A Quarta Nobre Verdade é a verdade do Nobre Caminho que leva à cessação do sofrimento. Compreender a centralidade do sofrimento, no conjunto de ensinamentos que possuem o peso de ‘verdade’, implica não ignorar o centro incontornável de onde se estabeleceu a doutrina budista. Isto significa que, viver qualquer tipo de vida que não tenha como motivação essencial a libertação de todos os seres, é sofrer. Significa, ainda mais: não se trata de um sofrimento que diz respeito às artificialidades dos aspectos da vida, ou mesmo de sua brevidade. Não. A dor do existir assume na dimensão do Tathagatha, o status de centralidade da condição da existência. Buddha reúne na Quarta e última Nobre Verdade, as condições metodológicas imprescindíveis para eliminar, de forma definitiva, a dor e o sofrimento. Para isso ele apresenta O Nobre Caminho Óctuplo, arya astangika marga, conjunto de práticas ensinadas para o Caminho do Despertar. Diz-se “óctuplo” porque é formado por oito elementos e “nobre” porque é moralmente correto, no sentido de que, quem quer que o trilhe, estará destinado à nobre coragem de, verdadeiramente, superar os aspectos limitantes que não permitem uma abertura total para a verdade do Dharma. Finalmente “caminho”, não porque esteja pronto, mas porque é limitado a um período e uma trajetória sinalizada. Sua função está em desembaraçar-nos dos obstáculos da mente e aflorar qualidades pacificadoras. Entender o significado de caminho vai além de percorrer um trajeto delimitado, está mais no sentido de CRIAR meios hábeis partindo de referenciais de mestres que já realizaram o caminho para atingir a liberação.
O Óctuplo Caminho é composto por elementos agrupados em três conjuntos: Prajna, Sila e Samadhi e apresentado numa sequência. Os dois elementos do caminho: Compreensão correta [samyag-drsti] e a Pensamento correto [samyak- sankalpa] são agrupados como Sabedoria _ Prajna. Fluindo da Sabedoria surge o segundo conjunto: Compromisso Moral_ Sila contendo os elementos: Linguagem adequada [samyag-vac], Ação adequada [samiak-karmanta] e Meio de vida adequado [samyag-ajiva]. Na fluência natural do compromisso moral, surge os últimos elementos que compõem o terceiro conjunto; Prajna, são eles: Esforço correto [samyag-vyayama], Atenção Plena correta [samyk-smrti] e Concentração correta [samyak-samadhi]. Estes últimos estabilizam a mente e a purificam dos venenos, impurezas e contaminações, gerando um coração puro e uma mente pacificada. Quando a mente atinge esse plano, o coração cheio de compaixão se abre para a manifestação de Prajna em suas duas faces: Entendimento e Intenção perfeitos. Isto leva-nos de volta ao início. Os oito elementos são intrinsecamente ligados uns aos outros e devem ser percorridos de forma simultânea no Caminho.
“Ao práticar O Nobre Caminho Óctuplo, a Compreensão Correta [samma-ditthi] está no princípio como no final. Necessita-se de um grau mínimo de Compreensão Correta logo no princípio porque proporciona a motivação correta”.
Narada Mahathera
Samyag-drsti _ Compreensão correta é o elemento do Óctuplo Caminho que traduz a filosofia ao qual a vida budista está ancorada. É a sintonia com o Dharma. Sua essência é a compreensão clara da Gênese Condicionada, do princípio de Causa e Efeito, do conceito de Karma e das Quatro Nobres Verdades. Isto é; a vida é dukkha; dukkha é causado pelo desejo de coisas temporárias; tudo é temporário e impermanente porque está interconectado e sem substância e por isso possível de ser dissolvido pelo simples desencanto pelas coisas do mundo. O Caminho Óctuplo parte da confiança na Verdade do Dharma e a certeza de que a libertação está irremediavelmente condicionada ao fim dos desejos-paixões e dada somente e necessariamente pela profunda compreensão da impermanência deles. Este é um aspecto que não cede às ilusões. É uma visão clara de que não existe algo como a eternidade ou uma alma. Ter a compreensão correta, mesmo que no princípio do Caminho seja apenas confiança, é fundamental para ter êxito nos últimos passos, os quais exigem do praticante a capacidade de ir além das absorções e visões fixas de experiências anteriores. É uma total desconstrução de crenças e apoios, é a compreensão de que o caminho é percorrido solitariamente.
Samyak-samkalpa_ Pensamento Correto é a capacidade de deixar passar o impulso de pensamentos condicionados. É a entrega com confiança na exploração da própria mente que se abre. É um deslocamento para um olhar interno, uma geografia da subjetividade. É a descoberta de nossos agenciamentos e responsividades. É conhecer o momento do impulso do pensar e repousar no intervalo entre o estímulo e a resposta automaticamente condicionada. O Pensamento correto é o que desenha a motivação de Bodhicitta para, não só percorrer o caminho, mas em algum momento apagar nossas pegadas. A qualidade do elemento do pensamento correto se desdobra na transcendência de nossas neuroses traduzidas nos Três Venenos_ cobiça, raiva e ignorância. Esse salto de qualidade é dado por meio de insights que promovem a sanidade fundamental de nossa mente num estado livre dos afetos do mal e da raiva, abrindo uma perspectiva de cuidado amoroso para com todos os seres.
Samyag-vag _Samyak-karmanta _ Samyag-ajiva, contidos no conjunto dos elementos da conduta moral_ Sila, apontam e nos dirigem para os encontros e ações na dimensão externa ao nosso ser. São traduzidos por Linguagem Correta, Ação Correta e Meio de Vida Correto e explicitam que ética e moralidade são em seu fundamento expressões externas da sabedoria interna do ser. Toda a moralidade no budismo encontra seus alicerces na questão central de causa e efeito, ação e consequência. Estes aspectos são parte central do Caminho Óctuplo e indicam a possibilidade de alterar o Karma negativo pelo cuidado em estabelecer uma conduta adequada. Os passos do caminho que abrangem o aspecto ético, se fazem de extrema importância na convivência na sangha. Por meio de práticas de seshin, zazenkai, ou cerimônias, no budismo Zen, que a integração da comunidade é intensificada, mostrando ser de extrema importância um compromisso profundo no respeito e esforço em manter a correta conduta de Sila. Estes aspectos do Caminho Óctuplo conduzem à um exercício de disciplina e de domínio do individual em prol do comum, levando a Sangha a se tornar um lugar de perfeita harmonia. A renúncia às condutas indevidas, primeiramente na Sangha e então na sociedade, é descrita em termos de uma cultura de paz e de não violência [ahimsa], motivação esta, que encontra justificativa para comportamentos que vão desde alimentação, produção sustentável ou práticas sócio-políticas como por exemplo a resistência pacífica a regimes políticos percebidos como ilegítimos ou totalitários. A não violência, mais do que uma postura ideológica, tenta instaurar uma cultura de paz, uma escolha ética e compassiva iluminada pela Compreensão Correta e decomposta em sabedoria e compaixão que irão fluir para a Linguagem, Ação e Modo de Vida corretos e adequados.
Samyak-vyayama _ Samyak-smrti _ Samiak- samadhi, estão contidos no último grupo do Caminho Óctuplo_ Samadhi, traduzidos em Esforço Correto, Atenção Correta e Concentração Correta. Todos estes elementos exigem uma compreensão dos ensinamentos de Buddha para que a prática da meditação dê frutos. O Esforço Correto flui da compreensão e da correta intenção. Sustentado pela motivação do bodhisattva, de alcançar a iluminação para ajudar a todos os seres, este esforço é intenso, mas é leve e flui dentro de sua própria dinâmica. O Caminho é difícil, mas profundo em delicadezas, da mesma forma o esforço correto é forte sem ser tenso, é cheio de vigor [Virya], é sutil, é minimal. A Atenção Correta no constante continuum da impermanência, permite a justa duração do tempo para que possamos fazer as escolhas adequadas das ações de nossa mente, fala e corpo. Ela é um estado de pureza e não contaminação inerente a mente Búdica. É um estar no mundo e poder permanecer nesse estado pureza, sem que seja obscurecido por qualquer corte da nossa percepção na constante efemeridade dos fenômenos. Também diz respeito a memória ou reminiscências. A Concentração Correta é samadhi, refere-se a um estado profundo de concentração ou de equilíbrio meditativo. Nesse estado nossa mente e nosso corpo encontram-se pacificados. A base da meditação é a concentração e saber empregar o esforço correto para encontrar o ponto de equilíbrio, como se no silêncio de uma grande pausa, é o ajuste ideal da mente e do corpo, sua unificação.
A Quarta Nobre Verdade é a verdade do Nobre Caminho Óctuplo. Contudo, ao contrário do que se possa esperar não é uma estrada já́ construída, um sistema pronto em que as expressões individuais não são necessárias. É preciso um compromisso e uma entrega verdadeira, entender que o caminho é uma busca pelo significado real do Dharma, um caminho de autoconhecimento e autodomínio demarcado por mestres e disponível a todos que almejam o ideal do Boddhisattva.
“A primeira das Verdades Nobres, ensinada por Buda, é a presença do sofrimento. A consciência do sofrimento gera a compaixão, gera a vontade de praticar o caminho”.
Thich Nhat Hanh
Texto de Danielle Kreling. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.