Entrevista com Lama Jigme Lhawang

 

Nesta edição tivemos a alegria de entrevistar o Lama Jigme Lhawang, sendo primeiro ocidental do continente americano a ser ordenado Lama na Linhagem drukpa do Budismo Tibetano, pelo líder e autoridade máxima da Linhagem drukpa, S.S. Gyalwang drukpa e por seu regente espiritual S.Ema Gyalwa Dokhampa. Lama Jigme também é presidente e diretor espiritual da Comunidade Budista drukpa Brasil e representante oficial da Linhagem drukpa e de S.S. Gyalwang drukpa no Brasil, bem como presidente de honra do Instituto Live to Love Brasil, o braço brasileiro da Fundação Humanitária Live to Love Internacional. Lama Jigme Lhawang pratica o Budismo desde 1995 e, de 2003 a 2013, praticou como monge budista em universidades monásticas e eremitérios sagrados na Índia e Nepal.

Lama Jigme iniciou seus estudos e treinamento no Budismo em 1995 no Brasil, aos 14 anos de idade, com Kyabje Chagdud Tulku Rinpoche (de quem recebeu seu refúgio no Dharma com o nome de Padma Pawo e sua ordenação tântrica) e seu filho espiritual Lama Padma Samten (o primeiro Lama brasileiro ordenado na Linhagem Nyingma) com quem viveu, aprendeu e praticou meditação por sete anos contínuos.

Estudou história, filosofia e psicologia budista, assim como tradução oral e literária da língua tibetana pelo período de 10 anos, na Universidade Dzongsar Shedra, na Índia e na Kathmandu University, no Nepal. É psicoterapeuta e especialista na área do equilíbrio emocional e do cultivo da atenção plena, além de ser professor formado e autorizado em Cultivating Emotional Balance (Cultivo do Equilíbrio Emocional) pelo Instituto Santa Bárbara de Estudos da Consciência, na Califórnia: um programa de formação baseado em evidências científicas criado pelos professores Dr. Paul Ekman e Dr. B. Alan Wallace.

Nesta conversa o Lama nos conta como foi sua trajetória no Budismo, como surgiu a sua vocação para a vida monástica, sobre seu treinamento, a sua linhagem e por fim compartilha sua experiência de meditação e retiros na linhagem drukpa.

 

Primeiramente, o senhor poderia se apresentar, nos contar um pouco como veio a se tornar Lama, qual sua trajetória no Budismo?

Lama Jigme: Na minha juventude eu sempre fui um menino acelerado, eu não seguia muito a minha idade, meus amigos eram mais velhos do que eu desde os meus 10 anos de idade e minha mãe que se apavorava um pouco (risos). Meus amigos tinham 14, os amigos dos meus primos, eu fui introduzido à uma galera que era mais velha pelos meus primos. Inclusive ia as festas (eu acabei saindo aos 10 anos de idade) e minha mãe achava que meus primos estariam tomando conta de mim, mas eu estava lá tomando todas juntos com os meus primos (risos).

Chegou um momento que, eu muito acelerado, nos meus 14 anos, já estava fora da minha idade, nas coisas que eu estava fazendo. E assim tive alguns questionamentos existenciais. Logo percebi que festas, drogas e rock’n’roll não traziam felicidade genuína e constante. Eu tinha muitos altos e baixos: nas festas eu era feliz, depois das festas eu tinha ressaca (risos). Com as namoradas eu era feliz, dali a pouco os relacionamentos terminavam e vinha a tristeza, a solidão. Comecei a ter esses questionamentos de uma forma muito intensa, muito diferente dos meus amigos que passavam por tudo isso, mas não se perguntavam qual era o sentido da vida. Eu comecei a questionar: “Será que a vida é isso? Essa constante impermanência?” Eu não usava essa palavra, mas eu via isso nos altos e baixos.

Meus pais diziam para que para sair disso era necessário estudar, para poder escolher uma profissão, ou cursar uma faculdade que fosse me trazer felicidade, que tivesse a ver com meus interesses, para que um dia eu pudesse ter um trabalho que gostasse, constituir família e assim por diante. Eu ouvia aquilo meio desconfiado, porque eles já tinham passado por aquilo e não pareciam estar felizes (risos). Meu pai é advogado, minha mãe é dentista, e eu não os via felizes. Aquilo me causou uma grande depressão, parece que eu desisti da vida, e acabei desistindo da escola. Estava concluindo meu ensino médio e não via mais sentido em estudar matemática; as fórmulas todas não faziam mais sentido para mim. Consequentemente deixei a escola e entrei em depressão.

Hoje, olhando muitos anos depois, parece que essa depressão foi mais um retiro em casa para mim, um retiro onde eu me isolei, eu me recolhi das atividades fora de casa. Nessa recolhida eu dormia bastante, ficava muito na cama, troquei dia pela noite. Aliás via muita televisão à noite, mas acabei desistindo também dos programas de televisão, pois não estavam mais fazendo sentindo, não estavam mais me energizando, e aí eu comecei a ler alguns livros de casa.

Minha mãe tinha uma bibliotecazinha, ela sempre foi muito numa pegada mais new age assim, ela é muita aberta a diversas tradições espirituais, incluindo Cristianismo, Umbanda, Ioga, Saint Germain e Sociedade da Grande Fraternidade Universal – GFU, que ela frequentava aqui em Porto Alegre (RS). Então ela tinha alguns livros que incluíam muitas tradições. Um dos livros que me chamou a atenção tinha uma mandala na frente. Olha que interessante, a mandala me atraiu. Olhei para a mandala e o título era: “Gestos de Equilíbrio”, do mestre tibetano Tarthang Tulku. Essa palavra “Gestos” ecoou em mim de um jeito que eu não imaginava, porque estavam faltando certos gestos para mim. Não era uma disciplina, se estivesse escrito “disciplina budista” eu correria (risos), mas gestos de equilíbrio demonstravam autocuidado para eu buscar esse tipo de equilíbrio em minha vida. Então, primeiro a mandala me chamou a atenção, depois o título. Quando abri a primeira página do livro, dizia uma frase assim: “As pessoas vão para a guerra por uma causa e a partir dessa causa que levou elas à guerra, grande sofrimento se cria, tanto para a vida delas, quanto para a vida de outras pessoas. Mas se nós fossemos capazes de descobrir quais as causas que nos fazem ir para a guerra, e remover essa causa, não haveria tanto sofrimento”.

Naquele momento percebi que estava sofrendo uma guerra interna, guerreando comigo mesmo, com autocobrança, muita culpa, autodepreciação, de ser incapaz de seguir a escola, de ser um bom cidadão na sociedade. E o livro discorria sobre a meditação como um método, a ferramenta para identificarmos essas causas. Aí perguntei à minha mãe (como ela estava envolvida com essas tradições todas) se ela sabia e poderia me ensinar meditação, Ela disse que já tinha feito meditação, mas que não saberia me orientar, não era uma instrutora de meditação. Que era importante eu buscar um professor, que o que ela poderia me ajudar era me ensinar um relaxamento corporal, isso ela poderia me guiar.

Ela me convidou a deitar na cama e relaxar cada parte do corpo, foi conduzindo aquele relaxamento, isso eu tinha 14 anos de idade. Senti-me muito bem! Não sabia que aquilo era possível, a gente se acalmar por meio de uma contemplação. Eu disse: “Quero aprender isso, aprender a me acalmar sozinho” (risos). Passaram-se algumas semanas e minha mãe disse: “Olha…eu ganhei uma revista de presente e nessa revista tem o nome de um centro de meditação, tem o endereço e a gente pode ir lá”. Era a “Revista Bodisatva”, que era editada pelo Centro de Estudos Budistas – CEBB.

Na época, isso foi em 95, era uma coordenação laica que geria o centro, incluindo o diretor que era o Alfredo Aveline (na ocasião ele ainda não era o Lama Samten, não tinha sido ordenado). Nós fomos lá, a primeira vez foi eu e minha mãe. O Lama Samten, até então, praticava o Budismo Zen, tendo se iniciado no Budismo Tibetano, mas ainda tinha o grupo do Budismo Zen na casa, inclusive a conexão com um dos primeiros mestres do Monge Genshô, Tokuda Igarashi Roshi, o qual pude conhecer e fazer a prática de zazen com ele.

É muito incrível, não sei se o Genshô Sensei se lembra, mas uma vez levamos o Tokuda San para uma conversa mais privada, com pessoas mais antigas do Centro de Estudos Budistas (o Monge Genshô estava lá, o Lama Samten e também a ex-esposa do Monge Genshô). Ela era muito querida comigo, eu era bem jovenzinho, com 16 anos, então ela falou ao Tokuda San: “Ele quer ser monge”. Primeiro o Tokuda San olhou para mim, bem jovenzinho, e perguntou: “Você é tibetano?” Eu de cabelo loiro, olho verde, me perguntei “tibetano”? Não entendi bem o que ele quis dizer, não entendi bem o que ele estava perguntando, olhei para ele e quando a ex-esposa do Monge Genshô disse “Ele não é tibetano, mas quer ser monge”, então o Tokuda San disse: “Se ele quer, então vai ser”. Aquilo ficou na minha mente. Depois daquilo já fui viver no centro.

A minha mãe foi uma das primeiras pessoas que ajudaram a adquirir as terras do CEBB Viamão, do Lama Samten. Eu tinha um cachorro, um rottweiler, que pedi para o Lama Samten batizar e ele o chamou de “Gonpo”, que significa protetor. O cachorro ficou muito grande para o meu apartamento, que eu dividia com a minha mãe, então eu o doei para o Lama Samten para que ele tivesse um cão de guarda nas terras do CEBB. E o Lama Samten disse: “Sim, muito obrigado, mas a gente precisa de alguém para cuidar dele”, e olhou para mim como se dissesse: “Não pode ser você?”

E naquela época, eu tinha largado a escola, estava naquele processo de recolhimento, de reequilíbrio… Portanto, foi uma oportunidade para mim de fazer uma mudança de vida, e assim vim viver aqui no CEBB Viamão aos 16 anos. Comecei a estudar, fazer retiro com mais constância, a cuidar do local, do meu cachorro também. Aos 23 anos de idade eu fui para Índia. Chagdud Tulku Rinpoche era o mestre de todos, incluindo do Lama Samten, e todos nós olhávamos como se fosse “O Mestre”. Quando eu era criança, eu gostava muito do filme Karatê Kid e quando eu via o mestre Miyaghi ensinando o Daniel San, eu queria muito encontrar o “meu” mestre Miyaghi. Daí, quando eu encontrei o mestre Chagdud, ele tinha uma barbicha branca, era baixinho, muito parecido, então eu falei: “Nossa, encontrei o mestre Myiaghi da minha vida”.

Um dia eu pedi para o Chagdud se ele poderia me ordenar monge, ele disse que não era monge, portanto, não poderia me ordenar monge, e também um monge deveria aprender a ser monge em um mosteiro, pois o centro do Chagdud Tulku Rinpoche não era um mosteiro. Não havia monges ali. Ele me disse que se eu quisesse, ele poderia me ajudar a encontrar um mosteiro para mim, mas eu teria que ir para a Índia. Naquela época, o Lama Samten, ainda estava criando a estrutura no CEBB Viamão e o Chagdud Tulku Rinpoche disse para mim: “Primeiro, antes de ajudar você a ir para a Índia, você deve ajudar o Lama Samten. Quando você sentir que eles não precisam mais de você, aí você vem falar comigo de novo”. Naquela época o Lama Samten estava com o projeto de fazer o templo e eu estava ajudando da forma como eu podia. Mas quando não foi mais necessária a minha presença de trabalho aqui, o Lama Samten disse que seria importante eu fazer faculdade, que talvez isso seria um recurso para mim, construir uma casinha ali. Então construí uma casa no CEBB Viamão e fui fazer cursinho para o vestibular. Ao mesmo tempo comecei a trabalhar em Porto Alegre como motorista de uma empresa farmacêutica.

Nessa época me dei conta de que eu queria ser monge. Chagdud Tulku Rinpoche disse que quando eu finalizasse essa etapa de ajudar o Lama Samten, eu voltasse a falar com ele. Porém, comecei a repensar, porque eu estava trabalhando, estudando para faculdade e tudo aquilo não estava fazendo sentido para mim. Eu queria me dedicar à espiritualidade, ao caminho budista de forma completa. E nesse processo de repensar a vida, eu caí doente. Um mês antes do vestibular eu fiquei muito mal, acho que com exaustão, minha imunidade baixou, me recolhi de novo em casa. Eu pensei: “Nossa! Não é isso que eu quero, vou voltar a falar com o Chagdud”. Tomei a decisão: “Quando eu melhorar, vou falar com o Chagdud que é isso mesmo que eu quero: ser monge”.

Três dias depois recebo uma ligação de madrugada dizendo que o Chagdud Tulku Rinpoche havia falecido. Aquilo foi um baque muito forte para mim porque bem quando eu tinha decidido (e era ele que ia me encaminhar), ele faleceu. Mas me dei conta que a decisão já havia sido tomada e o Rinpoche já tinha dito que ia me ajudar. Então fui falar com o filho dele, Tromge Jigme Rinpoche, que era o substituto na linhagem, e ele disse que iria cumprir a palavra que o pai tinha dado. Achei tão bonito aquilo, ele disse: “O Chagdud Tulku Rinpoche disse que ia te ajudar, eu vou levar isso até o fim”.

Então eu fui encaminhado para a Índia junto com a comitiva de brasileiros que foram para a cremação no Chagdud que ocorreu no Nepal e por lá eu fiquei. Permaneci cinco anos na índia treinando em dois mosteiros, passei muita dificuldade, não sabia bem a língua, imagina, eu estava treinando em uma universidade budista, como se fosse uma faculdade de filosofia no Brasil sem saber português. Aquilo foi muito difícil, foi a trancos e barrancos, cheio de altos e baixos, e eu fui levando, memorizando 10 a 20 palavras por dia e mesmo assim, não conseguia acompanhar. Lembro que, nas primeiras aulas da universidade, um colega perguntou: “Você entendeu alguma coisa”? Aí eu disse: “Entendi três palavras” (risos). Ele riu e disse que não havia entendido muito, e ele era tibetano.

Aí comecei a me dar conta de que a linguagem acadêmica, técnica, era diferente da língua do dia a dia dos tibetanos. Então, eles mesmos estavam aprendendo, é como aqui no Brasil: a gente faz uma universidade e a linguagem técnica também é outra, não é a mesma da escola. Assim me acalmei e disse para mim mesmo: “Vamos seguindo…” Até que eu conheci o meu mestre (até então eu estava em busca de um mestre), que eu havia tido sonhos no Brasil, eu tinha sonhado, ouvido o nome dele, e visto mosteiros que a princípio eu não sabia, mas eram regidos por ele, que é a S.S. Gyalwang drukpa, e também conheci um outro mestre que era aluno dele, o qual me disse que eu deveria falar imediatamente com o mestre. Bem, aí eu respondi que não sabia onde ele estava, então o aluno me disse onde ele vivia e eu iniciei a procura.

Fui me encontrar com ele e pedi para ser seu aluno. Ele aceitou e eu disse: “E agora, o que eu faço?” Porque eu vivia na Índia na época, e ele me disse: “Vem viver perto de mim no Nepal”. Então me mudei para o Nepal. Ele disse que era para eu continuar aprendendo tibetano, porque haviam ensinamentos que ele iria me passar, mas ele não conseguiria em língua inglesa. Entrei para a Universidade de Katmandu dentro de um curso de tradução e intérprete. Concluí esse curso junto de algumas outras cadeiras (praticamente eu fiz todas as cadeiras de filosofia que existiam na universidade), no curso de bacharel, mas eu foquei no curso de tradução e intérprete.

Ao concluir, eu estava pronto para fazer um retiro longo. Eu queria muito fazer um retiro de três anos e de seis anos, pois é muito comum na nossa tradição drukpa, que é a linhagem da S.S. Gyalwang drukpa. E nesse momento eu fiz alguns retiros nas montanhas em cavernas sagradas. Aí depois, na conclusão de um desses retiros, junto à S.S. Gyalwang drukpa, e ao regente dele, me chamaram para ter uma conversa e disseram que estariam me ordenando como um Lama e me enviando para o Brasil para ensinar. Foi muito curioso, porque eu disse: “Nossa! Mas meu treinamento na linhagem nem começou” (risos). Eu tinha conhecido S.S. Gyalwang drukpa no meio de 2009 e em 2011 eles estavam me ordenando um Lama e me enviando ao Brasil. Todo o treinamento que eu tive antes havia sido na linhagem Nyingma e no mosteiro dessa linhagem, que era o mosteiro da cidade de Katmandu, o qual tinha uma parceria com a universidade. O curso acontecia dentro do mosteiro da linhagem Nyingma.

E eu vim assim, com essa bagagem anterior que eu tinha. Lembro de ter perguntado: “Rinpoche, eu não sei muito da linhagem, das práticas, eu não treinei muito”. “Estava treinando língua tibetana, que era o que o S. S. tinha pedido para eu treinar. Concluindo algumas práticas que eu comecei e que S.S. me pediu para concluí-las. Ele me deu mais instruções dentro da linhagem Nyingma, mas da minha linhagem eu não sabia praticamente nada, muito pouquinho, somente de fazer prática com os monges, mas não tinha treinado mesmo dentro da linhagem drukpa”. E aí me lembro de ter dito bem sinceramente ao Rinpoche: “Eu sei muito pouco, tenho pouco treinamento na linhagem drupka, como é que eu vou para o Brasil representar essa linhagem?”. E então ele disse: “Não se preocupe, se você cometer erros, a gente corrige” (risos). E então eu vim como um professor da linhagem, isso foi em 2012. Agora faz 10 anos.

Nesse processo, nós tivemos centros que surgiram e temos um centro em Caruaru, outro em Recife e agora temos terras em Uberlândia, onde estamos construindo um centro de retiro. Nesses 10 anos surgiram outros brasileiros que foram treinar no Nepal. Eu consegui abrir as portas para eles, para uma conexão com meu mestre. Apresentei eles à S.S. e tiveram uma conexão. Eles também foram fazer a faculdade de língua tibetana, a mesma que eu fiz.

Nesse período, eu também tive uma grande proximidade e fiquei muito empolgado com diálogo do Dalai Lama com os cientistas. Desde que eu fui para a Índia, eu gostava muito daquilo, fazia muito sentido para mim, ouvir aquele diálogo com uma mente ocidental, em um modo que a gente pensa sobre os nossos problemas. Trabalhar também no aspecto mais terapêutico, porque muitas pessoas chegam no Budismo e sentam para meditar. Mas aí muitas questões vão pipocando dentro de quem senta para meditar. Porque às vezes a meditação em si torna as coisas muito aparentes e não sabemos lidar com o que está aparecendo. Assim, nesses diálogos do Dalai Lama, comecei a perceber que haviam muitos psicólogos, além dos cientistas. Havia um contexto de como introduzir a meditação não como um remédio, mas para ajudar as pessoas a terem mais autogentileza dentro da meditação. Terem mais acolhimento, não se cobrarem tanto.

Na nossa mente ocidental, temos muita autocobrança e nós entramos na meditação nos cobrando. E isso nos ajuda a ter um pouco mais de acolhimento, um pouco mais de paciência, a entender um pouco mais dessa linguagem terapêutica. Isso me inspirou, tive muito interesse, então fiz alguns cursos e uma formação de professor nessa área, que é a formação que o próprio Dalai Lama pediu para os seus discípulos fazerem. A partir desse pedido do Dalai Lama, foi criado o Cultivating Emotional Balance – CEB, como uma formação para professores que trabalham essas duas áreas: Budismo e ciência na meditação terapêutica. Eu fiz a formação, adorei e comecei a trabalhar nessa área. E disso surgiu um instituto de ciências contemplativas, que eu fundei e comecei a criar um programa, trazendo muito do que estudei nas universidades e em que eu treinei.

Hoje já tenho professores formados que fazem parte da equipe: uma neurocientista, uma antropóloga, um educador, um psicólogo e um médico psiquiatra. Hoje já formamos entre 20 a 25 instrutores e continuamos essa formação, que é o programa Kindfulness. E esse programa, as pessoas perguntam de onde surgiu. Porque geralmente é Mindfulness o que se ouve. E eu comecei a me dar conta de que dentro desse caminho secular de Mindfulness fui introduzido a um artigo Mindfulness para Atiradores de Elite, que não faz sentido nenhum (risos). Depois ainda surgiu um produto do Google, que era um treinamento em Mindfuless para as pessoas terem mais sucesso, para produzirem melhor, e isso não faz sentido nenhum também (risos). Então eu comecei a pensar nas bases, nas raízes, de ética, de amorosidade, de compaixão, que pareciam estar em falta. Surgiu assim o Kindfulness, que é esse programa de formação que eu dou hoje (chamo de Mindfulness integral), porque aborda a harmonia integral, em que se trabalha bastante com as emoções. E isso é um pouco da minha história, do meu trabalho hoje, tanto na parte tradicional do Budismo, quanto na parte mais secular.

 

O senhor poderia explicar um pouco da sua linhagem, onde ela se localiza dentro do Budismo Tibetano e um pouco da história dela?

Lama Jigme: Eu considero uma linhagem um pouco difícil de se seguir, no sentido de que ela é uma linhagem de essência iogue, que demanda uma dedicação, uma entrega muito grande, como pedem essas práticas de ioga. Por exemplo, eu gosto muito de estudo, me formei como tradutor. Então, para mim, o entendimento, o sentido das palavras do Dharma, brilha o meu olho, mas por karma, S.S. drukpa revelou para mim, que é de vidas passadas essa conexão com ele, e também de eu acabar caindo numa linhagem que não tem estudo (risos). Já que não é incentivado o estudo na linhagem, porque a dedicação é a prática.

Recentemente, o regente da linhagem comentou comigo que estudamos o Dharma a partir da prática. A prática vai revelar o sentido do Dharma para nós. Este é o caminho dessa linhagem. Não é que o estudo seja ruim, de forma alguma, combinar o estudo e prática é o melhor, é o mais positivo, porque precisamos entender um pouco qual é sentido dos elementos da prática, o praticante precisa entender o que fazer e qual o sentido daquilo. Então a prática e o estudo é algo que muitos mestres sugerem para os praticantes combinarem. Mas na nossa linhagem não é assim, é uma linhagem muito antiga, que surgiu na Índia, pelo Grande Siddha, chamado Tilopa, que passou sua linhagem para seu discípulo chamado Naropa. O meu mestre é a reencarnação de Naropa. No Budismo Tibetano surgiu essa modalidade que acho que não existe nas outras tradições de Budismo na Ásia, na qual eles reconhecem mestres reencarnados. E esses mestres passam a manter a estrutura que a reencarnação passada criou.

Tilopa e Naropa são aqueles que, na tradição indiana do Budismo, são considerados Mahasiddhas, ou seja, eles não são monges. É muito raro encontrar um Mahasiddha que é monge. Importante esclarecer que monge no Budismo Tibetano não é a mesma coisa que monge no Budismo Zen. Um monge no Budismo Zen é como um sacerdote, um representante religioso, já no Budismo Tibetano inclui celibato, eles não podem ter relações, não podem trabalhar, não podem ter funções do dia a dia mundanas, eles tomam vários votos, 264 votos para os monges, 300 e tantos para as monjas, seguem essa linhagem do Vinaya.

Então, os Mahasiddha eram os doidões (risos), eram incomuns. Em um dos ensinamentos principais que Tilopa deu para Naropa, ele disse: “Não são as aparências que lhe prendem, é a sua fixação ao que aparece que lhe aprisiona. Corte essa fixação. Oh, Naropa”. Então, as instruções desses Siddhas é muito direta. Como Buda ensinou, as aparências não têm um sentido em si mesmas. Nós projetamos um sentido nas aparências, nos eventos, nos fenômenos que surgem. As aparências, não te prendem, mas é a fixação do que você projetou sobre elas, que é o ponto de aprisionamento e de condicionamento.

E os Mahasiddhas, seguem tocando nesse ponto. E como eles não têm nenhum problema com as aparências, mas em como você se relaciona com as aparências, existiam Mahasiddhas que eram casados. Mahasiddhas que eram donos de tabernas onde se vendia álcool (risos). Mahasiddhas que eram hinduístas, ou seja, nem eram budistas. Olha que interessante como a tradição se mescla com outras tradições religiosas. O tantra na Índia surge assim, em um diálogo com o Hinduísmo, que nem existe na verdade, o que existe são várias linhas dentro de um guarda-chuva que consideramos o Hinduísmo.

Dentre estas linhas, tinham tinhas tântricas anteriores ao Budismo. E com o tempo, séculos foram se passando. Buda Shakyamuni faleceu, outros mestres faleceram, outros mestres budistas foram surgindo e dialogando com a própria cultura que já existia na Índia, então foram mesclando com o Budismo, daí surgiram Mahasiddhas que receberam instruções de mestres budistas, mas eles eram hinduístas. E aí, quando eles atingem uma realização sobre a natureza última da realidade, eles nem budistas eram. Eles não eram seguidores de Buda Shakyamuni. Então temos a tradição dos Mahasiddhas de Tilopa e Naropa, que são as fontes da nossa linhagem Drupka, as fontes indianas.

Naropa era um monge da grande Universidade de Nalanda. Ele era um dos quatro abades de Nalanda. Existiam em torno de 2000 professores na universidade, grandes eruditos e um dos quatro principais eram monges. Naropa era um deles. Todos eles eram monges puros, seguindo uma vida monástica pura, só que Naropa, numa visão espiritual, viu uma ogra, que disse que apesar de toda erudição dele, da disciplina monástica, ele não tinha atingido a realização da natureza última. Aí Naropa se deu conta que de fato não tinha atingido. Então perguntou quem poderia ensiná-lo, transmitir isso a ele, e aí a resposta foi Tilopa. E quando procurou Tilopa, o mestre deu um treinamento muito doido para Naropa (o leitor pode procurar para saber mais sobre as histórias de Tilopa e Naropa). Uma das instruções era arrumar uma esposa, só que ele era monge, então Naropa seguiu esse treinamento e atingiu a iluminação em vida, e não era mais um monge, ele virou um Mahasiddha. E essa linhagem foi passada para o mestre Marpa.

Marpa era um tibetano que desconfiou que os ensinamentos que tinham surgido no Tibete haviam sido deturpados. Após alguns séculos, Marpa desconfiou que não estavam puros e o Budismo puro ainda existia na Índia. Haviam mestres presentes lá, ele sabia disso, e realizou três a quatro viagens do Himalaia à Índia para obter estes ensinamentos puros, sendo que seu mestre principal dele Naropa. Naropa reconheceu que Marpa, após muitos anos de treinamento com ele, atingiu a iluminação. Assim Naropa disse a ele para se transformar em um emissor da linhagem no Tibete. E Marpa então voltou para o Tibete e começou a ensinar. Mas ele também não era um monge, não tinha nem roupas de iogue, tem algumas roupas que nós usamos, mas Marpa tinha roupas de uma pessoa laica no Tibete. Era um cara ordinário, tinha esposa, filhos, uma fazenda, era um agricultor. Ele segue sendo um transmissor dessa linhagem que veio até alguns discípulos, um dos principais foi Milarepa, que é um grande iogue, conhecido e reverenciado nas linhagens do Budismo Tibetano.

Milarepa, por sua vez, teve muitos discípulos, um dos principais foi Gampopa. Gampopa era um monge, dentro dessa linhagem. Até Milarepa, nós tínhamos os praticantes que chamamos de Siddhas, que não eram monges, que não seguiam o celibato, e com Gampopa (como ele já era um monge que havia treinado em uma linhagem antes, na antiga tradição Kadampa, uma linhagem pura de iogues monges). o Milarepa instruiu Gampopa que deveria continuar sendo monge. Assim ele aprendeu as iogas da nossa tradição e atingiu a realização muito rápido, acabando por se tornar também um transmissor. Só que Gampopa pegou toda a tradição que foi preservada na linhagem Kadampa, que ele treinou antes de conhecer o Milarepa, que era uma linhagem que vinha pura desde o Buda Shakyamuni, com disciplina e estrutura monástica. Aí ele incluiu as iogas dos Siddhas, unindo essas duas correntes – a tradição Kadampa e a tradição de Milarepa. Estruturou isso dentro de um treinamento monástico.

E a partir dele, muitos monges continuaram a receber a tradição dos Siddhas e a mantê-la viva dentro dos mosteiros como monges. O principal discípulo de Gampopa recebeu essa linhagem combinada tanto dos Siddhas, quanto da estrutura monástica dos Kadampas, e o sucessor desse discípulo seguiu mais a linha dos Siddhas, ele não era monge. E o discípulo a seguir, que era um monge, por meio de certas visões espirituais, deu um nome à linhagem de Drupka, que significa dragão. Em suas visões ele via dragões subindo ao céu. Pelas visões, ele percebeu que os dragões significam energia espiritual, por meio da realização dos cinco elementos, terra, ar, fogo, água, espaço. E através desta energia primordial ele nomeou essa linhagem. A linhagem dos dragões.

 

Nós gostaríamos de saber também mais sobre as práticas de meditação da sua linhagem

Lama Jigme: No Budismo Tibetano, os mestres receberam essa tradição da Índia, que inclui uma tradição criada posteriormente, que se chama os Três Giros da Roda do Dharma. O primeiro giro foca no treinamento sobre as Quatros Nobres Verdades e tem uma ênfase na disciplina monástica. O segundo giro da roda do Dharma tem uma ênfase nos ensinamentos de Shunyata, com relação ao vazio e vacuidade. Em toda a literatura, o Prajna Paramita, no Sutra do Coração (que acredito que no Budismo Zen é muito conhecido, muito praticado, muito recitado) compõe o segundo giro da roda do Dharma. E o terceiro giro fala sobre a natureza de Buda, que se diz que nós já temos a semente de Buda ou a nossa natureza já é de Buda, só está obscurecida por condicionamentos de hábito. E nesse terceiro giro, ele abre as portas, é como se fosse a base para o Tantra, que surgiu na Índia com um diálogo com a cultura indiana e outras tradições dentro do Hinduísmo.

Esses três giros da roda do Dharma chegaram ao Tibete. Os tibetanos ao receberem todos esses giros, e começando a estabelecer os ensinamentos de Buda no Tibete, eles começam a compor o método de prática, que inclui os três giros junto com Tantra. E aí, quando estudamos os três giros da roda do Dharma, tem tanto os giros, a prática de virtudes, a prática das Paramitas, generosidade, disciplina, paciência, a Paramita do esforço, da perseverança, a Paramita da estabilidade meditativa e a Paramita da sabedoria de Prajna, do discernimento. Eles começam a compor um método, um manual de meditação que inclui todas estas práticas, mas de uma forma mais concisa. Tem muitas coisas, muitas formas de praticar generosidade, muitas formas de praticar virtudes e como evitar as 10 não virtudes: matar, roubar e assim por diante. Todos os ensinamentos que Buda deu, e inclui práticas mais para o dia a dia, quanto a práticas mais profundas, como a vacuidade, o reconhecimento de que nós não somos o que pensamos que somos. Essas identidades que sofrem, nós temos de fato uma natureza de Buda. Tudo isso foi compilado em um manual que chamamos de Práticas Preliminares. Todas as linhagens que Budismo Tibetano tem, e essas práticas preliminares culminam na relação com professor. O professor é o transmissor da linhagem.

Na tradição do Budismo dos himalaias, o transmissor da linhagem não transmite sua experiência humana, ele transmite a experiência não humana, que é da natureza última, que ele recebeu do mestre dele, e que o mestre dele recebeu do mestre dele e que remonta até Buda. O mestre não é detentor da teoria do Dharma, ele é detentor da experiência do Dharma, e essa experiência é que é transmitida ao discípulo. E nós chamamos de Guru-yoga. Existe uma prática que é como se fosse a integração com o Guru. Ioga no sentido de integração ou união com a mente do Guru. Mas não é com o Guru humano, não temos uma idolatria, nesse sentido que se concebe hoje em dia, de idolatrar seres humanos. Aprendemos a abrir nosso coração para a natureza de Buda do Guru. Acostumamo-nos a dizer assim: “Chegará um momento que reconheceremos todos os seres humanos como Buda, teremos uma visão pura, perceberemos todos os seres e a realidade como uma realidade última. É muito difícil reconhecer o Buda no marido, na esposa, no chefe do trabalho, no colega que nos incomoda, que está competindo com a gente (risos). Então escolhemos alguém que fica mais fácil de ser um espelho para a gente, que reflita essa natureza de Buda. E esse é seu mestre.

Como nós encontramos um mestre no meio de diferentes mestres? Porque existe muitas diferentes trajetórias de vida e o seu mestre surgiu de um certo jeito. Tem mestres taurinos, aquarianos, virginianos (risos), que tiveram diferentes funções na vida, diferentes treinamentos, com diferentes personalidades, como há diferentes seres, acabamos nos magnetizando por diferentes mestres. A relação que começa a se estabelecer a partir disso, inicialmente, é o espelho que reflete melhor a nossa natureza de Buda. Então vamos tentar buscar alguém que reflita isso para a gente. De acordo com as nossas tendências mesmo.

No Budismo Tibetano, nós temos uma visão de que quando há de fato mestres autênticos, não há mestres melhores ou piores, todos eles têm uma realização única da natureza de Buda. Mas eles se manifestam de jeitos diferentes e pessoas diferentes são melhores beneficiadas por diferentes mestres. Na linhagem Drupka, os mestres passam para a gente que a realização é adquirida mais rápido se você consegue se aproximar da mente búdica dos mestres: tem uma ênfase na mente Guru-yoga, e tem práticas relacionadas a isso que culminam no que chamamos de Mahamudra e às seis iogas de Naropa, que passou as práticas que são chamadas de seis Dharmas (as iogas de Naropa). Em grupo nós somos introduzidos a Mahamudra e as seis iogas de Naropa. Mahamudra seria um treinamento sobre a natureza da mente, que foi revelada pelo Guru. Então a Guru-yoga vai te introduzir na natureza da mente que o Guru refletiu como um espelho e Mahamudra é o treinamento para você se familiarizar e estabilizar essa introdução à natureza da mente.

Para você amplificar essa realização e integrá-la com o Tantra budista, nós temos o corpo como uma mandala. Diz-se que nosso corpo é um corpo puro, e acho isso tão bonito, nós olhamos no espelho e não achamos nosso corpo muito puro, mas nosso corpo é puro. Na Tibetano nós chamamos os órgãos sensoriais de wangpo, nossos órgãos sensoriais são poderes ou faculdades que todos nós temos.

Um parêntese: uma vez eu fui atendido pelo Tokuda san e pelo monge Genshô. Eu estava com 16 anos e tinha muito problema com raiva, eu fazia terapia e me lembro que uma vez a terapeuta me disse para socar o colchão. Soquei o colchão, mas não funcionou, a raiva continuava, eu tinha raiva contida. Então quando eu comecei a praticar o Budismo, tinha toda uma coisa de não causar mal a ninguém, nem a insetos, nem a mosquitos… Aí eu comecei a não matar os mosquitos, a pegar a barata com o papelzinho e a jogar para fora, só que eu tinha aquela raiva borbulhando, aquele vulcão dentro de mim, e eu não sabia o que fazer com aquilo.

Aí num dia eu fui fazer uma consulta (Tokuda san estava dando consultas) e naquela época o monge Genshô estava junto, em seu papel de discípulo ali, aprendendo com o mestre essa área da medicina, eu me lembro direitinho. Tenho muito carinho pelo monge Genshô, ele faz parte dessa minha caminhada em alguns momentos-chave do meu início no caminho budista. E então o Tokuda san foi tocando meu corpo, diferentes partes do meu corpo; tocou no meu estômago. Ele, japonês, fez um grunhido interno, como se tivesse alguma coisa ali, então ele chamou o monge Genshô, o qual tocou também e disse: “Hum”. Na hora pensei: “O que eles estão dizendo?”, “esse ‘hum’ significa o quê”? Eles fizeram a checagem ali comigo e quando sentei para conversar com eles o Tokuda san disse: “Você tem muita raiva contida, isso não é bom, está somatizando vai desencadear outras coisas, você precisa liberar essa raiva”. Eu disse ao Tokuda san: “Se eu liberar é perigosoeu vou sair dando porrada não no colchão e sim em outras pessoas” (risos). Tokuda san entendeu o que eu estava dizendo, pois de que jeito eu poderia liberar isso? Ele disse: “Você já fez alguma arte marcial?” Eu respondi: “Eu já fiz, mas me ensinou a dar soco” (risos). Ele falou: “Então quem sabe você vai correr, sobe uma montanha e ao chegar no topo grite, bote isso para fora”. Eu era uma pessoa bem introvertida, bem envergonhada, me imaginei gritando e aquilo não iria funcionar. Eu pensei: “Sair gritando… não tem nem montanha aqui em Porto Alegre” (risos). Então Tokuda san disse: “Eu acho que o jeito é meditação”. Eu falei: “Então tá, meditação pode me ajudar e eu comecei esse caminho”.

Isso foi um parêntese. Eu estava citando a prática da linhagem de Drupka, na linhagem nós temos essas práticas, que foram passadas de Narupa então todas as linhagens que compõem a Grande Tradição Kagyu têm essas seis yogas de Naropa, tem Guru-Yoga. No caso da nossa linhagem, há uma ênfase diferenciada nessa prática de Guru-Yoga, na qual o mestre vai espelhar a sua natureza última e têm algumas práticas que são da linhagem Drupka mesmo. Tem a prática Ronyom, que consiste na equalização de sabor onde todas as aparências tem um só sabor, o sabor da natureza última da mente. Uma das principais práticas da linhagem é a Tendrel Rabdum, que consiste em fazer uma prática com os sete budas e os outros budas anteriores ao Buda Shakyamuni na história do Budismo e tornamos isso uma meditação, temos uma aprofundamento nessa prática também, são práticas centrais, são as principais práticas. Quando falamos das práticas da linhagem drukpa, falamos sobre visão, meditação, ação e fruição. A prática de visão é Mahamudra, a prática de meditação são as Seis Yogas de Naropa, a prática de ação é Ronyom como os ciclos de equalização de sabor e a prática de fruição, a Tendrel Rabdum, são as sete interdependências auspiciosas.

 

Gostaria de saber sobre os retiros dentro da sua linhagem, qual seria o papel dessa prática, como eles funcionam?

Lama Jigme: É central. Se formos tentar uma relação com a meditação, quando as pessoas pensam em meditação no ocidente elas associam ao silêncio. A meditação em silêncio foi introduzida por Buda. Também temos dentro da linhagem drukpa, mas temos a meditação no silêncio quando recebemos esse ensinamento de Mahamudra, que trata da natureza da mente. Vamos nos familiarizar com a natureza da mente, então ficamos em silêncio. Mas antes disso, temos muitas práticas de virtudes, práticas de Guru-Yoga, muitas orações, tem muito sentimento que a gente gera em relação ao guru, que essa tradição, essa linhagem de bênçãos que ele recebeu possa ser transmitida para gente. Pedimos isso por meio de orações, praticamos essas contemplações isso tudo em retiro, a linhagem é de retiro.

Tradicionalmente (eu lembro do mosteiro do meu mestre), as monjas e monges que não estão em trabalho da manutenção do mosteiro e em cuidado com os professores, todos eles estão em retiro. Eles fazem revezamento: monges estão trabalhando, depois vão fazer retiro e os que estavam em retiro vão trabalhar. É muito bonito, assim monjas que atingiram níveis mais elevados na prática, depois que elas fazem retiros sobre essas práticas, elas vão limpar o banheiro das monjas novinhas que não fizeram retiro ainda. Eles reforçam essa prática de muita humildade no mosteiro. Eu ouvi dizer que no Zen também tem, limpar banheiro é uma das principais práticas, na cozinha também, lá no mosteiro meu mestre também tem isso, elas fazem esse revezamento.

Tradicionalmente temos práticas que seriam iniciais para algumas meditações: fazemos retiros de 21 dias, depois três meses, depois seis meses. Têm práticas que dá para concluir em 21 dias de retiro, sessões que iniciam às 4h da manhã e vão até às 21h, com pequenos intervalos entre uma sessão e outra., são sessões diferentes durante o dia, mas o dia é bem cheio, em torno de 6h de sono que se tem em retiro. Têm práticas que dá para concluir depois em um ano e também tem retiro de três anos. Na minha linhagem todo mundo faz esse retiro de três anos. Eu não fiz ainda, eu queria fazer e me mandaram para o Brasil (risos). Acabou que fiz um retiro mundano aqui no Brasil. Eu brinco com meu mestre: “Rinpoche, me bota em retiro tradicional, já estou há 10 anos em retiro mundano aqui” (risos). Ele brinca: “Não se preocupe porque no seu retiro mundano, a prática que você está fazendo será a base para você acessar a experiência mais rápida depois”.

Acho interessante também o que chamamos de retiro mundano, que é estar no mundo. Temos muita oportunidade para praticar a paciência. É tanta coisa que mexe com a gente, que se formos aplicar o Dharma no mundo é muito possível que avancemos muito rápido, se conseguirmos fazer isso.

Tem uma história no budismo tibetano sobre um iogue fazendo retiro de três anos numa caverna. Então começa a chover. Havia um nômade que estava em viagem no Tibete e como começou a chover, ele viu a caverna e foi se abrigar até a chuva passar e aí encontrou o iogue lá dentro. Quando o nômade chegou na caverna, o monge iogue olha para ele com uma feição séria, como se dissesse: “Estou em retiro aqui”. Mas o nômade explica ao monge: “Está chovendo, eu posso me abrigar aqui?”. E o monge diz: “É, mas eu estou em retiro”. E o nômade pergunta: “E que prática o senhor está fazendo?”. E o iogue responde: “Estou praticando agora nesse momento muita paciência e você está me atrapalhando” (risos). É uma história que contamos brincando porque como é que podemos praticar paciência se não houver algo nos perturbando? Se não houver um fenômeno que tire a nossa paciência, não tem como praticar a paciência. E isso no mundo está cheio, repleto de oportunidades para praticar a paciência, como diz no Shanti Paramita, o Paramita da paz, ficar em paz em meio às adversidades.

Um dos meus mestres falou para mim que se você está conseguindo aplicar o Dharma no mundo, é como você estivesse em retiro. Há um grande mestre do Budismo Tibetano que diz: “A minha cabana de retiro é meu próprio corpo; onde eu vou estou sempre em retiro”. O templo dele é o corpo. Poderíamos estender esse ensinamento para nossa mente, o retiro ele acontece dentro do nosso campo de consciência. Se formos olhar quando se faz sesshin no Zen, se faz o zazen e está tudo acontecendo no nosso campo de consciência. Esse é nosso local de retiro, independentemente de onde estivermos. Portanto, se tivermos esse tipo de olhar, podemos estar em retiro o tempo inteiro. Claro que é difícil, mas existe essa possibilidade.

Depois de três anos na linhagem drukpa, tem um outro retiro tradicional de seis anos. Nesses seis anos treinamos nas seis iogas de Naropa e tem um outro que é de 12 anos. Inclusive, tem uma mestra na nossa linhagem ocidental que esteve no Brasil umas duas ou três vezes e ela fez esse retiro tradicional numa caverna no Himalaia. Tem até um livro que se chama caverna na neve e é onde ela passou 12 anos lá. Esses sãos os retiros tradicionais, mas o conceito de retiro mesmo no Tibete é estabelecer fronteiras, o que fazemos? Retiramo-nos das bolhas, dos ambientes que engatilham perturbações mundanas em nós. Sabemos que é muito difícil estar no meio do fogo e não se queimar, então saímos do fogo para desenvolver a capacidade de estar em meio ao fogo e não se queimar depois. Retiro é retirar-se desses lugares que nos engatilham o tempo inteiro, como condicionamentos de hábitos, emoções perturbadoras, pensamentos acelerados e assim por diante. Então nos retiramos desses lugares e se estabelece fronteiras onde essas atividades, esses gatilhos mundanos não entram. Para isso vamos a algum local na montanha, locais mais isolados, vamos para uma caverna, um centro de retiro, ali dentro não tem gatilhos do mundo, para nos dedicarmos realmente à meditação. Esse é o conceito de retiro para nós.

 

Para concluirmos, para as pessoas que estiverem lendo essa entrevista e ficarem interessadas nessa linhagem, o que elas precisariam fazer para começar a praticar?

Lama Jigme: Eu sinto que a primeira coisa é se ter alguma conexão. Essa conexão pode aparecer como uma curiosidade: “Quem são esses iogues dragões”? Pode ser por algum interesse, a pessoa viu algum texto, algum ensinamento na internet e aí a pessoa pode ir atrás das nossas redes drukpa Brasil, que lá terá as informações sobre os retiros. As duas redes principais são o Ciência Contemplativa e o drukpa Brasil, se quiser saber é só entrar nessas redes.

 

Entrevista realizada por Nathalia Fusô. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

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