Entrevista com Monge Gustavo Mokusen

 

 

Gustavo Mokusen é Monge Zen Budista e coordena o Centro Zen Flor de Lótus. Possui ampla formação acadêmica, que inclui as ciências militares, pesquisas científicas de ponta e o desenvolvimento artístico e humano.

Iniciou o treinamento formal da escola Zen Budista em 1999. Participou de inúmeros retiros, grupos de prática e seminários. Praticou intensivamente a meditação zen em mosteiros no Brasil e Alemanha. Em 2004 foi convidado para realizar um treinamento no Templo Tenryuji, no Japão, e lá recebeu a ordenação como Monge Zen do superior do Templo, Abade Sassagawa Kosen Roshi, sob a orientação direta do mestre Mokugen Roshi, superior do Templo Zen das Alterosas. Recebeu também o nome monástico “Mokusen”, que significa em japonês “aquele que realizou o silêncio”.

Retornando ao Brasil foi membro fundador da Associação Cultural Oriente Ocidente (www.zen.org.br), da qual é o atual Vice Presidente. Atuou diretamente nos trabalhos de fundação do primeiro templo zen de Belo Horizonte, o Templo Zen das Alterosas, onde hoje participa como monge colaborador. Em 2017 realizou a cerimônia de Combate do Dharma (Hossenshiki) no Mosteiro Zen de Ibiraçu/ES, perante o seu mestre Mokugen Roshi, o Abade Daiju Roshi, e uma comitiva de 12 monges japoneses, tornando-se assim o primeiro “Shuso” (monge líder) na história daquele mosteiro.

Confira a seguir a entrevista completa!

 

Como que você se encaminhou, como que você foi atraído pela questão do Budismo?

Monge Gustavo Mokusen: Em primeiro lugar eu queria agradecer a oportunidade de estar aqui compartilhando um pouco da minha experiência e da minha perspectiva sobre essa prática do Zen-Budismo. A minha história com o Budismo se desenrolou de uma forma muito natural, digamos assim.

Lembro-me de que na minha adolescência, talvez lá pelos meus 15, 16 anos, olhando os livros num dos quartos da casa onde eu nasci e cresci, eu encontrei um exemplar de um livro cujo título é A Doutrina de Buda. E é um livrinho muito famoso, que foi muito difundido, tendo sido editado e compilado por uma associação japonesa que se chama “Bukkyo Dendo Kyokai. E essa associação reuniu vários professores, vários mestres do Budismo de várias escolas. E nessa compilação, a história do Budismo, a história do Buda.

Eu achei esse livrinho nesse quarto da minha casa e ali eu travei o meu primeiro contato. Naquele momento eu senti certa familiaridade, mas, claro não tinha nenhum conhecimento ainda, então para mim era um mistério. E essa semente acho que ficou um pouco meio que plantada em mim: essas conexões com as ideias da cultura oriental ficaram marcadas. Ou talvez eu também eu já tinha uma certa tendência, de modo que foi muito natural esse contato.

Bom, isso foi a primeira lembrança que eu tive. Nos anos que se seguiram, fui estudar em internato militar, na Academia Militar das Agulhas Negras. Fiquei lá quatro anos e depois decidi não seguir mais a carreira militar. Quando eu saí e voltei a Belo Horizonte, comecei a procurar com mais ênfase um caminho espiritual para que eu pudesse seguir. Eu cresci em meio a uma liberdade religiosa muito grande, os meus pais nunca me impuseram nenhum tipo de prática religiosa específica, então eu tive também essa sorte.

Sua família tem alguma religião?

Monge Gustavo Mokusen: Meus pais frequentavam um local, um grupo que se dedicava a práticas que talvez hoje ficariam bem enquadradas no espiritismo, na doutrina espírita. Lembro-me que esse grupo se chamava Racionalismo Cristão, mas enfim, hoje eu entendo que seria um grupo de prática ligado à linha espírita.

Então, eles praticavam, frequentavam esse grupo. Às vezes eu os acompanhava, mas nunca houve uma imposição, principalmente após a minha adolescência e após minha fase adulta inicial. Então eu cresci em meio a essa liberdade. Eu acho que isso também facilitou. Bom, o fato é então que eu voltei do internato e lá pelos meus 20 e poucos anos eu comecei a procurar um caminho de prática.

E nessa época eu frequentei praticamente todas as salas de meditação que existiam em Belo Horizonte. Fui a retiros, fiz parte de certos grupos, ingressei, por exemplo, no Rosacruz que foi um grupo no qual fiz parte por vários anos, talvez uns seis ou sete anos. Depois eu fiz parte também de um outro grupo que se intitula “O Quarto Caminho”, do pensador russo George Ivanovich Gurdjieff (1866 – 1949). Tudo isso buscando um caminho que eu me sentisse bem, que eu me encontrasse.

Nos grupos dessas escolas se falava em Budismo, se estudava um pouco da meditação budista, mas não como foco principal. Como, digamos assim, um instrumento que pudesse levar à realização espiritual.

Até que por volta de 1997 eu entrei em contato diretamente com a meditação budista e ali então eu comecei uma prática, a princípio bem tímida, bem assim de iniciante mesmo, que eu acho que é como todo mundo começa. E aos poucos fui entendendo, fui me aprofundando, até que em 1999, eu creio, comecei realmente a me dedicar ao Zen-Budismo, à prática do zazen, ainda que de forma meio solitária.

Naquela época havia em Belo Horizonte praticamente três grupos que eu comecei a frequentar logo após esse período. Havia o grupo de prática do monge Napoleão Ryokei, que até hoje existe no bairro Santa Tereza; havia a sala de meditação da monja Simone Keisen; e havia também o praticante Paulo de Tarso Amorim, Dr. Paulo, Emyô san, que foi ordenado leigo pela monja Coen e naquela época tinha uma sala em Belo Horizonte.

Então, nesse período de 1999 a 2000, eu frequentei essas salas de meditação, aprofundando um pouco, até que em 2001 eu me encontro com o Mokugen Roshi que havia recém-chegado do Japão. Ele foi para o Japão em 1992 e no final de 2001, em outubro, retornou pela primeira vez ao Brasil para fazer uma visita.

E eu lembro que uma amiga, uma colega minha de trabalho (nessa época eu dava aula de Física), que era amiga de infância dele e que me comentou, falou assim: “Ah! Um grande amigo meu está chegando do Japão, ele é monge e está vindo aqui para o Brasil”. E eu falei assim: “Ora, eu gostaria de conhecê-lo”. Então ela me deu o telefone dele, eu entrei em contato, e nós marcamos de nos encontrar exatamente na sala de meditação do monge Napoleão Ryokei.

E um fato curioso que aconteceu nesse dia: nós estamos falando de outubro de 2001, quando eu saí do trabalho e me dirigi a essa sala, e no caminho passei por uma barbearia. Nessa época eu ainda usava cabelo e, intuitivamente, eu pensei assim: vou raspar a cabeça! E eu parei antes de me dirigir ao zazen, raspei a cabeça e quando eu fui chegando lá no endereço da sala de meditação, eu lembro que ao chegar, por coincidência, Mokugen Roshi estava também chegando, estava no portão ali, meio que entrando. E aí eu vi, eu intuí que talvez fosse ele, pelo corte, pela cabeça raspada, pelas vestes, e aí eu me apresentei: Eu sou o Gustavo! E aí eu lembro que ele olhou para mim e falou assim: “Uai, você já raspou a cabeça? Agora só falta ordenar?” (risos).

Essa foi a primeira troca de palavras entre a gente. Eu achei muito significativo que tenha sido assim! E dali a gente fez a meditação, a gente conversou, e ele me perguntou: “Então você quer realmente praticar a meditação de forma séria, aprofundar o treinamento?” E eu respondi: sim! E aí, a partir dali eu comecei então a acompanhá-lo (ele ficaria por mais uns quatro ou cinco meses no Brasil). Ele fundou em Belo Horizonte uns dois grupos de meditação, de pessoas que o convidaram para fazer uma meditação, e aí o grupo foi ficando, foi ficando semanalmente, e acabou que o grupo foi fundado, ali no Vale do Sereno, no antigo Instituto Lam Rim, da Eneida Caetano.

Nessa época também aconteceu algo muito simbólico: ele me deu um rakusu para eu usar no primeiro retiro que participamos juntos, no Templo To Getsu da Monja Simone Keisen. Na época eu nem sabia muito bem do que significava, mas aí ele me explicou, ele me falou… eu lembro bem da cena. Ele estava acompanhado de um amigo monge que veio do Japão com ele, o Sougen san, e ao me entregar o rakusu eu perguntei: “Poxa, mas o que significa usar isso?” Eu estava muito cru ainda, eu não sabia muito sobre o Zen. E ele com muita humildade (que é típica da genialidade dele, que eu acho que é uma característica louvável essa simplicidade genial que ele tem, como pessoa, como professor), então ele sabia claramente o que significava o rakusu, mas ele fez questão de perguntar a esse monge, em japonês, o meu questionamento, e depois ainda me falou assim: “O monge estava explicando que um rakusu é uma cópia do manto de Buda, um símbolo de uma prática mais comprometida”. Então eu achei tudo muito significativo! Mas, enfim, aí começamos a praticar e logo após alguns meses ele retorna ao Japão.

E ao retornar ao Japão, ele pede para que eu fique acompanhando esses grupos de prática que ele tinha criado aqui em Belo Horizonte. E aí eu fiquei um pouco assustado porque, imagine, eu não tinha muita experiência, né? Aí ele me tranquilizou falando assim: “Faz assim, você pega o livro Mente Zen, Mente de Principiante do Suzuki, vai lá, lê para o pessoal um trecho, faz a meditação, e tá tudo certo: ajude as pessoas”. E foi assim que aconteceu a minha entrada na prática do caminho, no Zen-Budismo.

Então veja que foi algo muito natural, foi uma entrada muito suave, no sentido de que não houve nenhum tipo de artificialismo, de “forçação” de barra. Em japonês existe um ideograma, que é o ideograma EN, que significa exatamente encontro.  Então eu acho que as pessoas que têm esse EN, esse encontro com o caminho, eu creio que elas tenham histórias talvez semelhantes.

 

Uma coisa é você entrar no caminho do Zen-Budismo praticando; outra coisa é você optar por um treinamento budista e principalmente pela questão de ser monge. Quando que isso aconteceu na sua vida?

 

Monge Gustavo Mokusen: Pois é, eu acho que essa questão da minha ordenação monástica seguiu a mesma linha da naturalidade que eu contei agora há pouco: foi tudo muito natural. Na verdade, eu nunca me imaginei assim sendo ordenado, eu nem tinha essa pretensão no início. Tudo que eu queria, que eu estava buscando, era realmente viver a experiência de uma prática espiritual que me alimentasse. Esse foi sempre o meu grande foco, meu objetivo: encontrar numa prática em que eu me sentisse confortável, aliviado e em desenvolvimento, sentindo-me crescendo, digamos assim.

Eu venho de uma formação muito acadêmica, nessa época eu exercia a Física; eu sou físico de formação. Então, é um mundo com muita carga racional, muita carga mental, né? E, acho que até intuitivamente, eu buscava um caminho para aliviar essa carga, que foi o que o Zen me deu: o silêncio do zazen, esse mergulho na vivência do instante presente me deu todo esse alívio, toda essa liberação desse excesso, do peso, da cabeça, da razão. Bom, mas o que eu buscava era isso e, naturalmente, esse grande encontro que eu tive com Mokugen Roshi, foi um encontro maravilhoso, por que eu entrei em contato diretamente com um transmissor do caminho.

Na minha perspectiva, o Mokugen Roshi representa a transmissão viva do Dharma: ele foi ao Japão, morou lá num total de 22 anos e retornou ao Brasil trazendo a pura transmissão, o puro caminho do Dharma. E eu tive muita sorte de ter tido esse contato inicial com ele. Nós nos encontramos em 2001, praticamos juntos por alguns meses, e depois ele retornou ao Japão em 2002. Então, de 2002 para frente eu comecei a praticar com muito mais seriedade, eu estudei muito o Zen, todo o material, toda a bibliografia do Zen que existia em português eu li, eu estudei, tentando realmente criar minhas raízes.

Foi uma fase muito profícua, eu tive muitos insights, pude vivenciar muita coisa legal… Por exemplo, eu fiz todos os retiros no Mosteiro Pico de Raios, que na época estava sob a direção da monja Mariângela Ryosen, a quem eu também sou muito grato porque me ensinou muita coisa. Então foram vários retiros: Carnaval, Semana Santa, Corpus Christi, todos os feriados eu estava lá praticando, aqui do lado de Belo Horizonte, um mosteiro lindíssimo, na época muito bem conduzido pela Mariângela Ryosen, que ficou 10 anos lá. Mas enfim, eu soube aproveitar essa grande sorte que eu tive, esse grande presente que eu tive de ter encontrado com Mokugen Roshi .

E, depois de dois anos, em 2004, no começo do ano ele me telefona do Japão dizendo que havia surgido uma oportunidade muito especial, em um mosteiro internacional, o Mosteiro que fica no mesmo distrito de Eiheiji, em Fukui: um mosteiro tão severo, tão correto quanto Eiheiji, no sentido de praticar-se lá o Dharma puro.

Lembro claramente quando eu cheguei lá das palavras do abade Sassagawa Kosen Roshi, falando “aqui se pratica o Dharma correto”. Mas enfim, ele me disse que havia a oportunidade de ir para esse mosteiro fazer um treinamento rápido lá, de um ou dois meses, e após então receber a ordenação monástica. E eu, na época, nem tinha a pretensão, né? E isso me pegou de surpresa, e eu lembro que eu perguntei: “Mas e aí? E e depois o que que vai acontecer, eu tenho que ficar lá no Japão? Eu vou ter que morar no mosteiro?”

E ele me falou tranquilamente: “Não, você vai, faz o seu treinamento e depois você volta para a sua vida normal” (e foi o que aconteceu). Então, foi dessa maneira que se deu a minha ordenação como monge Zen. Foi, realmente, um grato presente; eu sou enormemente grato a essa porta que Mokugen Roshi abriu, me convidando a entrar, porque foi por meio dessa entrada, que eu pude realizar o caminho que me era possível, que me era acessível. Então, foi algo muito precioso, um encontro que realmente mudou a minha vida; sou muito grato a ele e reconheço a grandiosidade do treinamento que ele me permitiu viver.

Então foi assim, em 2004 fui para o Templo Tenryuji e ali eu costurei o meu okesa, o manto. Costurei com o molde tradicional (uma prática formidável) e logo após então, houve um retiro, um sesshin de sete dias e a minha ordenação. Isso foi em 2004, e logo após eu retornei ao Brasil e Mokugen Roshi ficou no Japão.

E a partir daí nós vamos então iniciar um trabalho conjunto: ele no Japão arrecadando fundos com Takuhatsu, construindo as condições para que o primeiro templo Zen de Belo Horizonte pudesse ser fundado, e eu aqui cuidando da parte administrativa. Nós criamos em Belo Horizonte uma Associação Cultural, uma pessoa jurídica para dar suporte administrativo ao templo. Criamos também a Sangha, a própria comunidade, que nasceu lá naqueles grupos que ele tinha formado em 2001. Nós continuamos a prática, fomos levando e esse processo que então durou até 2012, quando MoKugen Roshi retornou do Japão. Aí ele comprou um imóvel no bairro da Serra, onde tornou-se a sede do Templo Zen das Alterosas, fruto então desse trabalho, principalmente dele, de angariar fundos no Japão e enviar todo o material.

Eu lembro que ele ia enviando os materiais, as imagens de Buda, tudo por navio e eu recebendo aqui, no Brasil, as cargas, enfim, as coisas… Ele ia trazendo aos poucos e foi isso que aconteceu. Em 2012 então ele retorna definitivamente ao Brasil e o Templo Zen das Alterosas surge, sendo inaugurado em 2013, que é onde ele reside atualmente. Então, foi assim, mais ou menos, que se deu a minha trajetória.

 

Foi até bom você falar, porque também tem uma história sobre o seu Combate do Dharma. Soube que o Mokugen pediu para o Abade Daiju do Mosteiro Zen Morro da Vargem que você fizesse o Combate do Dharma, porque na época eu já era ordenado e o Daiju tinha uma relação com alguém lá, Doshin, na época ele estava lá. E esse Dosshin era provavelmente encaminhado para ser o sucessor do Daiju, mas o que eu soube é que o Mokugen pediu que você fizesse, porque a data era muito especial porque viria uma comitiva enorme de monges japoneses e só daria para fazer um Combate do Dharma.  Então, como é que foi isso também para você e como é que você foi para lá? Porque é um outro passo também, né?

 

Ah sim, realmente esse é um momento também especial. O meu Combate do Dharma foi feito lá no Mosteiro de Zenkoji, no Espírito Santo, em Ibiraçu, aos cuidados do abade Daiju Roshi. Mas antes eu quero contar uma história, que também é muito significativa: lá atrás, naquele período em Belo Horizonte, quando eu tinha retornado do internato militar e estava buscando um caminho para percorrer, um caminho espiritual, lá por volta do ano de 1998, eu estava no Espírito Santo a passeio e alguém me falou assim: “Ah, aqui tem um mosteiro Zen, tem um mosteiro muito bonito”. Eu nem sabia que existia na época? E nesse ano então, de 98, nesse momento que alguém me falou isso, eu resolvi visitar. Fiquei sabendo que aos domingos era o dia de visita e, então, peguei o carro e fui pra lá.

Nessa época não tinha nenhuma cancela na entrada, você ia subindo a rodovia, aquela estradinha, até o mosteiro mesmo, sem nenhum tipo de parada. Enfim, eu fui entrando, fui subindo com o carro, fui subindo, subindo, naquela época também quase não havia visitação, eram pouquíssimas pessoas visitando o mosteiro, não era tão falado assim. E cheguei lá em cima, nas construções, parei o carro e, por alguma razão que eu desconheço, eu não vi ninguém, só vi um praticante, ou um monge chegando de moto, mas parou a moto e também não me deu muita bola, nem conversou comigo, parou a moto e saiu assim.

E eu fui entrando, fui andando, fui percorrendo, fui olhando, de forma livre, eu fui entrando no mosteiro assim, e passei no Hatô, que é a sala de cerimônias, passei no Zazendô, na sala de meditação, entrei, sentei um pouquinho em meditação, e fui assim, fui entrando livremente. Aí, não encontrei ninguém, não vi ninguém e visitei o mosteiro por minha conta.

Lembro que eu achei aquilo muito especial. Sabe quando você tem uma sensação de ser bem-vindo, de estar em casa? Foi essa a minha sensação, até mesmo porque andei de forma livre pelo mosteiro. Eu entrei e saí sem nenhum impedimento. Isso foi muito significativo para mim e eu só iria entender isso quase 20 anos depois, porque mal sabia eu, que em 2017, 19 anos depois, eu retornaria a esse mosteiro, mas aí já como monge, para fazer o Combate do Dharma, então, como Shusô dessa cerimônia. Shusô é o nome que se dá ao monge que faz o Combate do Dharma.

Então, isso aconteceu em 2017, que coincidentemente foi um ano muito difícil, muito desafiador para mim, porque meu pai faleceu em fevereiro e dois meses após minha mãe também faleceu… então foi um ano muito forte, né? Meu pai faleceu com 90 anos, mamãe com 84 e eu participei com muita proximidade desse processo dos dois, de internação em hospitais, enfim daquele processo normal, digamos assim, da velhice. Mas isso mexe muito com a gente. Então, foi um ano que foi muito forte nesse sentido para mim, muito significativo.

E, quando mamãe faleceu em abril de 2017, eu estava bem cansado, bem extenuado. Fui fazer uma viagem, que eu já tinha marcado inclusive, antes mesmo de mamãe ficar acamada. Uma viagem para fazer caminhada, que eu sempre gostei muito. Era na Guatemala, lá então, eu lembro claramente, sete dias após o falecimento da minha mãe, o dia 17 de abril de 2017, Mokugen Roshi estava no Japão nessa época e ele me passa uma mensagem de lá dizendo sobre a possibilidade de fazer o Combate do Dharma, o Hossen shiki, junto com a cerimônia do Daiju Roshi de Shinsan shiki, que ia acontecer, como aconteceu, em setembro de 2017, e tudo isso estava ocorrendo em abril.

E quando ele me convidou, ele falou que era possível e tal, e me perguntou assim: “E aí, você vai topar o desafio?” E eu falei assim, pensando comigo: Bem, já está sendo um ano de tantas mudanças, de tantas marcas fortes na minha vida, né? Então vamos embora! Vamos aceitar o desafio. Ele me convidou, ele falou que havia alguns nomes que estavam cogitando… me falou que eles escolheriam um Shusô, que havia alguns nomes, e me perguntou se eu estaria disposto a entrar também na relação dos indicados. Eu falei: “sim, tudo bem, caso eu possa fazer o Hossen shiki, seria ótimo, maravilhoso”.

Então foi assim, mais uma vez eu creio que foi uma porta também que meu professor, meu mestre, Mokugen Roshi abriu de forma muito significativa, dado o momento que eu estava vivendo e também dada a circunstância da cerimônia, que foi uma grande cerimônia, poder participar lá em ZenKoji, no Mosteiro de Ibiraçu, no Morro da Vargem, de uma cerimônia tão simbólica, tão significativa.

Eu acho que nunca havia ocorrido ali a cerimônia de Combate do Dharma e foi uma honra muito grande para mim poder ocupar esse cargo de Shuso. Eu já tinha participado de dois ou três Combates do Dharma antes disso: um deles foi até do Denshô Quintero Roshi, lá em Bushinji, em 2007, acho, 2007 ou 2008, que ele fez o Hossen shiki dele, e eu tive também a sorte de estar lá fazendo o sesshin, que era um Rohatsu Sesshin com ele e participando do Combate do Dharma dele.

E outro também muito significativo que eu participei foi do monge Napoleão Ryokei, acho que 2009 alguma coisa assim, 2010. Mas, então, havia chegado o meu momento, né? E foi confirmado então o meu nome. Então a partir de abril/maio de 2017 eu comecei a me preparar para a cerimônia que aconteceu em setembro de 2017 e que foi muito significativa, muito forte, muito intensa, muito autêntica. De fato, veio uma comitiva do Japão, acho que vieram 12 monges, muito atenciosos, muito generosos. Então, assim foi uma experiência muito maravilhosa, que eu pude participar e que com certeza me marcou muito.

 

Também tem um local e uma ocasião muito especial que é o Centro Zen Flor de Lótus. Como que foi isso para você? Como que se originou a oportunidade, ou um determinado objetivo, em termos do Centro Zen Flor de Lótus?

 

Monge Gustavo Mokusen: Pois é, a história do Centro Zen Flor de Lótus, aqui em Lagoa Santa, também surge de uma forma bem natural. A história do Centro Zen surge como uma continuidade do próprio desenrolar do que aconteceu. Então em 2012, 2013, Mokugen Roshi volta do Japão, o Templo Zen das Alterosas em Belo Horizonte é fundado e ali então Mokugen Roshi vai residir no templo. Eu continuo ajudando como monge colaborador da associação, do templo.

Em 2012, eu me mudei de Belo Horizonte para Lagoa Santa, que é uma cidadezinha aqui do lado de Belo Horizonte, fica 30 minutos, mas bem mais calma, bem mais verde, bem mais tranquila. Minha filhinha na época estava com um ano e seis meses e eu pensei em morar num lugar mais aberto, mais amplo com ela e com a mãe dela, na época minha esposa. Hoje somos grandes amigos, mas na época estávamos casados e vim para cá, em 2012.

E quando chegou ali por volta de 2014, 2015, eu comecei a imaginar que talvez também seria possível aqui em Lagoa Santa dar continuidade a um trabalho com pessoas, com a comunidade local, na prática do Zen. Belo Horizonte já estava então com um templo bem fundamentado, bem instalado, e eu pensei: Poxa, então quem sabe? E foi assim que surgiu o Centro Zen Flor de Lótus, com muita naturalidade. E em 2015 então, em fevereiro, ele foi inaugurado. Já são aí oito anos de Centro Zen Flor de Lótus.

E qual seria a proposta principal do Centro Zen, qual é a marca do Centro Zen? É a característica de procurar traduzir essa prática milenar, até um pouco austera do Zen, da cultura japonesa, procurar traduzir um pouco disso para as pessoas que talvez nunca teriam contato, nunca teriam buscado essa prática, por ser distinta da realidade brasileira.

Então aqui em Lagoa Santa, uma cidade pequena, predominantemente católica, uma cidade do interior, a minha proposta sempre foi traduzir essa prática vívida de uma forma que as pessoas, que a dona Maria da esquina, que o seu José ali da esquina pudesse também praticar sem nenhuma barreira, né?

E qual é o desafio? É que ao mesmo tempo essa prática tem que se manter original, pura. A prática do Zen não pode sofrer uma deturpação, sofrer digamos assim uma deformação a ponto de que ela vai perder a sua principal característica, a sua principal pegada. Então o cuidado aqui, a ideia do Centro Zen sempre foi essa: manter a prática do Zen o mais fiel possível à sua essência, como prática de autoconhecimento, de sentar e mergulhar em si mesmo, de shikantaza mesmo, mas ao mesmo tempo tornada acessível.

Como eu fui professor muitos anos, sempre acreditei na didática?. Então aqui eu sempre procurei realmente percorrer o bê-á-bá da prática por meio de estudos de texto, por meio de palestras, por meio de retiros didáticos, ou seja, retiros adaptados nos quais a carga de meditação, a carga da prática foi ajustada para a realidade de pessoas que muitas vezes não conseguiam nem sentar no chão direito.

Enfim, então sempre houve essa preocupação aqui, essa pegada do Centro Zen como um local de prática do Zen acessível às pessoas que muitas vezes nem optariam pela religião budista. Então essa foi a ideia do Centro Zen, e já estamos aí com oito anos de existência: temos aqui um grupo já consolidado de praticantes e acredito que as práticas que têm ocorrido aqui têm de certa forma atendido a essa proposta, pelo que eu ouço das pessoas, pelos depoimentos que nós temos. Aliás, quem quiser conhecer o Centro Zen basta ir na nossa página na internet que é www.centrozenflordelotus.org e lá há um vídeo do Centro Zen que as pessoas dão depoimentos. Então acredito que o principal propósito, que é manter a chama da prática acesa, tem sido alcançado.

 

Para fechar a nossa entrevista, Monge Gustavo Mokugen-, o que você diria e como que você recebe uma pessoa que está iniciando a prática do zazen?

 

Monge Gustavo Mokusen: Eu recebo os praticantes aqui no Centro Zen com muita alegria, com muito entusiasmo de verdade, de coração, porque sempre que uma pessoa está buscando o Zen, está buscando essa prática de meditação. E chegar aqui, para mim é um recado do universo, é um recado da vida dizendo que a chama continua acesa, a roda do Dharma está girando e esse é o caminho.

Então, é com muita alegria que eu recebo esses praticantes.

E, o que eu poderia dizer para eles? Perseverem, porque essa prática é uma prática belíssima, uma prática muito profunda, um caminho muito digno, mas não é fácil. Nós vivemos em um momento, em um mundo muito apelativo, em um mundo muito fragmentado, apoiado talvez em algumas crenças e comportamentos que não dizem respeito ao nosso caminho de prática?. E isso há de ser considerado, então nós vivemos num mundo muito agressivo e, ao mesmo tempo, sedutor, repleto de samsara, de normose, para que nós enfraqueçamos a prática e nós não devemos fazer isso.

Então, o que eu diria para quem está começando? Que é bom saber que vivemos em um mundo assim, muito competente para nos seduzir, mas que é preciso realizar esforços sucessivos nessa prática para que possamos penetrar e aprofundar nosso autoconhecimento real, essa coisa real da atenção plena, da presença, da intenção de prática, da mudança de perspectiva de comportamento a partir de uma transformação real interna. Isso é muito possível. Isso está ao alcance de todo mundo, realmente está, não é privilégio de quem é monge, ou de quem veste roupas especiais, não, não é. Isso é a natureza humana intrínseca e está dentro de cada um de nós, nossa natureza livre e desimpedida da mente que percebe, que vê a própria mente.

Mas, como eu disse, para realizar essa verdadeira natureza, é preciso realizar esforços sucessivos, porque, por tudo isso, vivemos uma época que, digamos assim, não é muito favorável a essa introspecção, além de também termos todas as nossas questões pessoais para resolver. Mas enfim, a despeito de tudo isso eu diria para perseverar na prática porque os resultados, as experiências que podem surgir dela, são muito significativas, muito significativas. E também deixar claro que nós não deveríamos balizar a nossa prática buscando esses resultados, eles acontecem de forma natural. Mas acontecem.

Agora, a beleza do nosso caminho é que ele é o caminho em si, como disse mestre Dogen, a própria prática é a iluminação e a própria iluminação já é a prática. Então, nós desfrutamos desse caminho e podemos encontrar uma pacificação. E eu falo isso baseado na minha própria experiência, quando eu olho para trás e me vejo lá atrás, como eu falei né, vindo do mundo acadêmico com a mente cheia de conceitos, cheia de engessamentos, de condicionamentos e, portanto, muitos sofrimentos desnecessários.

E quando eu me vejo hoje dá para perceber que eu melhorei um pouquinho, que eu me liberei um pouquinho dessa questão de sofrimento mental, dá para perceber que essa prática funciona. E eu digo isso não com arrogância de quem quer impor uma autoridade, mas como simples reconhecimento e testemunho de que essa prática funciona. É mais ou menos assim: poxa, se funcionou até para mim, então pode funcionar pra muita gente, né?

Então, é assim que eu recebo as pessoas com muito senso de igualdade: estamos no mesmo solo, praticando no mesmo solo, sentando no mesmo solo, no mesmo chão, estamos juntos, de fato, dividindo as mesmas questões existenciais como seres humanos, as mesmíssimas questões?. Ninguém está acima de ninguém, absolutamente, e eu reforço muito isso com os meus praticantes tentando o tempo todo relembrar que o caminho está dentro, não está fora, e exatamente por isso somos todos iguais, porque todos temos a mesmíssima capacidade, a mesmíssima herança, essa mesmíssima natureza interior que é possível de ser explorada, conhecida e manifestada. Então é isso pessoal, vamos praticar e vamos praticar juntos, por que não?  Eu acho que é isso!

 

Entrevista realizada por Jyundo Coelho. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

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