Dāna Paramita

 

Ou Sobre a Importância de Ir Além das Boas Intenções e Partir para a Ação

 

Uma das coisas (dentre tantas) que mais me marcou no último Rohatsu Sesshin, em Florianópolis, foi a ênfase dada por Sensei Genshô aos inumeráveis esforços de todos os mestres da linhagem histórica para garantir a preservação e a perpetuação do Dharma, desde a época do Budha até os dias de hoje. Para que isto ocorresse, foram necessárias várias decisões e ações concretas para estabelecer templos, sistematizar ensinamentos, alimentar monges, difundir o Dharma a partir de estratégias missionárias, financiar a formação dos monásticos etc. Tudo isso não envolve apenas boas intenções, mas, sobretudo, iniciativas práticas que passam pela doação de tempo, disposição e recursos financeiros.

Este é um dos aspectos mais marcantes da Dāna Paramita, ou a Paramita ligada à generosidade e ao altruísmo. Ela representa, também, a mais pura prática, porque nos convida a sair de uma postura endógena (em relação ao autodesenvolvimento) e nos exorta a agir em direção ao outro, em benefício de todos os seres. O que seria de nós se vários mestres não tivessem feito isso no passado? Aliás, o que seria de nós se os mestres do presente não dedicassem seu tempo, sabedoria, energia e disposição para propagar o Dharma? Pois bem, por isso é necessário falar – sempre que possível – da importância da generosidade, da doação e do altruísmo.

Nunca me esqueço de uma das primeiras idas de Genshô sensei a Palmas – TO, aproximadamente nove anos atrás, quando na ocasião realizou uma palestra do Dharma para um auditório lotado na Assembleia Legislativa do Tocantins. Chamou-me a atenção a ênfase dada por sensei ao fato de que todos os que estavam ali tinham a obrigação ética de ratear os custos do evento (que incluía não apenas aquela palestra, mas também as passagens aéreas, os custos com a realização do zazenkai, custos com alimentação e hospedagem etc). Ora, nada mais budista do que isso!!!

Pois bem, ao me colocar diante da comunidade como alguém disposto a colaborar, eu de fato estou comunicando que há, em mim, o esboço de uma prática espiritual que vai além de mim mesmo. Porque saio da postura passiva de aguardar que façam algo por mim e, em vez disso, crio as condições para realizar a prática. Isso faz lembrar, inclusive, a própria lógica emblemática dos mosteiros japoneses: um dia sem trabalho é um dia sem refeições! Trabalhar e agir conscientemente no mundo, assim, é uma forma de (auto)realização. E quando se faz isso pela comunidade budista, em benefício de todos os seres, há aí a expressão concreta de Dāna Paramita.

Saindo um pouco da lógica estritamente budista e adentrando no campo da ciência, a partir da psicologia evolucionista, história e sociologia, as evidências são cada vez mais notórias da importância do altruísmo e cooperação para a manutenção da saúde mental individual e coletiva, além de garantir a preservação da própria espécie humana. Sobre o assunto, interessante se valer das evidências colhidas pela psicologia evolucionista, dentro da binaridade cérebro primitivo (ou instintivo) x cérebro criativo (ou atual). O padrão comportamental do cérebro primitivo aponta para uma postura exclusivista, reativa e altamente propensa a ser “sequestrado” por complexos afetivos e distorções cognitivas de toda ordem (GILBERT, 2020), já que parte do nosso organismo – ainda conectado ao homem ancestral – está sob o alerta de ter sua vida ceifada a qualquer momento, num catastrofismo irracional e desconectado do real, uma vez que não vivemos mais como caçadores coletores.

 

AS DISTINTAS FORMAS DE GENEROSIDADE
 

A generosidade possui formas distintas.

Pode-se dizer que existem três níveis de generosidade

 

1 – O primeiro se chama dar com uma mão. Com esse tipo de generosidade, você dá porque as pessoas pedem ou porque você é pressionado a fazê-lo, ou ainda porque as pessoas estão olhando. Mas você continua segurando com uma mão. Você, na verdade não quer dar e assim o faz com relutância. Digamos que um mendigo o importune. Para livrar-se dele, você lhe dá algo. Se você já esteve na Índia, provavelmente enfrentou situações em que os mendigos o seguem como uma sombra e não o abandonam até que finalmente você lhes dê algo. Essa é uma forma de generosidade, de compartilhar com os outros. Mas ela possui um valor limitado, porque o verdadeiro espírito imbuído no ato de dar é de realmente se soltar do que é doado, abandonar as coisas. Esse tipo de generosidade é abandono até certo ponto, e, portanto, incompleto.

 

2 – O segundo nível de generosidade é dar amistosamente. Quer dizer, você dá porque gosta de dar. Você se sente bem. Não é necessário pressão para que você o faça. Sempre que você vê alguém numa situação de necessidade, se você tem o suficiente para si mesmo, e possui o objeto da doação em dobro, você o dá com um sentimento de amizade. Se você tem duas bananas e alguém está com fome, você habitualmente dará uma. Essa é uma forma mais elevada de generosidade porque você não é pressionado a fazê-la – ela vem do seu próprio sentimento de amizade e você não está desesperado e firmemente agarrado às coisas.

 

3 – O terceiro nível de generosidade é dar como um rei. Ao dar como um rei, você dá qualquer coisa em qualquer momento. Você dá a sua camisa. Você dá o seu último alimento para alguém que esteja com mais fome. Como não existe o pensamento precedendo a ação, você dá o melhor que tiver. Não existe nenhum apego, nem mesmo a ideia de um “eu” envolvido no ato generoso.

 

Fonte: Blog O Pico da Montanha (site: https://www.daissen.org.br )

 

A saída para estas reações mentais caóticas é ampliar a função do cérebro criativo – no hipocampo e no córtex pré-frontal – a partir de uma postura compassiva e aberta ao momento presente. Como defende o cientista e monge budista Matheus Richard (2015), ser generoso e altruísta não é apenas uma evolução do ponto de vista ético. É também a garantia de manutenção da nossa sobrevivência, caso contrário estaríamos reificando a mesma lógica hobbesiana de “todos contra todos”.

Outro budista famoso, o historiador israelense Yuval Harari (2018), que está na lista dos autores mais vendidos do mundo nos últimos anos, defende que não foi a competição ou a força que nos trouxe até aqui. Na verdade, foi a capacidade de cooperação, de tomar decisões baseadas em interesses coletivos que possibilitaram o surgimento de um terreno fértil para que a nossa espécie se sobressaísse (por outro lado, sem ética este é um problema, pois facilmente pode levar ao especismo, o que em definitivo é totalmente contrário aos valores budistas). Há, nestes exemplos todos, a observação de uma tendência à Dāna Paramita, muito embora não seja reconhecida por este nome.

Ainda sobre o mesmo assunto, Genshô sensei publicou no blog “O Pico da Montanha” que o impulso de partilhar é uma forma genuína de expressão da compaixão (entendida como a capacidade de acolher o outro e, mais do que isso, fazer algo para melhorar a vida deste). A Dāna Paramita, neste sentido, além de configurar um preceito, é também uma atitude ética e política, pois exorta o praticante a evitar ocupar a constrangedora posição de ter que ser carregado pelos outros, sem nada oferecer em troca. Como defendia Bhante Yogavacara Rahula, pela doação é possível evitar que caiamos “na tentação” de sermos mesquinhos. E a mesquinharia, em tese, é uma forma grotesca de evidenciar o quanto ainda estamos agarrados a algo, notadamente a uma identidade ‘que tem algo e que precisa preservar este algo a qualquer custo’.

Por fim, como defende monge Genshô, “a mudança tem que ser feita dentro dos seres humanos, já que todos os sistemas, os mais bonitos, as mais fantásticas constituições, as melhores leis, não funcionarão se todas as pessoas estiverem interessadas em obter benefício próprio. A mudança tem que acontecer dentro de cada pessoa, porque qualquer sistema funcionaria maravilhosamente se todos fossem honestos, generosos, bons, esforçados e pensassem no conjunto”. Construamos, então, esta realidade… e que a boa vontade seja diligentemente substituída por ações concretas.

 

Texto de Sonielson Sousa – Kidô. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.

 

 

REFERÊNCIAS

GILBERT, P. (2020). Terapia Focada na Compaixão, Hogrefe CETEPP.

HARARI, Yuval Noah (2018). Sapiens: Uma breve história da humanidade . Porto Alegre: L&PM Editores S. A.

RICHARD, M. (2015). A natureza do altruísmo. In: M. Ricard (Org.), A revolução do altruísmo (pp. 39-45). São Paulo: Palas Athena.

 

 

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