Escuta Profunda

 

 

Hoje, gostaria de falar sobre escutar. Esse sentido tão básico, mas que ultrapassa sem dificuldade as limitações de uma mera função fisiológica: escutar, é, postulo, o maior presente que podemos dar aos outros e a nós mesmos.

Kannon, ou Guanyin, a representação feminina da bodhisattva da compaixão, Avalokiteśvara, tem, como uma das interpretações do significado de seu nome: “Aquela que percebe os sons do mundo”, ou, Guānshìyīn, literalmente a “que percebe as lamentações do mundo”. Essa entidade budista, sem dúvida uma das mais famosas, se não a mais, simboliza a suprema compaixão de todos os Buddhas.

De acordo com sua história, ao perceber que apenas dois braços não seriam suficientes para acolher a inumerável quantidade de seres sencientes e seu sofrimento, cresceu mil mais, o que deu fruto a um dos símbolos mais belos da iconografia budista, Senju Kannon (千手観音), a Deusa da Misericórdia de Mil Braços.

Há, escondido em plena vista do significado de seu nome, um ensinamento tão fundamental e primaz que apenas pensar nele me emociona; o ato da escuta é um, grave em sua grandeza e potencial, dos incontáveis portais do Dharma. Thich Nhat Hanh, o Mestre Thay, apreciava o poder transformativo desta ação, dizendo, em um dos seus principais livros, que “A escuta profunda nutre ambos: quem fala e quem ouve”.  Tive, durante meu curto tempo como praticante budista, e, mais breve ainda, período de atuação como psicólogo e psicoterapeuta, a oportunidade de ser atravessado pela verdade dessas palavras.  A ponto de me dar a escrever este texto tarde da noite, tentando fazer jus à inspiração que este me presenteia. Mas, ainda assim, sinto que estou completamente eludido em relação à verdadeira magnitude da escuta.

Meu mestre, monge Kômyô, assim como seu mestre, monge Genshô, vez ou outra transmitem a simples instrução da escuta. “Ouça”, dizem, “os sons que acontecem ao nosso redor durante o zazen, sem nomeá-los ou julgá-los “. “Ouça o som do pássaro lá fora, e deixe que ele atravesse você e reverbere em cada parte de seu corpo”. São instruções que me lembro de ouvir em um momento ou outro, e que ficaram registradas profundamente em mim. De fato, ouso dizer, é possível ouvir com cada parte de nosso corpo. Principalmente a pele, observo, é uma das mais hábeis ouvintes.

Em Keisei Sanshiki, um capítulo do Shobogenzo, Dogen Zenji conta a história de Zizhan, um praticante leigo, que, ao acordar de manhã ouvindo o som do riacho do vale, despertou para a Via. Este não é o único exemplo de pessoas que tiveram experiências de esclarecimento que começaram com um simples som, como o toque de uma pedra em um bambu.

Mas, eu não estou aqui para falar destes méritos, senão, falar do aspecto nutritivo da escuta. Falar de sua faceta mundana e corriqueira; aquela das palavras, das falas, dos gritos e sussurros do mundo. Durante minha graduação em Psicologia, fui muitas vezes advertido que o instrumento principal de um psicólogo é sua escuta; sua capacidade tecnicamente qualificada de ouvir sem fazer juízo de valor, de acolher.

Sempre concordei com esta asserção, mas, como sinto, esta não faz juz à profundidade elementar e tão enganadoramente simples da arte da escuta. Afinal, nós não somos treinados a ouvir o outro como uma pessoa, em um momento auspicioso de plena consciência, ouve o som de um riacho, ou a risada de uma criança. Ouvimos, no máximo, como alguém habituado a compreender e apreciar a complexidade do léxico emocional e racional humano, como alguém que possui uma sensibilidade teórica, uma capacidade sem dúvida essencial, e indispensável, para o ofício, mas que não necessariamente significa ouvir com profundidade.

Como diz o mestre Thay, e eu cada vez mais tendo a concordar, se aplicarmos esforços genuínos na prática da escuta profunda e da fala adequada por, e para, essa escuta, os caminhos que se abrem são de uma sutileza, e de uma capacidade curativa tal, que nos nutrimos de sua sustância como quem, morto de fome, serve-se de mel. E estamos, de fato, famintos: nossa sociedade carece de escuta. Este diagnóstico é certeiro.

Esta simples prática não está reservada para os psicoterapeutas; pelo contrário, todos nós podemos, e precisamos, nos tornar artesãos da escuta, esta é uma postura política e revolucionária. E ela é literalmente uma prática, além de ser, obviamente, um verbo fadado a expressar-se em ação. Como prescreve Thay, ao ouvirmos o que ou quem quer que seja, prestamos atenção não apenas no som, mas como ele atravessa nosso corpo, mexe com a respiração, transborda em sentimentos e borbulha nossas formações mentais. Este é o ato simples da escuta, mas que, se realizado magistralmente, nem que por acidente, acredito ser a ponte imediata ao esclarecimento pleno.

Um dos contos de meu mestre conta a história de um monge que era conhecido como “O mestre dos fantasmas”. Ele via espectros, aparições efêmeras e distorcidas em todo lugar. Na primeira vez que li seu conto, não entendi muito bem. Mas, em determinado momento, quando o acaso fez com que suas palavras retornassem a mim outra vez, não pude deixar de me lembrar do consultório, quando, ouvindo as palavras de meus clientes, e atento aos meus próprios e parvos pensamentos, elucubrações técnicas e preocupações, vi refletida o significado dos fantasmas; cada palavra e pensamento carregava consigo uma contação de história, uma narrativa decrépita, que já não fazia mais sentido, ou, às vezes, nunca o fez; eram apenas espectros carentes por atenção.

Raramente pessoas reais emitem palavras no setting terapêutico. Quando isso acontece, é algo digno de nota, e um sinal de progresso clínico. Na maioria das vezes, apresentam-se os espectros em sua dança. O psiquiatra Fritz Perls identificou esta problemática, dizendo que as pessoas têm dificuldade de fazer contato com o seu ambiente, de estarem plenamente atualizadas no aqui-e-agora de sua experiência, por isso, contam histórias. O papel do psicoterapeuta seria o de auxiliá-las no processo de tomar consciência deste fato, de como interrompem seu próprio contato, e encontrar caminhos junto a eles para retomá-lo. É claro, isto se o psicoterapeuta em si também estiver em contato, e não perdido na dança dos fantasmas.

Curiosamente, os fantasmas, na apresentação teatral que fazem na clínica, vez ou outra se diluem, quase que independentemente e como bolhas de sabão, em clareza e discernimento. Não é à toa que um dos sentimentos mais comuns, e frustrantes, do terapeuta iniciante, é que ele não fez nada; o paciente se encontrou sozinho. O que acontece, acredito, na maioria desses casos, é que o paciente conseguiu, do contexto terapêutico, a dose de acolhimento e elaboração necessárias para reconhecer seus fantasmas e progredir. Na base disso tudo, está a escuta profunda, interessada e compassiva.

Lembro-me que durante minha adolescência, quando estava começando a conhecer os ensinamentos de Buddha e da plena atenção, decidi, como uma criança com um brinquedo novo, praticar a escuta profunda. Enquanto ouvia uma colega de um curso que fazia na época, sentia meu corpo e observava minha respiração. Era uma conversa corriqueira e comum, com uma pessoa com quem não tinha quase nenhuma intimidade. De repente, essa moça começou a contar-me de seus problemas fundamentais, de seus medos, inseguranças e sofrimentos. E, para a minha surpresa, começou a chorar. Depois, quando estava mais calma, me agradeceu e me abraçou. Disse que estava se sentindo muito sozinha e que, por algum motivo, sentiu que podia falar comigo. Sentia que eu realmente a ouvia, e que a tinha feito se sentir muito melhor.

Hoje em dia, agora com esta prática ligeiramente mais amadurecida, recebi uma paciente nova. A sessão foi longa e emocionante, e, no final, ela me contou que pela primeira vez gostou da terapia. Que, em outras várias ocasiões, tentou fazer terapia mas saia frustrada, com raiva da terapeuta, que lhe perguntava em vão o que desejava ou planejava fazer com suas questões, ou lhe oferecia ferramentas que não faziam sentido. Daquela vez, na minha sessão, ela sentia como se tivesse conseguido, por si só, entender melhor seus próprios problemas, e que havia sido acolhida de forma humana. Nada disso é mérito meu: são apenas os corolários da escuta.

No entanto, não estou dizendo que apenas o ato de escutar em plena consciência é suficiente para tratar graves e sérios transtornos de saúde mental, ou, até mesmo, os mais brandos. Há, sim, um caminho amplamente definido entre saber teórico e práxis. Mas, quantas vezes, durante meu próprio processo terapêutico ou durante o zazen, não fui salvo pela dissolução de minhas fantasmagóricas aflições através do simples ato de testemunhá-las? Kômyô Sensei costuma advertir os praticantes que, para solucionar problemas do âmbito emocional, a terapia é mais eficaz que o zazen; idealmente, faz-se os dois. Porque a terapia é mais eficaz? Acredito que seja porque há mais de uma pessoa praticando o ato de testemunhar.

Quando digo de presentear os outros e a nós mesmos, digo disto: deixar que a escuta nutra os espíritos famintos com seu néctar, para que, momentaneamente saciados com o verdadeiro alimento, possam encontrar o correto discernimento. Podemos fazer isso com os espíritos famintos dentro de nós, como com aqueles nas pessoas que amamos (ou quiçá, odiamos ou mal conhecemos). A escuta profunda, aliada a plena consciência, é a psicologia existencial prática que pode e deve ser praticada por todos nós. Quando ouvimos sem julgar ao outro, apenas notando o tom de suas palavras, como elas o tocam e nos tocam, sem considerar por um momento o peso de suas argumentações, apenas ouvindo, naquele instante, a pessoa é presenteada com a testemunha de um outro.

Aqueles que consideram as três marcas da existência sem dúvida estão em posição privilegiada para entender a significância deste ato; afinal, quando duas pessoas estão entrelaçadas na prática da escuta profunda, mesmo que uma apenas fale e não ouça, a interdependência se põe de uma maneira a deixar claro: não há nenhuma substância sólida e individual que vá dizer da separação entre as duas. Em última instância, não há falante e ouvinte. Martin Buber, filósofo do diálogo e fundador emérito da psicoterapia dialógica, formulou a relação Eu-Tu para exprimir essa realidade. Interessantemente, Buber era um judeu hassidista, mas suas considerações não caem longe do Dharma. A relação Eu-Tu é esta onde há um contato direto e honesto entre duas manifestações existenciais.

Porém, como Buber vai explicar, e a experiência prática há de demonstrar, não adianta apenas uma pessoa estar aberta à uma relação Eu-Tu, e muito menos ela pode ser forçada. Acontecerá, como ele diz, em momentos de graça; lapsos nas máscaras e couraças dos homens que permitem que se vejam e se falem verdadeiramente, de vez em quando. Não cabe aqui me expandir na compreensão teórica de Buber, mas talvez seja digno dizer que o Quarto Treinamento da Atenção Plena, como postulado por Thay: a prática da escuta profunda e da fala compassiva, é um ótimo adendo à sua psicoterapia dialógica, e um grande provedor das causas e condições para que a graça se instale.

Para Thay, a escuta profunda e compassiva é a chave para a recuperação do contato, da comunicação efetiva, entre pessoas, e entre nós mesmos. Thay pede que sejamos como Avalokiteśvara. Quando respiramos, testemunhamos e ouvimos o sofrimento de uma pessoa perto de nós, um grande alívio já se instala. Não é difícil testar isso na prática. Basta apenas uma tentativa honesta. E a escuta profunda nutre ambos: não só o falante, mas também o ouvinte, saem desta relação restabelecidos em energia de consciência.  Às vezes, precisamos de um outro para isso. Outras vezes, podemos testemunhar e ouvir nosso próprio sofrimento, e também desta prática sairmos embebidos de plena atenção. Isto, como relata Thay, às vezes é suficiente para retornar um sorriso para um rosto antes entristecido.

Mas como isso se dá? O que está envolto neste processo que o faz ser assim? Uma compreensão psicológica fundamental é a da catarse, o alívio advindo da expressão. Mas não é apenas nisso. A questão vai para além de um alívio momentâneo de problemas sistêmicos e perseverantes. A catarse é apenas uma parte do fenômeno da autoregulação organísmica, o princípio que diz que, dado o suporte ambiental adequado, o organismo tem em si a capacidade de restaurar-se. Muitas vezes, a escuta é justamente este suporte ambiental. Com a nutrição adequada, o organismo se atualiza.

Claro, em um contexto de psicoterapia, a situação há de se servir não apenas do conhecimento teórico, experiencial e psicopatológico do profissional, mas também da aplicação de meios hábeis para desvendar os impasses que dificultam está autorregulação. As técnicas e caminhos são muitos. Como, por exemplo, a própria tomada de consciência das interrupções de contato, as formas engessadas que perpetuamos em nossas ações e posicionamentos perante à vida, e a senda de transformação que este dar-se conta implica, fazendo com que a pessoa descubra novas formas de agir e procurar em seu ambiente o suporte necessário para sua atualização. Mas tudo se resume a, como diz o psicólogo e zen budista Marc Joslyn, “natura sanat, non medicus”. A natureza cura, não o médico. E tudo começa e continua na escuta. Primeiro, ela oferece o suporte no contexto terapêutico, e, através da relação que se cria este contexto, o paciente pode encontrar meios de estabelecer este suporte fora dele. Ele pode, inclusive, aprender a ouvir-se, e cultivar em si as sementes da escuta profunda e compassiva.

Para além da psicoterapia, o peso dessas considerações para o praticante budista é claro e direto: ouça, e deixe que a liberdade fundamental que esse ato emancipatório pode lhe trazer apareça por graça, em seu próprio tempo. Mas ouça. Permita que o seu budismo sirva de algo, sirva de nutrição para o Outro. Quando ouvimos, damos suporte para que o mundo se cure.  Para isso, precisamos também nos ouvir: a prática da meditação silenciosa é ao mesmo tempo uma prática de auto-observação e autorregulação.

Para mim, psicoterapeuta, e para os outros irmãos que se inclinam para este tipo de serviço: pratiquem a escuta não como um adendo, como um apêndice, como algo dado, mas sim como uma habilidade que deve ser treinada e afinada, praticada a cada angustiante instante de nossa atividade profissional. Escute com sua respiração, com sua pele, e deixe que os sons que ouve toquem até seus ossos. Até quando não há potencial para autorregulação; quando a doença se impõe como realidade da vida, e a morte se aproxima, escutar e testemunhar ainda é o que podemos fazer de fundamental, e o maior presente que podemos oferecer a nossos pacientes.

Como diz Thich Nhat Hanh, quando escutamos profundamente as Quatro Nobre Verdades estão sendo realizadas. Talvez sejamos lembrados disso na próxima vez que ouvirmos o som da chuva, ou do riacho do vale, em um momento de graça. A profunda arte de escutar é elusiva e difícil, como qualquer arte, mas digna de ser praticada.

 

Para finalizar, gostaria de recitar o verso de dez frases de Kannon:

 

Enmei Jukku Kannon Gyo

 

KAN ZE ON

NA MU BUTSU

YO BUTSU U IN

YO BUTSU U EN

BUP PO SO EN

JO RAKU GA JO

CHO NEN KAN ZE ON

BO NEN KAN ZE ON

NEN NEN JU SHIN KI

NEN NEN FU RI SHIN

 

Avalokiteshvara, Percebedor dos Gritos do Mundo

Toma refúgio em Buda

Será um Buda

Ajuda todos a se tornarem Budas

Não está separado de Buda, Dharma e Sangha

Ser eterno, íntimo, puro e alegre

Pela manhã, ser um com Avalokiteshvara

À noite, seja um com Avalokiteshvara

Cujo coração, momento a momento, surge

Cujo coração, momento a momento, permanece

 

Texto de Matheus Anshin. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

REFERÊNCIAS

https://www.daissen.org.br/kannon-bosatsu/

https://en.wikipedia.org/wiki/Guanyin

https://upaya.org/uploads/pdfs/EnmeiJukkuKannonGyo.pdf

Wikimedia

Martin Buber, Eu e Tu, 1984

Fritz Perls, Gestalt Therapy Verbatim, 1992

Marc Joslyn, The Last Time i Saw Fritz, 2002

A Essência dos Ensinamentos de Buddha, Thich Nhat Hanh, 2019

 

 

 

 

 

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