Diálogo Inter-religioso: Budismo e Cristianismo, Uma Aproximação Possível

Neste primeiro texto sobre as aproximações entre duas das maiores religiões universais do planeta, o Budismo e o Cristianismo, irei abordar os esforços de setores das suas religiões para estabelecer pontos de contato e, de forma respeitosa, entender as diferenças não a partir de um olhar excludente, mas, ao contrário, abertos ao princípio da diversidade. Nesse sentido, como defende Bhikkhu Buddhadasa, há inúmeras semelhanças entre as duas tradições, se levado em conta – como ele mesmo diz – o que está “além das palavras, além das letras e da retórica”. Esse ponto de vista também encontra ressonância nas análises filosóficas contidas na obra eckharteana, bem como nas pesquisas científicas levantadas por Henri de Lubac (2006) e Frank Usarsk (2009).

Afora todas as tentativas de generalizações apressadas que, não por menos, acabam por nivelar por baixo, pelos processos comparativos superficiais, estruturas filosóficas, doutrinárias e teológicas construídas há pelo menos dois mil anos, não é possível negligenciar aproximações de caráter simbólico, soteriológico, doutrinário (panos de fundo de ordem universalistas, como paz mundial e boa nova, por exemplo) e até estruturas mais sutis, como ênfase missionária e viés que remete a uma abordagem/discurso totalizador contido não apenas no Cristianismo, mas também no Budismo.

Essa aproximação, no entanto, apesar de ter começado lá na antiga Alexandria, nos primórdios da cristandade – e, assim, tendo passado seis séculos desde a aparição do Buda Histórico – com as recíprocas influências decorrentes da inter-culturalidade do mundo helênico, só ganha ênfase e substancialidade, para Usarski, a partir do final do século XIX.

O ápice, no entanto, ocorre durante os primeiros intercâmbios entre cristãos e a comunidade tibetana exilada na Índia e, paralelamente, com o esforço conjunto entre cristãos católicos e protestantes que desenvolveram um robusto programa de parceria com tradicionais centros de Zen Budismo, no Japão. E as respostas não poderiam ser melhores.

Elas sinalizaram para frutos positivos desde a publicação de várias obras do monge cristão Thomas Merton sobre o Zen, nos anos 60, até os encontros globais promovidos na Itália pelo movimento católico Focolares, com enfoque na “unidade na diversidade”, nas décadas de 70 e 80 e, por fim, culminando com o recente encontro do Papa Francisco e os líderes das religiões globais, ocasião em que três representantes budistas de diferentes escolas (duas do Zen Budismo e uma do Budismo da Terra Pura) discutiram temas centrais para as tradições, nos âmbitos da Ética, da Ecologia, Paz Mundial e questões que envolvem a diminuição das diferenças sociais.

De acordo com Frank Usarsk (2009), há tanto no Budismo quanto em vertentes do Cristianismo um espírito “metaprático” para se abrir a um número crescente de possibilidades de aproximação com o “outro”. Especificamente em relação ao Dharma budista, na própria estrutura argumentativa da doutrina, procura-se remeter a uma variedade de técnicas para situações e momentos diferentes e oportunos.

Neste sentido, a comparação com o Cristianismo, mesmo em aspectos mais delicados como a questão do teísmo (como foi visto no movimento da Escola de Kyoto), ganha caráter de “meio correto” e adequado para chegar ao maior número de pessoas, sem que a “homogeneidade funcional da doutrina budista e a legitimidade das especificidades de todas as suas facetas” (USARSKI, 2009, pág. 196) sofra degeneração.

Isso fica claro na estratégia de upaya, que se apresenta como uma figura argumentativa interessante para permitir a “representantes do Mahayana um olhar construtivo diante de fundadores e protagonistas de sistemas não-budistas, interpretados como coparticipantes do trabalho universal do Buda” (idem, pág. 198).

 

Usarsk destaca a tendência Mahayana para se orientar por princípios como o altruísmo e a compaixão diante do sofrimento dos outros. Desta forma, antes mesmo de qualquer abordagem proselitista, observa-se o caráter da intervenção dos protagonistas envolvidos no diálogo, tendo como meta a atenuação e/ou superação de eventuais contratempos. Para tanto, os encontros inter-religiosos não dão ênfase a questões doutrinárias mais delicadas e que, por vezes, nos processos de comparação, possam irritar as partes.

Isso não impede que o tema da imanência e da transcendência seja levantado no Budismo pela escola de Kyoto, que recebe pressão dentro da própria comunidade japonesa para que, no processo de aproximação [com o Cristianismo], atente-se em preservar pecualiaridades-chave do Dharma de Buda, notadamente os conceitos de Karma, originação codependente, agregados e vacuidade.

Do lado cristão chama a atenção, sobretudo, um forte interesse pelos temas budistas, num movimento que se acentua no pós-Segunda Guerra e que culmina com as recentes intervenções feitas pelo Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, do Vaticano, que acompanha com atenção o calendário anual budista e, com frequência, emite avisos públicos de congratulações pelos referidos eventos.

Além disso, como foi exortado pelo documento Reflexões e orientações para o diálogo inter-religioso e o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, Documento comum do Conselho Pontifício para o diálogo inter-religioso e da Congregação para a evangelização dos povos, de 1991, o diálogo é parte inseparável da própria missão evangelizadora da igreja. Aqui, se refere à Igreja Católica, mas como será destacado no decorrer desta série de textos, várias agremiações evangélicas – notadamente batistas e luteranos – também mantém a mesma postura.

Por fim, de acordo com o cristão Manuel Hurtado, s.j. (2000), mesmo em questões mais espinhosas, os eruditos do Cristianismo têm optado por uma postura de “compromisso e abertura”.

Para tanto, ele se vale da tese de J. Dupuis, para quem o compromisso serve para “aquele que está em diálogo não pôr em questão as convicções mais profundas de sua fé. Mas também “abertura”, pois sempre há um risco para todo crente de absolutizar sua tradição de maneira indevida, e o diálogo deve ser justamente o lugar de uma abertura, que pede a cada um dos que estão em diálogo que não absolutizem aquilo que é simplesmente relativo em sua respectiva tradição”.  (HURTADO, 2000, pág. 3)

Ou seja, há uma fundamentação sólida do lado cristão, de amadurecimento, que favorece o ambiente para o diálogo. Além disso, os eruditos cristãos, de acordo com os autores estudados, partem do pressuposto de que, no diálogo inter-religioso entre budistas e cristãos, há necessariamente uma transformação mútua, “num movimento que consiste em ‘ir mais além’ de sua própria tradição para voltar a ela”, talvez ainda mais convicto de sua fé.

No entanto, tanto Usarsk (2009) quanto Lubac (2006) demonstraram a dificuldade – especificamente no campo teológico – de se manter o compromisso com o espírito de abertura. Esse certamente é um desafio atual e que, no momento, está na pauta primeira dos líderes globais das tradições em questão.

Além de tudo, é importante destacar que tanto o Cristianismo – no Ocidente – quanto o Budismo – no Oriente – influenciaram a filosofia de suas respectivas macrorregiões e, pelo menos nos últimos 100 anos, vêm marcando um intenso diálogo nesta esfera. Esse é, certamente, um importante elo que aproxima as duas grandes religiões universais. Do lado Budista, por exemplo, a Escola de Kyoto – como apresentado no decorrer deste texto – teve um papel preponderante no sentido de estabelecer um colóquio frutífero entre a produção filosófica influenciada pelo Budismo e a filosofia ocidental, notadamente a vertente alemã.

Dentre os pensadores europeus que, de alguma forma, “beberam” da fonte oriental encontram-se os filósofos Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Martin Heidegger. Como apresentado pelo professor e monge Joaquim Monteiro (2015), já houve ampla apreciação acadêmica em torno da produção destes autores, e suas relações com o oriente, de forma geral, e com o Zen Budismo, de forma particular, foram alvo de várias teses e dissertações.

No entanto, Monteiro e Neto (2011) destacam, cada um à sua forma, que as abordagens dos pensadores alemães sempre estiveram contingenciadas ao modo de filosofar grego. Portanto, uma coisa é filosofar sobre o Budismo. Outra, bem diferente, é ter a experiência prática.

Dessa forma, “a ideia de abertura ao diálogo com o oriente em Heidegger tem como referência direta o diálogo com o universo grego: o retorno ao início, que se torna central em seu pensamento a partir do final da década de 1930 e que se expressa em sua forma mais evidente no texto O que é isto – a filosofia, de 1949, no qual é apontada a necessidade do diálogo com o mundo grego como possibilidade de resgate do caráter ontológico da linguagem, visto que,  naquele momento, as coisas eram ditas de forma tal que, ao serem nomeadas, o próprio ‘ser’ se mostrava nelas mesmas. A ideia do desvelamento do ‘ser’, no início do pensamento grego, em Heidegger, vincula-se, portanto, ao fato da linguagem enquanto ‘logos’ possibilitar o acesso direto às coisas. Nesse sentido, as obras de Heidegger que tratam do retorno ao universo grego estão em sintonia e dão continuidade ao problema do esquecimento da pergunta sobre o ‘ser’, apontado inicialmente em Ser e Tempo. O pensamento pré-socrático, particularmente Parmênides, Anaximandro e Heráclito, é considerado por Heidegger como anterior à filosofia, visto que, até eles, o próprio termo filosofia ainda não havia sido usado e seu caráter metafísico somente se desenvolve a partir de Platão e Aristóteles”. (NETO, 2011, págs. 29 e 30)

Superando essa questão, volta ao foco o fato de tanto o Cristianismo quanto o Budismo se configurarem como tradições que vão muito além de um conjunto doutrinário (religioso) e que, portanto, conseguiram expandir seus raios de influência para o chamado “fazer/produzir filosófico”, podendo até mesmo, em alguma medida, serem consideradas vertentes filosóficas com sustentação própria (XAVIER, 2001).

Nesse sentido, se no Budismo nomes como Nagarjuna, Atisha e Eihei Dogen, dentre tantos, tiveram uma efusiva produção (intelectual) para tentar sistematizar suas concepções sobre o dado conjunto de pensamentos, no Cristianismo isso ocorre por Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Mestre Eckahrt, só para citar três grandes nomes. Em comum, mais uma vez, está a vontade de realçarem suas tradições como originais e universais, com forte impacto global.

Dessa forma, se por um lado as vertentes filosóficas cristãs, por vezes, penderam para as “dominâncias correlativas do tema de Deus” e sua relação com o homem (XAVIER, 2001), numa concepção classicamente teísta, por outro lado o Budismo oferece explicações filosóficas que se contrapõem às grandes questões teológicas, e ao mesmo tempo reclama para si uma posição que está além do Teísmo, do Ateísmo, do Naturalismo e do Materialismo mecanicista.

Assim, como pontua Joaquim Monteiro (2015), são duas tradições que se complementam, pois nas suas constantes abordagens de caráter universalizantes, acabam por se configurar como contraposições naturais – e indispensáveis – para que ambas cresçam e experimentem novos patamares na investigação filosófica.

(Esta série continua na próxima edição)

 

Texto de Sonielson Kido. Jornalista, psicólogo, professor e praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

Referências

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