Texto da Série “Memórias de um Casal de Peregrinos”
Trinta dias em isolamento, 11 horas de meditação diárias, comendo o mínimo e somente duas vezes ao dia, sem nenhum tipo de refeição após o meio-dia, sem conversar com ninguém, seguindo um itinerário restrito: da cabana para a sala de meditação em grupo, da sala de meditação para a saleta de 1m2 para meditação sozinha, dela para o refeitório, do refeitório para a cama etc. No 31º dia, fim de fevereiro de 2020, pego meu telefone. Inúmeras ligações dos nossos pais, e-mails dos meus irmãos, demonstrações da preocupação que sentiam por estarmos tão próximos da China, naquele momento fatídico.
Antes de pensar em respondê-los, ou de entender onde ficava Wuhan, só queria ver o Thomás, conversar com ele, abraçá-lo, compartilhar tudo o que tínhamos passado naqueles dias separados, mas unidos no propósito de nos aprofundarmos no caminho do Dharma.
Deixávamos Wang Thong, na Tailândia, em um ônibus, para conseguirmos chegar ao aeroporto de Bangkok e seguirmos a Chiang Mai, onde ficaríamos por dois meses antes do próximo retiro. O aeroporto tinha, de fato, mais pessoas de máscaras do que de costume. Nós e a maioria dos ocidentais sem máscaras, achando ainda tudo um grande exagero. Do nosso quarto alugado, pesquisávamos dia após dia os avanços do, então desconhecido, SARS-CoV-2 pelos continentes.
Quando começamos a entender a seriedade da situação, algumas fronteiras já estavam fechadas e só pensávamos que a qualquer momento poderíamos ficar impossibilitados de voltar ao Brasil, onde minha sogra – nos últimos anos vivendo em tratamento devido a uma séria doença autoimune – corria um risco crescente. A essa altura, a pandemia já mostrava que o retorno, na verdade, seria uma continuação da nossa prática. Ela não poderia mais receber ninguém em sua casa, sair para comprar nada. Era chegada a hora de colocarmos em prática o que vínhamos treinando.
Uma empática atendente portuguesa ajudou-nos, pelo telefone, a trocar nossas passagens, utilizando as recém-criadas regras de emergência das companhias aéreas, antecipando em quase um ano nosso voo e mudando seu itinerário. Já não se podia mais voar de Nova Délhi – Índia para São Paulo e nem da Tailândia para a Índia, então, em dois dias partíamos de Bangkok para uma nova fase da vida, sem previsão de término e com várias escalas até Guarulhos.
Arrumamos as malas correndo, compramos passagens de última hora de Chiang Mai para a capital do país e após vários contratempos, com voos cancelados e turistas de todo o mundo se trombando perdidos pelos reconfigurados corredores dos aeroportos, conseguimos embarcar rumo ao Brasil. Aqui, fizemos uma quarentena de um mês e finalmente chegamos à casa da minha sogra, onde ficamos em real lockdown até a véspera do último carnaval, agora em 2022.
“A Vida é um Precipício”
Como temos mensalmente relatado aqui, desde nosso primeiro retiro, em 2014, viajamos pela Ásia em busca de ensinamentos e oportunidades de prática. Se primeiro havíamos abandonado nossa vida pregressa para nos focarmos totalmente em tal busca, com o surpreendente surgimento da pandemia chegava a hora de uma nova renúncia. Era preciso deixar para trás nossos planos, expectativas de frequentar novos locais de prática sobre os quais só havíamos ouvido relatos, bem como abandonar viagens, que acabaram nunca acontecendo – como Nepal, Indonésia e Ladakh, na Índia himalaica.
Os 23 meses que se seguiram à nossa chegada ao Brasil exigiram concentração, paciência e compaixão. Tenho convicção de que sem os anos de prática budista, não teríamos atravessado esse tempo todo em um autoimposto lockdown sem sermos acometidos de grandes angústias. Continuamos a estudar e a meditar, fizemos períodos de retiros silenciosos só nós dois, em nosso próprio quarto, na casa da minha mãe, saindo apenas para cozinhar, comer e tomar banho.
Tivemos, é claro, percalços, instabilidades, dificuldades. Mas isso era esperado e aconteceria independente de estarmos no Brasil, na Tailândia ou na Índia. Sabíamos que nossa prática precisava continuar com tanta determinação quanto quando estávamos em monastérios ou centros de meditação. Cada detalhe do dia precisava ser encarado como prática. Como explica Shunryu Suzuki:
“Estar completamente concentrado no que se faz, isso é simplicidade. E a beleza da prática é que ela pode ser ampliada infinitamente. Não se pode dizer que nosso caminho seja bem fácil ou muito difícil. Não é nada difícil. Todo mundo consegue, mas continuar seguindo-o é bastante árduo.” (SUZUKI, 2003, p.44)
Com o passar dos meses, isso acabou sendo um incentivo para que minha mãe, que já havia lido alguns livros de Thich Nhat Hanh, Matthieu Ricard e Dalai Lama, lesse “O Pico da Montanha é onde estão meus pés”, de Monge Genshō, e começasse, também, a assistir aos seus vídeos na internet. E passasse, assim, a fazer ao menos uma sessão diária de meditação, hábito que ela mantém até hoje.
Tal cotidiano em total isolamento só foi interrompido agora, quando alugamos um carro e viajamos de São Paulo a Brasília para participarmos do sesshin e conhecermos pessoalmente parte de nossa Sangha. Interrompemos as narrativas de nossa vida na Ásia, a qual retornaremos na próxima edição, pois o que acabamos de vivenciar queremos compartilhar com quem possa vir a nos ler. Depois de dois anos, então, decidimos que tal isolamento precisava ser quebrado, pois a exceção se apresentava a nossa frente. Mas o que nos levou a tal decisão?
A resposta mais direta é que encontramos a nossa casa após tantos anos peregrinando. Tailandeses, cambojanos, indianos, vietnamitas, sul-americanos, australianos, europeus de toda parte, meia dúzia de norte-americanos e canadenses, israelenses, brasileiros e russos já foram nossos companheiros de retiro ao longo dos anos. Recebemos ensinamentos valiosos de monges e leigos de diferentes tradições. Fizemos cursos, estudamos, frequentamos bibliotecas de monastérios e centros de meditação. Temos aprendido muito e sentimos uma profunda gratidão por todos que nos ajudaram em cada passo que pudemos, até aqui, dar no caminho ensinado por Buddha. O nosso encontro com a Daissen, entretanto, desde o começo, se mostrava diferente de qualquer uma dessas nossas experiências prévias.
Em 2014 ou 2015 lemos, pela primeira vez, textos do Monge Genshō no blog “O Pico da Montanha”. Desde então, mesmo passando a maior parte de nosso tempo nas estradas asiáticas, assistimos a muitas de suas palestras no Youtube e lemos publicações da Daissen na internet. Uma vez de volta ao Brasil, lemos seus livros e fomos nos aproximando mais e mais de seus ensinamentos e retornando ao nosso ponto de partida no estudo do Dharma, o Zen. Marcamos nossos primeiros dokusans[1] e assim que terminamos falei para a Tamara “encontrei o meu mestre!” e ela, muito feliz, me respondeu que sentia o mesmo. Desde então, percebemos que toda a nossa trajetória foi uma preparação para o encontro com o nosso professor definitivo.
O professor é “uma pessoa que trilhou o caminho há mais tempo e que conhece pedras, curvas e alguns obstáculos” (Genshō, 2020, p. 111). O monge vem nos ensinando sobre o caminho e, certamente, já nos poupou de muitas pedras e obstáculos. Por vezes, curtas sentenças que proferiu esclareceram conceitos e ideias que há tempos me causavam dúvidas. Mas não se trata apenas disso, de sua tão conhecida capacidade de explicar e ajudar a ver com clareza o que até então era obscuro. É preciso existir uma conexão real com o professor para que haja uma total confiança. E o Zen é um caminho que exige completa entrega, é necessário ser capaz de abrir as mãos que nos sustentam na beirada do abismo ou, melhor, “temos que pensar ‘já estou no precipício, a vida é um precipício’. Melhor ainda se formos capazes de saltar com os olhos abertos” (ibid., p 163).
Não se trata de fé cega, pelo contrário, o Budismo é um caminho fundado no questionamento e no inconformismo (afinal, quão questionador e inconformado precisou ser Siddharta para deixar o palácio?). O próprio Buddha disse para não, simplesmente, acreditarmos nele, mas para experimentarmos e testarmos.
Todavia, o questionamento sozinho é incompleto. É necessário se entregar ao caminho, dar o passo adiante e se comprometer por completo. E quando se sente, com profunda sinceridade, que encontrou o seu professor a escolha do compromisso é natural, orgânica.
Reverenciando Todos os Buddhas, Boddhisatvas e Mahasatvas
Aqueles rostos tão já reconhecíveis e familiares, depois de tantas sessões de Zazen online, ganhavam movimento, vozes, sotaques, textura. Como escutamos em nossa chegada: “Finalmente, estamos nos vendo em 3D”. Mas tínhamos de nos refrear. Evitávamos a aproximação, os abraços e até conversas, mesmo todos com máscaras, porque passaríamos aqueles dias lá, mas, logo depois, voltaríamos para cuidar de nossa família. De toda forma, em menos de 24h depois da nossa chegada, já estávamos todos em silêncio. E tudo o que escutávamos, fossem crianças ao fundo, latidos, pássaros, deixava de ser barulho, como uma vez disse o mestre Thich Nhat Hahn, esses sons, na verdade, só aprofundam o silêncio[2].
Desde a entrada no zendō, as reverências, o arrumar do zafu, o sentar, o girar em sentido horário, o lugar onde o orioki fica no zabuton, o modo como deslocar o peso do corpo durante o kinhin, até a efetiva saída do zendō era uma constante apreciação de um antigo novo. A cada passo me sentia privilegiada de estar vivendo aqueles dias de sesshin.
A manhã do primeiro dia de completo silêncio nos presenteou com batidas sincronizadas em um dueto de sinos. Madeira e Metal anunciavam o vestir do manto. E ali eu me deparava com um “campo sem forma de benefícios”. E me lembrei das palavras do Monge Genshō explicando que “quando você olha o manto, ele é feito de retalhos, como um campo de arroz também. E como ele é feito de retalhos de tecido rejeitado, ele tem um simbolismo muito bonito, de que você pegando tecido estragado e separando pedaços ainda bons e costurando os retalhos, pode de novo fazer uma coisa boa. E todos nós somos assim. Temos pedaços bons, pedaços ruins, sentamos aqui em Zazen e vemos, nossos pedaços bons e ruins aparecendo”[3].
Pelos campos de arroz de Hoi An (cidade costeira do Vietnã), uma vez, deparei-me com um búfalo. Imponente, gigante. Ele olhou-me firmemente nos olhos. Naquele momento, ele era, lá, a minha parte boa. Tinha a força e a autoconfiança que eu queria ter. Ele não me parecia menos humano do que eu, e eu não parecia menos animal do que ele. Queríamos a mesma coisa, só passar. Eu em direção à praia, ele para o outro lado da passarela. Hoje, revisitando aqueles sentimentos, consigo entender que, realmente, éramos um só. Retalhos de um mesmo pano: o pano do mundo. Ele bloqueava a passagem da minha bicicleta, por medo, o aguardei. Não sei por quanto tempo ficamos nos olhando, tempo suficiente para hoje eu pensar: costuramo-nos ali.
Embora cada sino demarque o início ou final de algum ritual no Zen, e mesmo tendo eu me atentado às explicações generosas dadas no dia anterior sobre eles, a cada batida, a cada ressoar, eu já não pensava sobre o que viria ou o que teria acabado, deixava-me só ser levada a um estágio de mais profunda concentração por aqueles sons. Cheiro, respiração, o macio do zabuton, suspiros, sono, vento, o tilintar dos sinos, tudo era junto e único. Nesta primeira manhã, estava sem meu livro de cerimônias, então, de olhos bem fechados, vivi o sutra do coração, reconheci alguns daioshōs, e reverenciei todos os Buddhas, Boddhisatvas e Mahasatvas “através do espaço e do tempo”.
Em um dos pequenos intervalos do dia, deitada em meu quarto, lembrei-me daqueles 30 dias em silêncio. Acredito que éramos mais de 100 meditadores, 95% tailandeses. Sentava-se ao meu lado, na sala de meditação, uma menina, sempre imóvel e silenciosa. Não via – nem sentia – sua entrada, nem saída. No final do retiro, conversamos. Yoko, seu nome. Japonesa. Naquele mar de gente a minha sangha era só Yoko. Notei que ela adorava melancia e tangerina. Sentava-se perto de mim no refeitório, mas só no último dia era permitido conversar e olhar as pessoas no rosto. Inventei com ela uma parceira. Não me moveria, para que ela não fosse perturbada. Comia tão pouco quanto ela. Saíamos quase juntas do refeitório. Chegava à sala de meditação 15 minutos antes do início oficial da sessão, para não a atrapalhar.
Em Brasília, eram 49 Yokos comigo. E seguíamos todos com o mesmo propósito de parceria, desta vez, não inventada, e sim quase que reconhecida em cartório. Éramos a Daissen. No meio do sesshin, mais um presente: Dokusan. Rememorei outra vez as palavras de Thay:
“Anseio preservar encontros individuais entre professor e aluno, em que o aluno desfrute da atenção completa do professor, o tipo de atenção que desperta a atenção plena do aluno. O professor também se beneficia de um aluno que está completamente presente. Quando o Buda levantou uma flor no Vulture Peak, apenas Mahakashyapa sorriu. O próprio Vulture Peak e toda a assembleia sentada lá desapareceram, e apenas duas pessoas estavam realmente presentes, o Buddha e Mahakashyapa. Foi um verdadeiro encontro.” (NHAT HANH, 1999, p. 132 )
Meus pais não me batizaram quando eu era bebê. No auge dos meus 9 anos, minha mãe descobriu que se eu quisesse me casar na igreja católica, era mais fácil – ou a única maneira de me ser permitido, no fim, ela nem sabia bem explicar – se eu fosse batizada. Levou-me ao padre mais próximo, que disse que era preciso que eu e minha irmã – ainda mais velha do que eu – confessássemos, por não sermos mais puras como um bebê, para aí sermos batizadas. Minha irmã entrou primeiro. Aguardando a minha vez, ensaiava o discurso, pensava em tudo o que o padre poderia descobrir, mas que eu esconderia – se preciso, negaria: o brinquedo do meu irmão que eu tinha quebrado, a lição de casa que falei que a professora não tinha dado etc.
Não era um encontro verdadeiro, não queria ser verdadeiramente vista. A entrevista com Monge Genshō, no entanto, não podia ser mais desarmada. Ao contrário do que pretendia naquela paróquia décadas atrás, em Brasília, queria é que meu mestre me reconhecesse como eu o reconhecia. Não tinha muito o que lhe falar, ou contar, mas era a presença amorosa que já conhecia virtualmente que fui reencontrar naquela conversa.
“A presença de uma mãe amorosa é crucial para o crescimento de um bebê, e a presença amorosa de um professor e de alunos é muito importante para nos desenvolvermos em nossa prática. Precisamos de amor para podermos crescer e seguir em frente.” (NHAT HANH, 2018, p.55)
As práticas virtuais são essenciais, sem elas, por exemplo, não poderíamos ter nos sentado com a Sangha durante esse tempo todo de pandemia, isso é certo. Agora, algo sobre o qual pouco pensamos é que, além disso, somos também privilegiados pela possibilidade de encontros mensais com nosso professor. Na força da presença carne-e-osso que os sesshins nos proporcionam, eu estava completa! Saía da sala onde aconteciam os dokusans na certeza de que lá ocorrera um “verdadeiro encontro” por meio do qual pude “crescer e seguir em frente”.
Cuidado, não Desperdice sua Vida.
Desde a nossa chegada, nos sentimos completamente acolhidos e integrados. Foi muito bonito presenciar os esforços de cada um para que o sesshin fosse bom para todos. O rigor e a disciplina coexistiam ao lado dos olhares compassivos diante de qualquer erro cometido. No sesshin, o silêncio, os sinos, as velas, os incensos, os gestos possuem significados profundos aos quais homens e mulheres entregaram suas existências ao longo da história. Essa densidade histórica se avolumava com o passar das horas e dos dias, tornando-se palpável para nós.
A todo momento, somos lembrados que estamos ali dando continuidade a gestos, palavras e atitudes que vêm acontecendo há muitos séculos. O importante não somos nós, mas o ensinamento transmitido geração após geração em uma linhagem de ancestrais que percorreram o caminho antes de nós e generosamente deixaram instruções para nos guiar. O verso recitado antes das palestras nos ajuda a perceber a dimensão da oportunidade que estamos tendo:
“O Dharma incomparavelmente profundo e de uma sutileza infinita é raramente encontrado mesmo em milhões de milhões de ciclos universais. Possamos nós agora ouvi-lo, aprendê-lo e guardá-lo. Ouçamos cuidadosamente as palavras do Tataghata.”
No final, a cerimônia de Jukai e a ordenação do, agora, Monge Mushin. Ali, pessoas comuns davam importantes passos, se comprometendo com admiráveis votos e recebendo novos nomes. Nomes que têm o potencial de traçar rotas de vida. O Zen é um caminho infinitamente maior do que cada um de nós enquanto indivíduo e, por isso mesmo, é um caminho que só se concretiza quando deixamos de agir e pensar como indivíduos.
Anos atrás, chegamos ao Budismo buscando uma saída para as angústias da vida após a morte de meu pai. Atualmente, nos dirigimos diariamente aos nossos zabutons e zafus com a felicidade de quem se entrega ao caminho e por meio dele percebe a vida cheia de sentido. Não se trata, porém, de sermos ingênuos a ponto de pensar que nos livramos da infelicidade: “Saber sofrer também é a prática do Zen. Entender a infelicidade completamente, percebê-la inteiramente. O pensamento que vem com ela, o sofrimento que vem com ela, a angústia que vem com ela também.”[4]
Conversando sobre tais temas, pegamos a estrada de volta rumo a São Paulo. No meio do caminho, paramos em um hotel para passarmos a noite antes de seguirmos viagem e, ao acessarmos as notícias pelo celular, nos deparamos com as imagens horríveis dos primeiros dias da invasão à Ucrânia. Como toda guerra, injustificável e perversa.
As guerras são a vitrine do que há de pior nos homens e mulheres: violência, ódio, ganância, desprezo pela vida alheia, arrogância, sede pelo poder. O que se dá em uma guerra, e o próprio acontecimento da guerra em si, é o resultado do que nós, a humanidade, nutrirmos em nossas mentes: apego, aversão e raiva. Nos destroços de prédios civis bombardeados, em meio aos corpos e ao som do choro dos sobreviventes, encontramos o ápice de um processo socialmente alimentado, de forma muitas vezes sutil, ao longo do nosso dia a dia.
Plantamos as sementes de todas as guerras quando instruímos crianças e adolescentes a serem competitivos e impiedosos com os adversários, quando incentivamos o consumo desenfreado, a vaidade, o orgulho, quando premiamos com altos cargos a ganância e a corrupção, quando fechamos os olhos para a dor dos outros seres, quando aprendemos a odiar a torcida adversária e a temer o imigrante e o membro de outra etnia.
Pensando em tudo isso, e ainda com a sensibilidade aflorada pelo sesshin, experienciamos o fortalecimento de nossa determinação em seguirmos, cada vez mais profundamente, o caminho Zen, um caminho que não só não alimenta as sementes da guerra, como as combate, fortalecendo o desapego, a equanimidade e a compaixão.
Tudo o que vivenciamos no sesshin de Brasília afasta seus praticantes da guerra. Lá, treinamos a nos preocupar com o outro antes de com nós mesmos, quando buscamos nos mexer o menos possível durante o zazen para não perturbarmos os companheiros e companheiras ao lado ou quando procuramos não sermos os últimos a acabar de comer, para que não façamos os outros nos esperarem. Treinamos desaparecer em meio à sangha, com roupas e comportamentos parecidos, o olhar para baixo, os passos silenciosos.
Com as prostrações diárias e as reverências ao altar demonstramos nosso respeito e devoção pelo que ela simboliza: Buddha e o potencial para despertar que existe em todos os seres. Como não respeitar cada um se todos possuem a natureza búdica?
Cada detalhe do dia a dia de um sesshin é pensado para nos ajudar a nos libertarmos dos condicionamentos que nos impedem de despertar. A forma como andamos, sentamos e nos alimentamos, tudo são meios hábeis. Aliás, para finalizar, a alimentação zen merece comentários à parte. A beleza do ato de nos alimentarmos todos com as mesmas simples e nutritivas refeições veganas era completada pela dedicação dos que serviram na cozinha e pela precisão dos gestos ritualísticos da refeição formal com o orioki que tentávamos aprender, sempre com a ajuda gentil dos membros mais antigos da comunidade.
Para nós, é recorrente “digerirmos” e sentirmos os efeitos de um retiro conforme os dias e semanas passem após seu término. E hoje, escrevendo este texto quase um mês após o sesshin, sinto que ele ainda não terminou de repercutir em toda sua força em nós.
As notícias da guerra contrastavam tão intensamente com nossa experiência nos dias anteriores que pareciam não poder fazer parte do mesmo mundo. Nossas escolhas nos pareciam mais lúcidas do que nunca. Queremos ver nossos antigos e imaginários eus sumirem sem deixar rastros ao percorrermos um caminho infinitamente maior do que nós, nos comprometendo a auxiliar todos os seres a se libertarem.
Todos os dias, precisamos nos lembrar da efemeridade da vida, para com isso encontrarmos determinação e força em nossa prática. De uma hora para outra, podemos sair de um retiro e nos deparamos com um mundo tomado por uma pandemia, uma guerra ou ambos. Essa é a história da humanidade. A vida é tão preciosa quanto frágil. Os versos proferidos ao final de cada dia no sesshin não nos deixam esquecer:
“Permita-me respeitosamente lhes lembrar,
Vida e morte são de extrema importância.
O tempo rapidamente se esvai e a oportunidade se perde.
Cada um de nós deve esforçar-se para despertar
Cuidado, não desperdice sua vida.”
Texto de
Thomás Rosa, professor de Teorias da Comunicação e Jornalista. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen.
Tamara Carneiro, Linguista Aplicada e professora de línguas. Praticante na Daissen Ji, Escola Soto Zen
Referências:
Genshō, Monge. O Caminho Zen. Editora Daissen: Florianópolis, 2020.
__________. Encontrar o sofrimento.
In: https://opicodamontanha.blogspot.com/2011/09/encontrar-o-sofrimento.html
__________. Mantos Sobre a Cabeça. In: https://www.daissen.org.br/mantos-sobre-cabeca/
NHAT HANH, Thich. Fragrant palm leaves: journals, 1962-1966. Translated from the Vietnamese by Mobi Warren. Riverhead Books: New York, 1999.
__________. Silêncio: o poder da quietude em um mundo barulhento. HarperCollins: 2018.
SUZUKI, Shunryu. Nem sempre é assim. Editora Religare, 2003.
[1] Dokusan é uma entrevista que o praticante tem com o seu professor, e que o discípulo tem com o seu mestre. In: https://www.daissen.org.br/dokusan/
[2] Thich Nhat Hanh. Fragrant Palm Leaves. 1999
[3] Monge Genshō. Mantos Sobre a Cabeça. In: https://www.daissen.org.br/mantos-sobre-cabeca/
[4] GENSHō, Monge. Encontrar o Sofrimento. In: https://opicodamontanha.blogspot.com/2011/09/encontrar-o-sofrimento.html