Se quiser seguir o Dharma do Buda, faça-o, mas pise o caminho com seus próprios pés, não com pés alheios. Se encontrar o Dharma fora, você continuará vagando ainda que, diariamente, faça três mil prostrações diante do Buda. Não há Buda além da sua mente. Sua mente é Buda, é pura luminosidade e vacuidade. Mas você só vê e entende isso através da prática. Busque o seu ritmo original, natural, interiormente praticando, e você será o caminho, a verdade e a vida, ainda que jamais tenha ouvido falar em Buda em toda a sua vida.
Buda é Mente, Luminosidade e Vacuidade
Nada há que não seja Buda transmitindo o Dharma. O cão que late, o gato que gateia, a planta que germina, o sol que brilha, a lua que ilumina. Tudo o que você vê, ouve, prova, cheira, sente, pensa é pura verdade, é Dharma. Tudo é luminosidade e vacuidade da mente, é ensinamento, tal qual é. Em especial, tudo aquilo que desgostamos ou repelimos fortemente. O sofrimento, querendo ou não, é Dharma. O lixo, a poluição, a degradação ambiental, a depressão econômica, o coronavírus, o político corrupto, nada escapa. Todo fenômeno é Dharma. Toda raiva, ódio, apego, avareza, inveja, ciúmes, ingratidão, vingança, indiferença e obtusidade são Dharmas pregando as escrituras sagradas. Ainda que dolorosamente, mortalmente, tudo ensina e gera aprendizado. Somos eternos alunos em formação ininterrupta, constante, mesmo dormindo. E as piores lições são as mais exitosas.
Devemos aprender tudo o que pudermos com vontade, disposição e alegria contagiantes, tal como o fazem amigos que desatolam um carro da lama. Então, apenas aprenda o que deve ser aprendido e siga, avance, vá além. Uma nova lição nos aguarda na próxima curva ou atoleiro. Cada dia, cada momento, um novo ensinamento. Sem aprender e mudar, não é possível avançar, evoluir, não é possível transformar, e, sobretudo, não é possível ensinar. Quem não aprende não deveria ensinar. Se o nosso saber é tamanho, tal que nos impeça de ver o Dharma vivo e fresco em cada fenômeno, então, nosso saber é um grave obstáculo. É cegueira. Contraímos a perigosa e contagiosa moléstia chamada “ilusão do conhecimento”. Ela é semelhante a um poderoso entorpecente que nos envaidece, porém remove a lucidez da mente. De fato, neste caso, somos como sonâmbulos, dominados por pensamentos que nos alucinam. Não vivemos nem experimentamos o nosso ritmo original natural, mas pensamos e acreditamos que sim. É muito triste. Logo, ainda mais sofrimento e aprendizado se faz necessário.
Escrituras, Mestres e Templos
Escrituras, Mestres, templos não são nem bons nem ruins. Todos eles ajudam, contudo, não trilham o caminho em nosso lugar. O motivo é bem simples: ninguém pode praticar por nós. Mestres e templos abrem a porta, apontam a direção, ensinam a prática. Mas, você passa? Vê a direção? Você pratica?
Se sabemos pouco, não vemos o caminho. Se sabemos demais, a verdade é ofuscada. Então, nada aprendemos, não há mudança, transformação, evolução. Os mestres nos ajudam a sair destes perigosos extremos, mas, nenhum mestre, escritura, templo ou ensinamento será bom o bastante se não estivermos realmente dispostos, se não praticarmos, se realmente não quisermos mudar e transformar a nossa vida. Se continuarmos acostumados ao que pensamos que somos, nada alcançaremos nem que Buda nos pegue pela mão. Em geral, tememos abandonar o conhecido e encarar o desconhecido. O conhecido é um velho amigo. O desconhecido, um estranho desafiador. Não nos sentimos confortáveis com ele. Sem praticarmos em direção ao desprendimento, abrindo mão daquele nosso lugar predileto no sofá da mesmice, então, o Samsara prevalece e ruge ainda mais alto. Espetamos a fera com vara curta, mas estamos obesos demais para escapar.
Não é possível, sobretudo, melhorar o lar perfeito, pois já está pronto, acabado, desde tempos sem início. Isso tudo aqui está pronto e foi realizado por um poder superior, misterioso, impensável e insondável, no entanto, nós queremos melhorar o serviço. Não estamos satisfeitos com a perfeição. Sentimos uma coceira que precisa mexer em quase tudo. Queremos melhorar o paraíso, não está do nosso gosto. Queremos que tudo ao redor seja mais que perfeito e, no mínimo, seja tingido com a nossa cor predileta. Queremos adornar o esplendor, enfeitar de guirlandas os horizontes. Entretanto, se isso acontecer, se o mundo for exatamente aquilo que desejamos, nós nos sentiremos profundamente infelizes, entediados e perdidos. O motivo disso é simples: queremos que as coisas todas mudem, que o mundo mude, que as pessoas mudem, incluindo nossos cônjuges, o chefe, o salário, tudo. O problema, todavia, não reside nas condições externas, no modo como as coisas são, como os fenômenos ocorrem. O problema não está no que acontece ou deixa de acontecer. Todo o problema é sutil, portanto, interno. Está nas energias aflitivas interiores. Enquanto elas não forem sanadas, tanto faz o que acontece ou não, estaremos perdidos no paraíso sem jamais enxergá-lo.
Desde sempre, já estamos pisando no paraíso perfeito, porém não reparamos na perfeição contida em cada fato, em cada textura dessa vida. Tudo é espantosamente milagroso, encantador, formidável e belo. Vemos tudo, todavia, como pura banalidade, chatice e “repeteco”, “mais do mesmo”… Isso se chama visão contaminada. Ao desistirmos, ao abandonarmos, através da prática, essa contumaz visão contaminada, condicionada, deixamos de impor nossa percepção impura e equivocada àquilo que subjaz absoluto e puro. Em seguida, só nos resta contemplar, apreciar e dar graças.
A maior qualidade das aparências é a vacuidade; da vacuidade afloram as aparências inseparavelmente. Qualquer outra atividade, além do deleite diante da magia da consciência, somente nos aparta de nós mesmos e do nosso destino iluminado. Nele, há apenas assombro e deslumbramento. Nossos olhos se refestelam nas assombrosas maravilhas da vida. Uma profunda paz e serenidade inunda o nosso coração. A sanidade da mente se manifesta aqui e agora mesmo. Já chegamos ao destino, antes de partir. Aqui mesmo, a meta já tinha sido ultrapassada. Estávamos além do que deveríamos ter ido e nos afastamos de nós mesmos.
Estar vivo, neste planeta extraordinário, tocando as maravilhas da vida no momento presente é muito mais do que merecemos. Somos abençoados só por podermos abrir nossos olhos a cada manhã e dispormos de um novo dia pela frente. Agradeça e celebre! Nirvana prevalece em um trovejante e ensurdecedor silêncio.
Nota sobre o autor do artigo:
Enio Burgos nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no dia 21 de junho de 1962. Formado em Física e, posteriormente, em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Burgos foi professor de física e matemática de 1984 a 1995, quando passou então a atuar como Médico Clínico Geral.
Ainda na década de 1990, decidiu se dedicar também a duas paixões que duraram muitos anos: a literatura e os ensinos budistas. Desde os 12 anos, Burgos se interessava pela prática tradutória, quando iniciou sua própria versão d’A Física, de Aristóteles. A produção feita por hobby, que rendeu dois cadernos escolares completos, acabou não sendo publicada, mas serviu de primeiros passos numa prática que voltaria à tona aos 34 anos. Em 1996, o médico fundou a Editora Bodigaya, descrita como tendo “o objetivo de divulgar ensinamentos universais, tanto budistas como não-budistas”. O nome se dá pelo local, na Índia, onde Sidarta Gautama sentou sob uma árvore em meditação, até atingir a iluminação e passar a ser conhecido como Buda, “o desperto”. No mesmo ano, Burgos fundou também a Associação Meditar, que promove a difusão da prática da meditação e mente atenta.
Os estudos budistas levaram Enio Burgos a traduzir orações, mantras e ensinamentos da Medicina Tibetana em línguas diversas. Foi na tradução do inglês para o português, porém, na qual ele se especializou profissionalmente. Burgos se tornou discípulo e tradutor do célebre escritor e poeta vietnamita Thich Nhat Hanh, monge budista que, desde a Guerra do Vietnã, se dedica a divulgar “a arte do viver consciente”, participando de diversos movimentos em prol da paz. Burgos, que já traduziu obras notáveis de Nhat Hahn como Velho Caminho, Nuvens Brancas e O Coração da Compreensão, também elaborou orientações para outras traduções brasileiras das obras do monge budista, por solicitação direta do grupo monástico ligado a ele.
Assinando também com seu nome de batismo no budismo tibetano, Karma Sherab Tarchin, Burgos traduziu todas as obras publicadas pela Editora Bodigaya, dentro dos gêneros de Budismo, Poesia, Ciência, Ecologia, História, Meditação e Saúde.
- Receba mais artigos como esse, assine nossa newsletter.