“Amar não é dizer eu te amo o tempo todo. Amor é comportamento. Quem ama se comporta como quem ama. Quem ama cuida, protege e respeita a pessoa amada”.
Em meio às ruinas de um Japão devastado pela Segunda Guerra, um senhor aparentando sessenta anos, vasculha os escombros a procura de comida ou algo que possa vender ou mesmo servir de alguma forma em casa. Um grupo de jovens o vê, se aproxima e o reconhece; é seu professor do Kôkô, o ensino médio japonês. Eles conversam por alguns minutos e os jovens resolvem acompanha-lo até a casa dele. Quando lá chegam ficam apavorados com as condições que seu antigo Sensei e sua esposa vivem e resolvem ajuda-lo reconstruindo a casa e levando comida, roupas e móveis. Madadayô, o nome do filme, é uma história de ficção que traduz a mentalidade do pensamento japonês com relação aos mais velhos, aos mestres, aos ensinamentos, aos valores e a doação.
Em 2018 quando ainda morava no interior de Goiás, minha mãe morreu e quando vim para o funeral telefonei para Lídia Sensei, minha professora de língua japonesa, uma senhora na época com setenta e oito anos, pedindo para visita-la e falando sobre o motivo de minha estada em Florianópolis. Fui à sua casa e levei um presente, como manda a etiqueta japonesa. Tomamos chá, conversamos, saímos para almoçar – ela não me deixou pagar – e quando estava me despedindo me entregou um envelope com dinheiro, dizendo que era para minhas despesas de viagem, “sei que uma viagem inesperada como esta deve ser caro” me disse ela. Não há espaço para recusas, apenas segurei o envelope com as duas mãos, me inclinei e agradeci cerimoniosamente.
No Japão quando há um funeral, é costume os parentes do falecido oferecerem um coquetel e providenciar um local para as pessoas dormirem, pois eles reconhecem todo o esforço de tempo, deslocamento e dinheiro das pessoas para estarem presentes. Em contra partida os visitantes, reconhecendo as dificuldades de arcar com todas as despesas, oferecem envelopes com dinheiro.
As diferenças entre as culturas são abismais e não falo somente no idioma ou nas vestimentas, mas principalmente quanto aos valores. Tudo com relação à educação é levado muito a sério no Japão a ponto de alçar a profissão de professor a um dos status mais elevados entre as profissões e os salários estão entre os mais altos entre os servidores públicos.
Na minha visão não existe dinheiro que possa pagar os ensinamentos que recebemos. O salário de um professor é como uma pequena recompensa que cobre os custos de alimentação, transporte, roupas e aluguel, muito embora nunca ou quase nunca o valor dê para tanto. Se fosse possível dar valores monetários aos ensinamentos, sejam estes da grade curricular ou ensinamentos subjetivos filosóficos e de vida que muitas vezes vêm como um componente a mais, não haveria dinheiro suficiente, em suma, não há dinheiro que pague. E é neste ponto que surge mais uma diferença entre nossas culturas, o japonês valoriza a pessoa do professor, enquanto para nós brasileiros estes são nossos empregados e não fazem mais que a obrigação, sobretudo se for de uma escola particular. Nossas sociedades ocidentais, de maneira geral, são ensinadas a valorizar as profissões que constroem coisas materiais duradouras como engenheiros ou pessoas que parecem ser muito ricas e bem sucedidas. Nos acostumamos a admirar os Bill Gates da vida, mas não olhar com os mesmos olhos para os Gandhi, muito embora o conceito de sucesso seja algo muito relativo, mas isso não é o objetivo deste texto. Pessoas cujas profissões se constituem de tarefas que precisam ser refeitas diariamente como cozinheiros, faxineiras, jardineiros ou pessoas que cuidam de crianças ou velhos, de maneira geral são muito mal remuneradas ou reconhecidas, quando não, invisíveis.
Pessoas que saem das faculdades consideram que seus esforços foram os únicos responsáveis pela sua formação e não costumam ter qualquer tipo de reconhecimento com a estrutura ou com o dinheiro dos impostos que possibilitou manter a estrutura ou com os professores. Ainda que eu entenda que ninguém nos ensina nada, que as pessoas sejam somente uma referência, um dedo apontando para lua, ainda sim acredito que todas as pessoas, de qualquer área profissional, deveriam devolver em forma de trabalhos voluntários para a sociedade, todo o esforço e dedicação que tornou possível sua qualificação. As pessoas encarregas da limpeza das salas e corredores, as cozinheiras do RU, os jardineiros e demais servidores que em sua maioria ganham um salário mínimo, dificilmente terão acesso aos serviços que os alunos, quando formados, irão oferecer por cifras absurdamente altas. Desta forma cada médico que sai das universidades deveria atender gratuitamente por um tempo todas as pessoas de baixa renda, todos os pobres, moradores de rua, idosos em asilos públicos e crianças em creches, o mesmo acontecendo com advogados, engenheiros, enfermeiros etc.
Quando o assunto é espiritualidade a falta de reconhecimento tende a piorar. O pensamento corrente atual, talvez pelo aumento significativo do número de assembleias e outros “templos” religiosos, é de que o líder espiritual ou é alguém muito rico ou é um parasita social. No entanto Aldous Huxley, no seu livro A Filosofia Perene, nos lembra que boa parte do pensamento mais original e produtivo do mundo foi feito por pessoas com um jeito de raciocinar que é não prático, não é comum, o tipo de pensamento ordinário de uma sociedade, e que estas pessoas invariavelmente possuíam uma condição física fraca e necessitavam ser protegidas do estresse e tensões da vida social, por isso foram erguidos eremitérios, mosteiros, faculdades e academias de ensino. Por isso parte do dinheiro do pagamento dos impostos é destinado para entidades educacionais, por isso existem os dízimos da igreja católica e por isso existe a Dana.
A Dana não é de maneira alguma um pagamento que se faz ao monge budista, ela é um reconhecimento por seu esforço e dedicação em nos transmitir o Dharma de Budha, uma maneira de agradecer. O status do monge vem mudando muito desde os tempos de Budha, passando de estritamente mendicantes em sua origem para os atuais monges ocidentais que em sua maioria necessitam trabalhar para ter uma renda e ainda sim precisam que os leigos de sua sangha façam doações. Existem diferentes formas de Dana e uma instituição como o Daissen Ji, por exemplo, não estaria como está hoje sem o grande número de pessoas das mais diversas áreas do conhecimento que trabalham de forma voluntária para que nosso mestre possa se dedicar única e exclusivamente ao ensino do Dharma.
A Dana é fundamental para que os monges possam se vestir – roupas monásticas são especialmente caras – e viajar para treinamentos e retiros. Hoje no Daissen existem monges que estão terminando suas graduações e mestrados nas faculdades e dividem seu tempo entre estudos, profissão civil e sua vida monástica. Há também os monges que se dedicam somente ao Dharma, seja como professores como Sensei Genshô e Sensei Komyô, como divulgadores de conteúdo na internet como blogs ou canais de redes sociais, monges da Sangha Virtual, monges que cuidam de Sanghas presenciais e dão sustentação ao trabalho dos Sensei e ainda monges que se dedicam aos cursos oferecidos pelo Daissen Ji. Toda esta instituição chamada Daissen Ji, precisa da Dana para sobreviver. Há ainda a questão do espaço físico. Todas as pessoas quando chegam às Sanghas, encontram um local arejado e limpo, alguns onde o calor é excessivo possuem ar condicionado, cadeiras, zafu, zabuton, chá, biscoitos, altar, velas, incensos, livros, palestras dos Sensei, leitura de textos do Dharma, enfim, tudo pronto para a prática. Quase ninguém se pergunta; quem paga tudo isso¿ Quem paga pelo aluguel, luz e água¿ É preciso que respeitemos os esforços e dedicação de todos que nos permitem que nos preocupemos apenas em sentar.
Dana é um ato de doar, doar tempo, amor e respeito às pessoas responsáveis por nossa formação, seja esta física, emocional ou espiritual. Quem ama se comporta como quem ama, quem ama cuida.
Texto de Monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.