Ecos Psicológicos do Budismo Yogacara


O budismo Mahayana desenvolveu algumas das mais sofisticadas e influentes linhagens filosóficas da tradição budista, dentre as quais se destaca a escola Yogacara. Fundada pelos pensadores Vasubandhu e Asanga, o Yogacara é conhecido por sua elaborada teoria da mente e da consciência, que estabelece conceitos como
vijnaptimatra (nada além da consciência), trisvabhava (teoria das três naturezas) e alayavijnana (consciência-depósito).

Embora o Yogacara seja comumente estudado em seu contexto histórico e doutrinário dentro do budismo, é interessante notar que muitos de seus insights sobre a natureza da mente e da realidade encontram paralelos surpreendentes com algumas das principais correntes da psicologia moderna. Quando pesquisamos essas ligações podemos lançar luz sobre a relevância contemporânea dessa sofisticada tradição filosófica budista.

Um dos pontos de contato mais notáveis está na noção de alayavijnana, a “consciência-depósito” que, segundo os pensadores Yogacara, armazena as sementes (bija) de todas as experiências passadas. Essa concepção guarda interessantes semelhanças com a ideia freudiana de um inconsciente que abriga conteúdos e impulsos reprimidos, configurando-se como um substrato profundo da atividade psíquica. Podemos traçar, ainda, semelhanças entre a estrutura psíquica freudiana e as oito consciências do sistema yogacara “ego” freudiano com a sétima consciência (manas) e alguma afinidade entre a sexta consciência (manovijñāna) e o conceito de “superego”.

Já a ênfase Yogacara na superação das ilusões e construções mentais, por meio da “transformação da base” (asraya-paravrtti) da consciência ilusória para a consciência pura, remete aos esforços freudianos de integrar o inconsciente ao ego e promover maior equilíbrio psíquico.   Nessa perspectiva, a libertação budista se assemelha à busca psicanalítica por uma realidade menos distorcida pelas defesas do ego.

Outro paralelo interessante pode ser traçado com a teoria lacaniana. Assim como Lacan enfatiza a importância das construções simbólicas e linguísticas na constituição da subjetividade, o Yogacara também atribui um papel central às elaborações conceituais da “natureza imaginada” (parikalpita-svabhava) na gênese das ilusões. Ambas as abordagens reconhecem a dimensão fundamental da linguagem e da estrutura simbólica na formação de nossa experiência da realidade. Assim como a “transformação da base” (asraya-paravrtti) proposta pelo Yogacara visa a passagem da consciência ilusória para a consciência pura, Lacan também enfatiza a necessidade de confrontar e integrar esses três registros psíquicos fundamentais, superando as identificações imaginárias em busca de uma relação menos alienada com a realidade.

Nesse sentido, tanto o Yogacara quanto Lacan reconhecem a importância crucial da linguagem e das estruturas simbólicas na constituição da experiência subjetiva. No entanto, ambas as abordagens buscam ir além dessas construções conceituais, apontando para uma dimensão mais profunda e inefável da existência. Esse diálogo entre a sofisticada teoria das três naturezas do Yogacara e a tríade lacaniana do Imaginário, Simbólico e Real revela notáveis ressonâncias no que diz respeito à compreensão da mente, da consciência e da relação entre sujeito e realidade.

Também podemos destacar a noção junguiana de um inconsciente coletivo como substrato profundo da psique humana que guarda similaridades com a concepção Yogacara da alayavijnana. Da mesma forma, a busca pela “individuação” em Jung, onde o indivíduo integra elementos conscientes e inconscientes, pode ser vista como análoga à realização da “natureza aperfeiçoada” (pariniṣpanna-svabhava) no Yogacara, onde a dualidade é superada em prol de uma compreensão não-dual da existência.

Um dos principais alinhamentos entre o Yogacara e o pensamento junguiano reside na noção de um nível profundo da psique que transcende a consciência ordinária sendo nomeada no Yogacara, como alayavijnana, a “consciência-depósito” que armazena as sementes (bija). Analogamente, Jung concebia o inconsciente coletivo como um substrato arquetípico e transpessoal da psique humana, que contém padrões e conteúdos ancestrais compartilhados pela humanidade. Assim como a alayavijnana, o inconsciente coletivo junguiano funciona como um reservatório profundo de onde brotam os elementos fundamentais da experiência psicológica.

Dessa forma, ambas as abordagens enfatizam a importância de acessar e integrar esse nível mais profundo da mente/psique para alcançar uma compreensão mais plena da realidade e da própria natureza humana. No Yogacara, a “transformação da base” (asraya-paravrtti) é vista como o caminho para a liberação, assim como a jornada junguiana de individualização visa integrar os conteúdos inconscientes ao ego.

As duas visões se conectam novamente no que diz respeito à noção de “natureza aperfeiçoada” (pariniṣpanna-svabhava) no Yogacara, que pode ser associada ao ideal junguiano da realização do self, onde a dualidade entre consciente e inconsciente é transcendida em prol de uma integração mais profunda. Nessa perspectiva, ambos apontam para a superação das ilusões e divisões da mente em direção a uma compreensão mais abrangente e unificada da existência.

Além disso, tanto o Yogacara quanto Jung valorizavam a prática meditativa/contemplativa como um meio essencial para acessar os estratos mais profundos da psique. Enquanto os yogacarin enfatizavam a análise e a transformação da consciência, Jung também reconhecia o potencial da imaginação ativa e dos sonhos para revelar conteúdos inconscientes.

Essa concordância no reconhecimento da importância da experiência subjetiva e da dimensão transpessoal da mente/psique aponta para uma ressonância fundamental entre as duas abordagens. Ambas buscam ir além das limitações do ego e da visão fragmentada da realidade, em direção a uma compreensão mais integrada e holística do ser humano.

Todavia, as convergências entre o Yogacara e a psicologia analítica de Jung sugerem uma profunda afinidade no que diz respeito à natureza da mente, da consciência e da busca pela realização plena do potencial humano. Explorar essas conexões pode enriquecer tanto a compreensão do budismo quanto os desenvolvimentos contemporâneos da psicologia da profundidade.

Esse diálogo entre o Yogacara e as principais correntes da psicologia moderna revela uma notável convergência de insights sobre a natureza da mente, da consciência e da realidade. Embora as linguagens e os contextos sejam distintos, é possível identificar pontos de contato significativos que enriquecem tanto a compreensão do budismo quanto os próprios desenvolvimentos da psicologia contemporânea. Afinal, a riqueza das elaborações budistas sobre a mente humana merece ser mais amplamente reconhecida e integrada aos debates atuais sobre a natureza da consciência e da experiência. 

 

Por Matheus Anshin e Mauricio Hondaku

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