Parte I – Camboja
Acordo no meio da madrugada atordoado com o calor de trinta e tantos graus, a rede de proteção contra insetos pendurada acima da minha cama está enrolada em metade do meu corpo e o lençol encharcado já não cobre mais a maior parte do colchão, que de tão duro e fino mais parece um pedaço de madeira. Aliás, essa é uma característica dos colchões do sudeste asiático, ao menos do “nosso sudeste asiático”, que à época, em fevereiro de 2016, já não nos era tão desconhecido.
Eu e minha esposa estávamos em Battambang, Camboja, em um retiro de meditação vipassana e não nos víamos, a essa altura, há 6 dias, pois homens e mulheres ficam separados tanto nas áreas comuns do centro como no próprio Dhamma Hall. Bebi água antes de sair do meu quarto, que devia medir um pouco mais de 6m2, e caminhei até uma das cabines de banheiro. Dezenas de insetos começaram instantaneamente a se bater contra a lâmpada amarela que acendi e dentro da privada, que eu pretendia usar, me deparei com uma lacraia, de mais ou menos um palmo de tamanho, se contorcendo na tentativa de escapar da água. Foquei nas minhas reações corporais ao susto que levei: batimentos cardíacos alterados e pelos arrepiados… observei a respiração… percebi, então, meus sentimentos de aversão surgindo… continuei a observação da respiração… peguei uma escova ao lado do vaso pela ponta do cabo e aproximei suas cerdas da lacraia para salvá-la. Em uma fração de segundo ela deslizou escova acima quase chegando a tocar minha mão. Pulei para trás e joguei a escova e a lacraia para o alto. Andando de costas, me afastando da cabine, eu já não me lembrava mais de observar sensações, respiração e pensamentos, como vinha treinando fazer desde o nosso primeiro retiro dois anos antes, ainda no Brasil.
O susto se somava ao cansaço acumulado dos primeiros seis dias de retiro, às noites mal dormidas em um alojamento que pegava sol o dia todo e não tinha forro no teto, transformando os quartos em pequenas estufas, e à experiência do dia anterior de achar um pequeno escorpião debaixo da minha almofada de meditação. Ao me dar conta de que uma onda de repulsa me invadia, parei tudo e me voltei mais uma vez para a minha respiração enquanto observava os insetos se chocando contra a lâmpada e percebia que a lacraia havia desaparecido. Fechei os olhos e mandei mettā para eles, desejando que fossem livres e felizes e que no futuro viessem a se libertar das causas do sofrimento. Instantaneamente, toda a minha aversão passou e eu percebi que, na verdade, só tinha motivos para estar feliz. Estava tendo a oportunidade de meditar (o que já então sentia ser aquilo que eu faria pelo resto da vida) ao lado de mais de 100 cambojanos e cambojanas, dentre os quais cerca de 15 eram monges, outros muitos eram camponeses e pessoas vindas dos centros urbanos, sabendo, ainda, que, separada por apenas alguns metros e algumas barreiras físicas, a minha esposa fazia a mesma coisa. Muitas daquelas pessoas, elas sim, haviam tocado os limites do sofrimento humano, pois a história recente de seu país era das mais brutais.
Logo em seguida, me dei conta de que alguns anos antes, quando meu pai faleceu, tudo o que eu olhava, ou fazia, me trazia tristeza e confusão e que, agora, eu estava aqui me permitindo entrar em uma espiral de estresse por causa da temperatura, de alguns insetos e de outras questões tão pequenas cuja própria natureza é serem passageiras. Tirar o foco do meu desconforto e colocá-lo nas reais dificuldades pelas quais aqueles insetos passavam foi o gatilho que me levou a parar de cultivar minhas próprias insatisfações. Lembrei-me de uma palestra de um monge que assistimos meses antes, quando passamos algumas semanas no Wat Tam Pa Wua, um monastério Theravada da Tradição da Floresta, nas montanhas do Norte da Tailândia. Em sua fala daquela manhã, ele nos explicou que quando entram na mata fechada, os bhikkhus praticam mettā bhavana, desejando o bem para todos os seres que lá habitam e que essa prática é para o bem dos animais, mas, também, para o da mente de quem a faz. Sem mettā seria fácil se entregarem ao medo de virarem presas de um tigre ou de serem picados por uma cobra. Almejar o bem do outro nos traz coragem e nos ajuda a colocar sob uma perspectiva mais real a nossa própria dor. Mais tarde, eu iria aprender que esse é um dos pontos centrais do caminho dos bodhisattvas, mas entrarei nesse assunto em um texto futuro.
Ali, parado no escuro da madrugada cambojana, desejando que a lacraia que acabei de tirar do vaso sanitário encontrasse o caminho da libertação, voltei no tempo:
– Veja que olhos lindos! – Ele dizia se agachando ao lado de um sapo.
– Que cores impressionantes! – E apontava para uma mosca varejeira.
– Uma verdadeira armadura, um guerreiro medieval! – E me mostrava cada detalhe da carapaça de um besouro.
Assim, fui sendo educado na infância. Meu pai me chamava a atenção para a dignidade de todo e qualquer ser. Enquanto meus amigos tinham nojo de insetos, minhocas e sapos, eu via tais existências com admiração. Nada disso era forçado, eram as reações naturais e espontâneas de um menino que havia crescido e tido um filho.
Se aparecia, por exemplo, uma aranha em casa (e elas sempre estavam por lá, já que vivíamos cercados por mata), ninguém a matava. Meu pai a capturava com um pote ou vidro qualquer, tapava com uma capa de um antigo LP do Caetano Veloso e a soltava no meio do mato, mas antes eu era chamado para me aproximar e olhar de perto aquela estranha visitante. Não havia medo, apenas respeito. Eu aprendi que só há espaço para o temor quando não se compreende o outro, seja ele uma lacraia, um estrangeiro que chega ao seu país à procura de emprego ou, até mesmo, um vizinho seu. A convivência, a aproximação respeitosa e a atitude de se estar aberto a ver beleza e dignidade em todo e qualquer ser gera respeito e capacidade de se colocar no lugar do outro.
Os retiros de meditação, ainda mais os feitos em países com culturas muito diferentes da nossa cultura original, são um grande exercício de desapego. Precisamos aprender, no meio de uma situação limite, na qual estamos cansados e com dores, a conviver com colegas de quarto que não escolhemos, a andar ou deitar somente quando nos é permitido, a comer apenas o que e quando nos é oferecido. Em muitos momentos, inevitavelmente, nos perguntamos por que estamos lá novamente nos submetendo a tanto desconforto. Mas assim que tudo acaba e voltamos para casa (ou no nosso caso, a maior parte das vezes, para um pequeno quarto alugado nos fundos de uma casa de família ou em um hotel barato no meio de uma cidade desconhecida), percebemos que o que ganhamos em troca do nosso esforço é incalculável. Na verdade, a experiência para nós foi tão poderosa que, após o nosso primeiro, já começamos a planejar o segundo retiro, emendado em um terceiro, e assim sucessivamente até que, em pouco mais de um ano depois, estávamos pegando um avião para a Ásia pela primeira vez.
A cada passo que dávamos fomos sentindo que o eixo central da nossa vida foi mudando e ao invés de termos uma existência “normal” interrompida por retiros de tempos em tempos, passamos a ver os retiros, o estudo, as idas aos monastérios e templos, as conversas com monges de diferentes tradições, como a vida que nos fazia sentido viver.
Após a primeira ida, os passos seguintes foram vendermos nosso carro, pegarmos nossas economias e retornamos à Ásia. Passamos a ser cada vez mais peregrinos estudantes do Dharma, que quando precisavam ou a saudade batia voltavam para o Brasil. Nos últimos anos, fomos pra Sarnath e Bodhgaia, meditamos ao lado de camponeses tailandeses cuja devoção ao budismo nos emocionava. Tamara deu aulas de Inglês para jovens noviços como voluntária, em Luang Prabang, no Laos, para monges Zen vietnamitas, em Pak Chong, e também aprendemos muito, nos treinos de conversação que fazíamos, ouvindo as histórias de refugiados tibetanos em Dharamsala, na Índia himalaica. Passamos um ano novo com a família que nos hospedava em Boossa, no Sri Lanka, em um templo Theravada, outro meditando madrugada adentro em um retiro em um monastério nas montanhas, e um terceiro nos templos de Chiang Mai, junto com os moradores locais antes de cobrirem os céus da cidade com suas famosas lanternas de papel. Tivemos a oportunidade de aprender muito sobre como transformar cada pequeno gesto cotidiano em um ritual meditativo com as monjas e os monges zen vietnamitas da Thai Plum Village e de estudar um pouco de budismo tibetano com uma das pessoas mais doces e bem-humoradas que conhecemos, Jigme Neal, um ex-saxofonista norte americano que nos anos 1970 foi para o Nepal e se encontrou com quem então tomou como seu guru, o Lama Yeshe.
Mas isso tudo são experiências que compartilharemos com quem tiver a paciência de ler nossos próximos textos. Esperamos que nossos relatos ajudem de alguma forma os que pensam em viajar, quando as fronteiras reabrirem, e que possam trazer ao menos um sorriso vez ou outra quando contarmos sobre bagagens perdidas, cálculos errados e escolhas atrapalhadas que fizemos pelo caminho.
A realidade é que, sinceramente, não nos consideramos dignos das oportunidades que temos tido nessa vida e quanto mais viajamos e conversamos com pessoas diferentes, mais percebemos como sabemos pouco. Ainda mais quando nos sentamos, ao lado de uma multidão de tibetanos e alguns punhados de ocidentais, para ouvirmos por manhãs seguidas ao Dalai Lama em seu templo, em Dharamsala, ou quando temos a chance de passar algumas horas diante de Jetsunma Tenzin Palmo interpretando capítulos de Shantideva. Mas as pessoas anônimas com quem cruzamos também, muitas vezes, nos emocionaram com sua generosidade. Caronas oferecidas por desconhecidos no meio de uma estrada ainda mais desconhecida, ajuda de transeuntes na rua que se desdobram sem terem uma língua comum para se comunicarem, um taxista nos procurando para devolver o celular que deixei cair do bolso. De alguma forma, o mundo parecia nos abraçar para que pudéssemos seguir nossa viagem e nosso aprendizado. Uma vez ouvi que se você dedica sua vida ao Dharma, as coisas vão se encaminhando de forma a se concretizarem e a prática ser possível. Nossa experiência pessoal nos faz crer que essa ideia não poderia ser mais verdadeira.
Estamos engatinhando nesse caminho, mas somos gratos por tudo o que pudemos viver até aqui. A conclusão à qual chegamos é que depois de tantos quilômetros percorridos o que realmente valeu foram as horas passadas sentados ou caminhando lentamente em direção a conseguirmos ver sem dualidade. Mas gostaríamos muito de saber que de alguma forma alguém possa vir a se beneficiar com os relatos das trilhas que percorremos entre uma almofada de meditação e outra.
Texto de Thomás Rosa, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.
Tamara Carneiro, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.