Efeitos Colaterais do Zazen: Depoimentos de Praticantes

 

A prática do zazen, meditação sentada, é a base da tradição Zen Budista. De acordo com vários mestres Zen, o zazen não serve para nada, mas também pode servir para tudo. O grande mestre Dogen Zenji sempre insistiu na ideia de que o mais importante é sentar-se em zazen e apenas sentar-se, ou o que ele chamava Shikantaza. Ou seja, a verdadeira prática zen budista é apenas sentar-se sem tentar obter nada, nem mesmo a iluminação. Assim, não praticamos para ficar mais calmos, para sermos mais felizes ou para coisa alguma. No entanto, ao longo da prática contínua de zazen, praticantes podem notar aquilo que alguns professores chamam de “efeitos colaterais”. Nesta edição, trazemos depoimentos de dois praticantes acerca desses efeitos.

 

Encontro com o zazen

Esse texto trata-se de um relato, ou melhor, um depoimento sobre minha curta experiência na prática do zazen. Para melhor explicar essa experiência gostaria de considerar um pouco da minha trajetória até o Zen.

Nasci numa pequena cidade da Bahia, filho de uma professora e um pequeno comerciante. Meu pai, espírita kardecista e minha mãe, católica. Fui criado em torno dessas duas visões de mundo. Ouvia falar de meditação na televisão e em filmes diversos, eu ficava curioso com aquilo, mas era apenas uma curiosidade, assim como outras curiosidades relativas às “coisas” do oriente. Lembro-me de meu pai me incentivando a fazer meditação para melhorar minha atenção, nem ele nem eu sabíamos como fazer isso. Na dúvida ele me dizia para olhar para a ponta do nariz e repetir o som “Om”, como os indianos. Eu nunca fazia! De todo jeito creio que essa “abertura” para coisas diferentes vinda de outras culturas deve ter me ajudado a buscar o Zen. Aos 15 anos fui estudar em uma cidade próxima. Daí até os 20 anos tive contato com pessoas que me apresentaram ideias e perspectivas que eu jamais imaginei conhecer. Fiz leitura de alguns textos de Filosofia voltado para divulgação para o público leigo. Encantei-me com a Filosofia. Comecei a me questionar sobre uma série de coisas da existência, e decidi que seria filósofo.

Aos 19, no ano que entrei no curso de licenciatura em História na universidade, eu estava lendo Nietzsche, e fiquei impressionado com as coisas que ele escrevia e as consequências de suas ideias para vida de um homem comum. Eu que era um otimista, tomei um banho de água fria ao entrar em contato com as máximas do filósofo alemão. Na verdade eu não compreendia direito o que eu lia, porém compreendia o suficiente para perceber que havia um lado “trágico” na existência humana. Após a leitura de Nietzsche me senti perdido e fiquei deprimido, então comecei a conversar com um colega de faculdade que tinha acabado de abandonar o seminário católico por ter se apaixonado por uma mulher. Ele, que era formado em Filosofia e Teologia e agora estudava História, me disse que eu não deveria ficar preso em um só pensador e me aconselhou a ler Schopenhauer, o inspirador de Nietzsche.

Apesar de parecer que o contato com a filosofia de Schopenhauer, que também não tem uma visão “otimista” da vida, fosse piorar minha crise existencial, houve uma surpresa: meu primeiro contato com o Budismo. Quando soube que Schopenhauer tinha influências do pensamento budista fiquei interessado e fui pesquisar e ler aleatoriamente sobre o tema. Para mim foi rápido o encanto com a doutrina budista. Eu fiz o seguinte cálculo: para os outros pensadores que eu tinha lido, a vida era uma tragédia, sem muitas soluções, para o Budismo (pelo menos como eu tinha entendido) havia um “estado de consciência” de profunda paz. Havia esperança! Para mim não foi uma escolha difícil, abandonei a filosofia e passei a estudar um pouco de Budismo. Dentre as várias escolas budistas, o Zen foi a que eu mais gostei. Achava interessante a simplicidade brutal das histórias dos mestres e seus discípulos, e da possibilidade de desfrutar a paz que relatam os textos quando se referiam ao satori. Então, tomei uma decisão: me tornar monge. Após ponderar e concluir que esse era o melhor caminho, fui conversar com meus pais. Eu tinha 20 anos de idade nessa época e dependia financeiramente e psicologicamente deles. Foi uma tragédia! “Mainha”, como chamamos as mães na Bahia, quase me bateu e chorou muito. Fez um escândalo que me deixou assustado. Era como se dissesse que queria ser um ladrão. Meu pai foi mais frio, mas também não apoiou a ideia. No fim, eu desisti de ser monge e que esperaria ter condições materiais de encontrar um mestre Zen. Contudo, não foi isso o que aconteceu. No mesmo ano, houve uma palestra sobre Sufismo islâmico na cidade onde a universidade era localizada, e eu fui assistir. O Sheik que deu a palestra falava de coisas como “luta contra o ego” (Jihad Akbar) e “aniquilação do eu” (Faná). Além do mais, estava se formando um grupo de prática na cidade sob a orientação dele. Foi o suficiente para eu me enveredar pelos caminhos do sufismo, e essa caminhada durou 14 anos até esse ano de 2021. Vale ressaltar, que em todo esse tempo eu nunca tinha praticado zazen. As práticas do sufismo que conheci não eram como o zazen, e mesmo com o encanto inicial com o Zen, era tudo muito teórico e superficial, nada de prática.

Esse ano, após a pandemia, a morte de minha avó e alguns exames médicos com notícias não tão agradáveis sobre minha saúde, eu desenvolvi um processo de distúrbio de ansiedade. Eu sempre fui uma pessoa saudável e não estava acostumado a lidar com aquilo. Eu passei a pensar sempre na morte e que as coisas iam sempre acabar em tragédia. Há algum tempo eu já não estava sendo diligente nas práticas do sufismo e me questionava se aquele era de verdade o meu caminho.

Nesse contexto de ansiedade e questionamento procurei um médico que trabalhava com a medicina chinesa, e após me diagnosticar passou uma dieta, alguns fitoterápicos e principalmente meditação. Ele me disse que a dieta e a meditação teriam que ser diárias e para o resto da vida. Foi então que comecei a lembrar do Zen e das coisas que já tinha ouvido falar do zazen. Decidi procurar, não um guia de mindfulness, mas um professor ou professora do Zen para me ajudar a aprender a meditar. Nessa busca, fiquei assustado com o tamanho do Zen no Brasil. Na época que eu buscava, quando tinha 20 anos, era tudo mais difícil de encontrar, e agora havia uma miríade de professores e comunidades Zen, pelo menos comparado com antes. Depois de conversar com pessoas e buscar na internet, eu assisti uma palestra de Monge Genshô Sensei. Foi instantânea a afinidade com as palavras e o jeito dele. Preciso, direto, mas suave. Comecei a ver todos os vídeos na internet e a praticar junto da comunidade virtual da Daissen.

Durante a primeira semana de prática eu senti muita dor nas costas e dormência nas pernas, minha cabeça parecia um macaco doido pulando de galho em galho. Eu cheguei a pensar que eu deveria ter algum tipo de problema mental. Porém, uma coisa estranha acontecia após o zazen: eu ficava mais calmo sempre, independente da loucura da minha mente e das dores, eu saia melhor do que entrei. Impressionante! Dor nas costas, pernas dormentes e uma mente turbulenta, mas mesmo assim eu saia melhor e mais calmo. Após 30 dias ininterruptos de prática de duas sessões de zazen de 40 minutos, eu comecei a ficar mais calmo no dia, a ter força para melhorar a minha alimentação, a falar com mais clareza e calma, e principalmente a dormir melhor. Eu fiquei chocado com o poder do zazen. Foi tão forte que teve um dia que percebi que essa prática não era apenas um recurso terapêutico, comecei a considerar a possibilidade dessa prática ser o meu caminho espiritual. Conversei com o meu responsável no sufismo e saí da escola sufi que eu fazia parte desde os 20 anos. Fiquei desorientado com toda aquela novidade, mas solicitei uma entrevista com o Sensei Genshô e relatei a minha situação a ele. Sensei Genshô e a Daissen me acolheram! Continuei a prática de zazen diariamente, e experimentei fazer cinco ou seis sessões de zazen por dia durante os fins de semana. Após o terceiro mês eu já não tinha dores nas costas, e com o zafu as dormências terminaram, mas a mente estava lá, ainda como um macaco, porém cada vez mais parecendo um macaquinho menos animado em pular de um galho para o outro. Às vezes, a mente acorda mais animada, às vezes mais tranquila, mas eu continuo fazendo o zazen diariamente.

Essa semana faz cinco meses que estou praticando zazen diariamente. Eu tenho pavor da ideia de passar um dia sem zazen, tenho medo daquela mente que povoava a minha cabeça antes do zazen. Quando estou ansioso faço zazen e parece que tomei um remédio, é imediato o efeito de tranquilização. Quando tenho alguma discussão dentro de casa com minha esposa, meus familiares ou no trabalho, faço zazen e me acalmo, às vezes me sinto um tolo por ter brigado por tamanha bobagem. Meu irmão mais novo quando me vê, após o zazen, pergunta se eu andei bebendo muito suco de maracujá, ele fala que estou estranho demais. Porém, o que tem acontecido comigo, eu acho, é que encontrei um companheiro para toda a vida. Nem a solidão me assusta tanto quanto já me assustou algum dia. Na dúvida, sento-me e faço zazen, as árvores, os pássaros, o vento, o som das máquinas e a voz das pessoas, tudo fica mais bonito. Às vezes, quando termino a prática fico espantado com o poder do zazen. Me pergunto como é possível que algo tão simples, como sentar-se ereto em frente a uma parede branca, possa trazer tantos benefícios? Nunca tenho essa resposta, mas eu continuo lá parado e desfrutando. E o melhor de tudo é que as palavras do Sensei Genshô começaram a fazer total sentido para mim. Passei a ser mais compassivo com as pessoas ao meu redor, mais empático e mais sensível para a dor alheia. As falas sobre a compaixão com todos os seres me fez ficar constrangido com a possibilidade de matar um animal, já não consigo comer carne de tipo algum, sem grande esforço. Passei até a considerar importante a vida de um mosquito. Às vezes, me pergunto se sem o zazen eu teria a mesma compreensão que tenho das palavras do Sensei Genshô sobre o Dharma. Acho que não! Parece-me aquilo que Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) uma vez disse “é preciso crer para compreender”, porém adaptado ao Zen ficaria “é preciso praticar zazen para compreender”. Comigo pelo menos tem sido assim!

Termino esse relato agradecendo profundamente aos membros da Daissen por contribuírem para viabilizar aos buscadores o contato com o Dharma. Agradeço também ao Sensei Genshô pelos ensinamentos e orientação na prática do zazen e do Dharma. Sem o trabalho da sangha minha experiência com o zazen não seria possível. Do fundo do meu coração, Gasshô!

Depoimento de praticante da Daissen

 

Carros quebrando na beira do mar

Desde pequena, amava o mar. Nascida e criada em uma cidade no interior de Minas Gerais, estado brasileiro que não é banhado pelo oceano, sonhava em viver perto das águas salgadas. Aos 18 anos, acabei indo realizar o meu sonho e me mudei para a ilha de Florianópolis, onde vivi por 11 anos e pude estreitar a relação com o mar, aprendendo a surfar. Em 2018, após a conclusão do mestrado, decidi junto a meu companheiro que iríamos voltar para Minas Gerais, para trabalhar e preparar-me para a realização de um outro sonho.

Sabia que seria difícil viver longe do mar e ao chegar em Belo Horizonte isso só se confirmou. Acostumada a viver em uma casa, há poucos minutos do mar, agora me via em um apartamento, cercada de mais apartamentos, muito barulho de carros, pouca natureza e poluição. Não conseguia ver o sentido em nada, estava perdendo totalmente minhas referências. Nos dias ensolarados, me desesperava ao tentar entender o que se fazia naquela grande cidade. Me entristeci bastante, chorava muito recorrentemente e me pegava sem vontade de levantar da cama por vários dias.

Nessa altura, praticava zazen diariamente há quatro anos. Acredito que foi isso que me fez perceber o que estava fazendo comigo mesma, me dava conta de que estava mergulhando em uma depressão. Reclamava de tudo, estava sempre triste e aborrecida, me negava a viver o que a vida na nova cidade tentava me oferecer. Preocupada por minha saúde mental, passei a praticar zazen muitas vezes por dia, às vezes sentava-me 4 vezes, outras 6. Em outubro daquele ano, fui ao sesshin, retiro zen budista, em Florianópolis. Quatro dias intensos de zazen, silêncio e o som das ondas do mar… Que alegria!

Na volta para Belo Horizonte, logo na primeira noite, quando ia colocar os tampões para dormir, parei para observar o barulho incessante dos carros passando. Naquele ano havia desenvolvido esse hábito de dormir com tampões, pois me sentia enlouquecida com todos aqueles carros passando o tempo inteiro. Sentia falta das ondas quebrando na beira do mar, dos passarinhos cantando. Naquela noite, para minha surpresa, me dei conta de que o barulho dos carros passando era muito semelhante ao som das ondas quebrando na beira da praia. Entendi que quem fazia a diferença durante todo aquele tempo era minha mente, era eu quem não gostava do barulho dos carros e de tudo o que havia na cidade e, por isso, sofria. Era eu, também, quem havia me apegado ao som das ondas e, dessa forma, fiz com que o mar fosse meu maior motivo de alegria, mas também o principal fator de infelicidade. Depois dessa noite, passei a dormir muito bem, sem tampões e sem ansiedade. Os sons da cidade grande já não podiam me incomodar; foi assim também que passei a apreciar os museus, os cinemas, os restaurantes, as cachoeiras, as praças que a grande cidade sempre quis me oferecer. A depressão que eu havia percebido chegando meses atrás, estava agora bem longe.

Um ano e meio depois, estava prestes a realizar o sonho que me havia levado para B.H. Finalmente, havia ganhado a bolsa para fazer o doutorado fora do Brasil. Há dois dias da mudança, a pandemia do coronavírus foi decretada, adiando até hoje esse sonho. Dessa vez, não esperei muito tempo para perceber que só dependia de como olhava para as coisas para me sentir bem. Abracei a minha tristeza de não poder ir, porém, decidi viver cada dia com alegria. A mudança para Minas Gerais e, principalmente, a constante prática de zazen, me ensinaram algo precioso: a felicidade já está aqui, disponível em cada momento e lugar, independente de onde a gente esteja; não depende de se há mar, ou sonho realizado, mas apenas de saber apreciar aquilo que já existe, do jeito que já é.

Gasshô.

Depoimento de praticante da Daissen

 

Texto elaborado pela equipe da coluna Meditação.

 

 

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