortalecemos nossa capacidade de enxergar a realidade última. Genshō Sensei, após a leitura desse trecho acima, presente em uma palestra de Kodo Sawaki[4], explica que, em zazen, percebemo-nos na verdade de sermos o todo. Sem separações. Nem as mais drásticas, como vida e morte. Diz ele: “Morte e vida são a mesma coisa. A morte é que produz a vida. É porque as plantas morrem na floresta, e as folhas se depositam no chão, que se cria húmus, que se cria solo, que permite que raízes se alimentam e que haja novas plantas. A floresta vive de si mesma. […] Quando morremos, alimentamos a vida. Fazemos errado quando enterramos os mortos em caixões, separados, para que não se misturem com a terra. O mais certo seria que se misturassem com a terra. […] Porque assim nos sentimos dentro da vida”[5].
O carinho e afeto que Muryo e eu conseguimos dar àqueles animais asiáticos mostravam-me quão inventado é, inclusive, nosso distanciamento dos ruminantes. Sempre podemos criar classificações para estudar e entender certas particularidades, mas acreditar nelas como verdades descontextualizadas nos afastam de uma mente desperta e inventiva. Pois quando a gente acredita que somos aquilo ao que nos é referenciado, perdemos a chance de sermos outras coisas mais. A pianista Teresita Gómez, a quem foram dadas muitas classificações que poderiam ter restringido sua carreira, certa vez comenta como gostava de fazer apresentações fora de seu país de origem, pois se sentia livre para tocar sem rótulos, dizendo que estes “estragam a vida”[6].
Em nossa primeira ida à Ásia, a Plum Village da Tailândia foi o mosteiro onde iniciamos nossa vida de casal de peregrinos. Ao final dos sete dias de retiro, segurando a pequena apostila que nos entregaram intitulada “Five Mindfulness Training” (Os cinco treinamentos da Atenção Plena), ouvi – meio duvidosa do que significava tudo aquilo – a octogenária monja me explicando o que compreendia um treinamento para uma vida em plena atenção. A palavra “treinamento” faz muito mais sentido hoje – à época, parecia-me uma má tradução de um termo qualquer vietnamita. “Nosso grande mestre Shakyamuni, só conseguiu alcançar o ensinamento que prevalece no mundo atual após se submeter a severo treinamento por incontáveis eons”[7], diz Dōgen Zenji. Andar consciente de que um animal que passa por você pode receber um afago é treinar a mente para o que os ancestrais nos apresentaram. “A iluminação depende de um treinamento”[8]! E de uma entrega a ele, uma entrega corajosa que leve ao cultivo de um coração puro e confiante no caminho.
Não cultivamos a fé em uma força invisível, pois sabemos que o que precisamos é simplesmente confiança nos antepassados, no nosso mestre e no caminho que não para de se mostrar verdadeiro a cada passo que damos. De tal modo, para o budismo, o milagre que se busca não é o de caminhar sobre as águas ou de trazer de volta à vida alguém que morreu, mas sim, como já disse Thich Nhat Hanh, o de caminhar sobre a terra, vivendo plenamente atentos a cada passo, de tal forma que venhamos a sentir profundamente a unicidade do todo.
Para se chegar a se saber um com o Universo, é preciso renunciar à crença em um “eu” separado. O budismo é rico em ferramentas para nos ajudar em tal obra. Uma delas é a obediência ao mestre. Diminuímos nosso apego às visões de mundo do “eu” quando seguimos as instruções do mestre sem querer adequá-las “ao [nosso] ponto de vista, caso contrário você não poderá entender o que ele está dizendo”. Para isso, sem dúvida alguma, é preciso que se “purifique corpo, mente, olhos e ouvidos e simplesmente ouça seu ensinamento, refutando qualquer outro pensamento. Unifique corpo e mente e receba o ensinamento do mestre como se a água estivesse sendo transferida de um vaso para outro. Se puder alcançar tal estado de corpo e mente, a verdade que o mestre ensina será a sua verdade”[9].
É necessário se cultivar uma mente livre e aberta para podermos flutuar no oceano cósmico. Para isso, é imperativo que estejamos embebidos de uma água que não é encontrada com facilidade, que tem características próprias. E precisamos nos jogar nela sem reservas, para que ela nos molhe a ponto de mudar nossa densidade, a matéria de nossas vidas. Mas, “para assim o fazer, a mente não pode estar apegada, nem rejeitando nada, necessita estar completamente livre do apego à fama e ao lucro”[10].
Outra ferramenta que nos ajuda a enfraquecer o ego que se percebe alienado do todo é a adoção dos preceitos, pois os colocamos como mais importantes do que nosso próprio julgamento. Sawaki Roshi afirma que se alcançarmos a compreensão de estarmos indissoluvelmente ligados ao Universo, conseguiremos compreender que não é possível matarmos a vida cósmica. Continua ele: “se entender o princípio cósmico de que não é possível matar a vida, então não matarás. E isso é o que significa a frase ‘não matarás’. Não é uma proibição. É uma evidência para qual tem-se que despertar. O que chamamos de ‘preceitos’ não é algo que possamos ‘cumprir’. Pois os preceitos, por sua própria natureza, não é coisa passível de ser ‘descumprida’. Por isso, falando corretamente, não se deve dizer: ‘Você não deve matar’, senão: ‘Você não pode matar’. Receber os preceitos significa fazer que a atitude mental de Buddha seja a sua própria atitude mental”[11]; daí Dōgen Zenji concluir que “o esclarecimento do Dharma e a realização do Caminho dependem da força adquirida com o treinamento sob a orientação de mestres Zen”[12].
Entregar a vida aos preceitos, entendo, assim, é um radical “deixar-se ir” (lâcher-prise), seguir os ensinamentos de Buddha e as instruções de nosso mestre, de forma desapegada de nossas opiniões advindas de hábitos e formações mentais. É viver em concordância com enxergar-se em tudo, não se colocar separado – acima nem abaixo – de nada, afundar, para poder flutuar; “um empreendimento dos mais audaciosos”[13].
Texto de
Monja Kakuji 覚慈, Monja na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Monge Muryo 無量, Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Referências:
DOGEN, Eihei. Pontos a observar no Estudo do Caminho (Gakudo Yojin-shu)
GENSHO, Meiho. Nosso poder extraordinário é não precisar de poderes extraordinários. Acesso em: https://www.daissen.org.br/nosso-poder-extraordinario-e-nao/
____________. Teisho Matinal. Daissen Virtual. 27 de Maio de 2023
SAWAKI, Kodo. “La dicha y la libertad de un loco”. Disponível em: https://sotozen.es/en/zendodigital/tradicion/11-la-dicha-y-la-libertad-de-un-loco/?print=print
_____________. The white clouds are the kesa that surrounds my zazen. Disponível em: https://sotozen.es/zendodigital/tradicion/33-las-nubes-blancas-son-el-kesa-que-envuelve-mi-zazen/
[1] Kodo Sawaki Roshi: “La dicha y la libertad de un loco”. Disponível em: https://sotozen.es/en/zendodigital/tradicion/11-la-dicha-y-la-libertad-de-un-loco/?print=print
[2] https://www.daissen.org.br/nosso-poder-extraordinario-e-nao/
[3] SAWAKI, Kodo. The white clouds are the kesa that surrounds my zazen. Acesso em: https://sotozen.es/zendodigital/tradicion/33-las-nubes-blancas-son-el-kesa-que-envuelve-mi-zazen/
[4] Colocar o link para kodo sawaki
[5] GENSHO, Meiho. Teisho Matinal – Monge Genshō, 27 de Maio de 2023
[6] “los rotulos, de verdad, son de las cosas que nos friegan la vida […] Porque uno es más allá de un rotulo” – https://www.youtube.com/watch?v=24EkE35Ud-s
[7] DOGEN, Eihei. Pontos a observar no Estudo do Caminho (Gakudo Yojin-shu)
[8] idem
[9] ibidem
[10] ibidem
[11] SAWAKI. op. cit.
[12] DOGEN. op. cit.
[13] ROMMELUERE, Éric. “Les bouddhas naissent dans le feu”. Éditions du Seuil, 2007.