Meio Ambiente em Pauta – Entrevista com Lia Beltrão

 

Nesta edição, entrevistamos Lia Beltrão, jornalista, praticante budista sob orientação do Lama Padma Samten e editora da Revista Bodisatva. Lia é também facilitadora do Trabalho Que Reconecta (TQR), metodologia desenvolvida por Joanna Macy, ativista, eco filósofa e estudiosa do budismo. Nesta entrevista, conversamos sobre as angústias da urgência ambiental, questões sociais, budismo engajado e o seu lindo trabalho com o TQR.


Para começar, gostaríamos que você contasse um pouco da sua trajetória no Budismo.

Lia: Eu conheci o Budismo quando estava na faculdade, fiz jornalismo na Federal de Pernambuco. Na mesma época em que eu estava me descobrindo como profissional, ou imaginando que tipo de trabalho queria fazer, eu estava um pouco desiludida com o jornalismo, mas ao mesmo tempo amando um projeto paralelo de extensão, que desviava um pouco do jornalismo tradicional. Trabalhamos com uma comunidade chamada Coque e muitas coisas se abriram a partir dali, então foi uma descoberta muito grande sobre o tipo de ser humano e de profissional que eu queria ser no mundo.

Paralelo a isso, eu conheci o Budismo. Na medida em que o caminho espiritual foi se aprofundando, apareceram questões no caminho budista que pareciam contraditórias a esse meu desejo de atuação no mundo, e de transformação do mundo. Então eu comecei a investigar o Budismo junto com o Lama Santem. A minha primeira conexão na verdade foi com outra mestra Ani Zamba, mas imediatamente eu me conectei com Lama Santem, que trazia essa contradição para a mesa. Na verdade, é uma aparente contradição, esta entre budismo e transformação social. Lama Santem foi um ativista, e segue sendo um ativista a seu modo. Como cientista, ele se posicionou contra a implantação de usinas nucleares no Brasil na década de 70, criou uma comunidade alternativa, toda em harmonia com o meio ambiente. Então ele tinha toda uma trajetória nesse caminho de transformações, mas ao mesmo tempo era um Lama. Era um mestre ordenado dentro de uma linha tradicional e ensinava, não de uma forma tradicional, mas os ensinamentos em si eram tradicionais.

Foi nessa mistura de caminho espiritual, e transformação social, que eu conheci o Budismo, foi nesse período de questionamento e com esse professor, que é um questionador nato. Ele é uma pessoa cuja vida está dedicada a olhar essas questões das feridas que estamos causando na Terra, e na nossa própria espécie. O livro do Lama que eu estudei na época foi o Mandala de Lótus, que fala de ação no mundo. Depois, a minha conexão com o Budismo foi se aprofundando, e indo mais na direção do Caminho. Nessa época, eu tinha uns 20 anos. Depois, quando eu tinha uns 28, fui morar em um Centro de Retiro no interior de Pernambuco, no CEBB Darmata. Aí foi outra jornada de aprofundamento, de uma investigação mais interna mesmo, que já existia e ganhou mais espaço na minha prática.


Como foi seu envolvimento com as questões ambientais? Houve algum contato seu com essas questões antes do TQR?

Lia: Para mim, demorou muito até eu dar o nome de “questões ambientais”, para eu entender que era disso que se tratava. Porque para mim as questões sociais eram vivas. Teve todo um movimento na faculdade, trabalhei em uma ONG com empreendedorismo sociais, negócios sociais. Meu trabalho era dentro de periferias, na cidade do Recife. Essa abordagem que o Lama tem, de conectar o Budismo com ações no mundo, alimentou minha vontade de investigar essas questões sociais, e de me direcionar nesse sentido. Mas eu passei um tempo com essa pergunta de como convergir os dois interesses, porque ainda que o Lama desse o Caminho, nós é que vamos fazendo a nossa trajetória interna. Eu senti que eu estava vivendo umas contradições, ainda. Foi quando eu fui fazer uma matéria para a revista Bodisatva. Eu já era editora, e naquele momento meu trabalho era criar uma sessão especial para uma edição que falava sobre a emergência climática e Budismo, sobre o que os mestres budistas estavam falando sobre esse tempo de colapso que estamos vivendo.

Eu comecei a pesquisar, e encontrei, além dos ensinamentos do Lama, que fala muito sobre isso, vários ensinamentos interessantes de outros mestres, muitos ensinamentos sobre interdependência, algumas preces para pacificação dos elementos nesse tempo. Encontrei muitas falas de mestres que reconheciam o momento do colapso e ofereciam o que era possível, a partir da mente deles.

Mas, foi quando eu vi uma senhora que se chama Joanna Macy, que eu senti estar diante uma coisa completamente diferente. Tem alguma coisa que brilha muito para mim no que ela está fazendo. Ela não é uma professora budista, pelo menos ela não se apresenta assim, apesar de ser considerada por outros como uma Lama, como uma mestra. Ela se diz uma aluna, amante, uma praticante do budismo. Ela vem, há 45 anos, desenvolvendo com as pessoas uma metodologia que lida com a nossa experiência de colapso ambiental e social, reconhece essa experiência de desmoronamento, e reconhece dentro dela os poderes que ela também tem. Então, é como se fosse uma disposição para ficar nesse lugar da dor, do escuro, no lugar do medo da extinção, da nossa própria extinção. Ela desenvolveu uma metodologia muito simples, disponível para qualquer pessoa (é open source), mas ao mesmo tempo muito profunda. Então eu me apaixonei por ela, pela Joanna Macy. A questão ambiental não era uma pauta do meu coração, era uma pauta do nosso tempo, uma pauta da revista, mas aquilo só me tocou mesmo quando eu comecei a ouvir mais a Joanna Macy, e aí fui buscar mais sobre a metodologia que se chama Trabalho que Reconecta e fui para o Chile fazer um treinamento como facilitadora.

Então, foi uma ampliação daquilo que o meu próprio professor estava dizendo, e uma corporificação porque a metodologia diz respeito às pessoas se juntarem e se ouvirem: como você está lidando com tudo que estamos vivendo? Como você lida quando escuta que estamos passando pela sexta extinção em massa, segundo as melhores mentes humanas lúcidas? Como que isso repercute em nós? Como que nos sentimos tão parte desse sistema, a ponto de não conseguir ficar no lugar da apatia, de naturalmente se levantar em direção a outro tipo de atitude? Então, eu fui vendo as minhas regiões de indiferença, minha rejeição de lidar com essas questões tão importantes, que não dizem respeito a ter afinidade ou não com as questões ambientais. Não dizem respeito a gostar ou não de golfinho, por exemplo. Como que decidimos, como espécie, maneira de nesta terra? Que tipo de pisada você quer ter nesta terra? Se você abre os olhos e vê o que está sendo causado pelo modo como estamos andando, pelo modo como estamos nos relacionando, e pelo modo que estamos morrendo, você percebe que o modo como estamos fazendo isso está danificando o nosso próprio chão.

Se entendemos isso, e se o nosso coração sofre, e se parte, é porque tem compaixão dentro de nós. E se tem compaixão, então é porque vemos que há outra possibilidade, tem outra forma de andar na Terra, regenerando a terra, amando a terra, beijando a terra. Há muitas maneiras de ajoelhar e beijar a Terra, como diz o poeta que a Joana Macy tanto ama, o Rainer Maria Rilke. Então, para mim, a metodologia é aprendermos modos de beijar a Terra, olhar para o que estamos fazendo com ela, olhar para os humanos e os não-humanos que compõem este planeta, e decidir orientar nossa vida numa direção de honrar a vida que recebemos.

Se isso é se sensibilizar com as questões ambientais, ou não, eu não sei… Mas foi esse tipo de experiência que passou por mim, a de me dar conta de que eu sou vida andando na terra, com esse formato de pessoa, com esse cabelo, com esse sotaque… E eu sou uma pulsão de vida olhando para a vida que está sendo envenenada, degradada… E aí como eu respondo a isso? Além de me partir em dor… o que vem desse coração partido? A metodologia é um pouco para isso, para pensar essas questões. Isso tudo pode ser classificado como budismo engajado, espiritualidade engajada… Mas quando colocamos nessas categorias, eu acho que perde um pouco do que é, sabe? Essas categorias são interessantes, agrupam, fazem as pessoas afinarem os conceitos, mas deixam de fora as pessoas que diriam algo como “ah eu não sou engajada, não me identifico muito com isso”.  Então, estas são categorias que deixam os seres de fora… E a convocação é para seres humanos que sentem que tem uma responsabilidade, um compartilhar com a vida e que precisam se movimentar na direção de curar, de regenerar.

Como foi o processo de difusão desse conteúdo no Brasil?

Lia: Foi interessante porque eu escrevi sobre Joanna Macy para a revista, e fui para o Chile fazer a formação no Trabalho que Reconecta. Quando eu voltei, a revista já estava lançada. Então, foi como se o texto fosse uma bula, e eu tivesse tomado o remédio somente lá, foi como se eu tivesse dado carne para meu texto depois de ele estar escrito. A formação mexeu comigo, e a primeira coisa que eu fiz foi conversar com meu professor, com o Lama. Eu fiquei em dúvida se ele iria compreender, porque eu achava que não ia conseguir explicar, e eu esperava trabalhar com isso fora do CEBB já que a metodologia de ensino era diferente da de um Centro do Dharma, em que a gente estuda junto, reflete e ouve o que o Lama está dizendo. A metodologia se propõe a colocar na mesa dores, lugares que muito possivelmente não temos espaço para falar com mais ninguém. Mas ele me encorajou a oferecer dentro do CEBB. Eu disse: “Lama, esse é o caminho do bodisatva feito em vivências, de forma coletiva”. E ele me incentivou a procurar os CEBBs locais, as coordenações locais para oferecer as oficinas.

Eu viajei muito, visitei várias cidades, durante meses. Foi muito bonito, eu aprendi muito com o processo, aprendi que antes, o que eu achava muito único do Trabalho que Reconecta, isso da dor, na verdade estava sendo vivido pelas pessoas. Eu achava que era muito raro nos encontrarmos e falarmos desse luto coletivo, ou luto climático, desse lugar de dor do que está acontecendo no mundo. Eu tinha um medinho de que quando as pessoas se abrissem para falar das suas dores, surgissem dores pessoais. Mas, foi a primeira surpresa que eu tive: a de que as dores que vinham eram sempre relacionadas ao coletivo, sempre sobre o que estava acontecendo com o outro. Era como se fosse uma mensagem: “confia que as pessoas são compassivas mesmo”. E mesmo quando elas falam de questões pessoais, há questões coletivas envolvidas. Então, eu aprendi que eu não precisava modelar, conduzir o que as pessoas precisam sentir, porque está todo mundo se sentindo incomodado, para dizer a palavra mais fria. Nenhum corpo está livre disso, deste sofrimento.

Eu aprendi a confiar no coração das pessoas, e aprendi também da minha própria fixação sobre a noção de grande virada que o Trabalho que Reconecta traz. A grande virada para Joanna Macy é essa experiência que pode ser vista, em uma leitura externa, como uma transição da nossa civilização, ou das nossas civilizações, de uma sociedade que destrói, que come montanha, como diz Ailton Krenak – sociedade que ela chama da Sociedade de Crescimento Industrial, que está baseada nessa noção de crescimento infinito, como se os recursos fossem infinitos – para uma sociedade que sustenta e celebra a vida. É assim que ela coloca. Vamos fazer esse movimento de migrar de um tipo de paradigma para outro. Estamos fazendo, na realidade, mas o trabalho pode dar a entender que esse outro paradigma é uma coisa hegemônica. Podemos pegar aquela mesma mente, que é a mente de fixação, a mente de expectativa, e podemos encurralar ela de novo numa visão que é uma visão elevada. É uma visão virtuosa de benefício dos seres. Mas ela pode ser igualmente rígida. E se ela for rígida, vai dar problema.

Podemos ter uma fixação de que vamos chegar a um ponto de harmonia estável, pacífica, e isso não existe. O que existe é a impermanência das coisas. O que existe é o fluxo, é mudança. Então, com a melhor mente de budistas engajados, se nos fixarmos em uma visão de sociedade, mesmo que seja benéfica, isso pode gerar os mesmos problemas de antes. Vamos ficar combativos, quando aparecerem sinais de que aquilo não está na direção que queremos, ou vamos ficar depressivos. O refúgio não vai estar dentro, vai estar fora: numa guerra que estaremos lutando para construir a sociedade que queremos. Então, tudo isso só foi clareado para mim enquanto eu facilitava os encontros, porque eu fui vendo o meu próprio nível de rigidez, de que estávamos muito felizes e entusiasmadas, mas havia na base uma fixação. Um modelo do que queremos, e que não se sustenta diante da impermanência, que não é eterno. E aí como desfazemos isso? Então, eu fui vendo que o questionamento desse modelo estável é a parte mais interessante do Trabalho que Reconecta. Nós queremos liberação, não queremos um mundo bonitinho, organizado. Então, há um questionamento da expectativa de uma estabilidade, de uma sociedade harmônica, perfeita.

Como essa metodologia lida com outras questões sociais principalmente questões interseccionais que estão em pauta? Você trabalha com as outras discussões que estão relacionadas? Como a pauta das mulheres, movimento negro, por exemplo.

Lia: Essa pergunta não é fácil de responder porque – e aqui eu vou falar apenas do que eu sinto e da minha experiencia como facilitadora dessa metodologia –  o que Joanna Macy fala é que não devemos dizer às pessoas o que elas têm que sentir. Não tem nada na metodologia que indique temas específicos a serem tratados, nem mesmo temas relacionados a questões ambientais. Não tem nada que precise necessariamente ser provocado, sabe? Em uma experiência em grupo, não cabe a mim dizer o que as pessoas estão sentindo. Eu posso até inconscientemente usar em meus exemplos as questões que eu sei que estão fora do espectro de visão do outro. Mas isso é quase visto como uma falha como facilitadora. Cabe a mim, sim, abrir espaço suficiente para virem à tona aquelas questões invisíveis, que estavam invisíveis até para aquela pessoa. É quase como se confiássemos que se existe um espaço seguro para falar sobre o que dói. A confiança que eu tenho no método é que essas temáticas vêm naturalmente, se existe o espaço, se conseguimos criar esse espaço.


Você tem uma indicação de filme ou livro para pessoas interessadas nesses temas e no TQR?

Estamos bem felizes porque o livro “Nossa Vida como Gaia” – manual do Trabalho que Reconecta (TQR), que já foi publicado no Brasil, mas estava esgotado – vai ser publicado pela Lotus 22 ainda neste semestre. Tem um livro que foi lançado agora, que tem tudo a ver com essa conversa e com o TQR. É o Ecodharma, que é de um professor Zen, o David Loy. Tem o “Esperança Ativa” do Bambual, e também livros em inglês da Joanna Macy. Indico também o site da Joanna Macy e acho que em março vou oferecer uma oficina do TQR também. Há a Comunidade de aprendizagem do TQR.

 

Entrevista e estruturação realizadas por:

Liana Lopes e Amanda Muniz. Praticantes na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

Thainá Soares. Praticante do CEBB de Salvador.

 

Para conhecer mais sobre a Lia Beltrão acesse os sites abaixo:

https://www.joannamacy.net/

https://www.liabeltrao.com.br/ca-tqr

Vídeo: https://vimeo.com/639256310

 

 

Pin It on Pinterest

Share This