O Budismo nos convida a colocar seus ensinamentos em prática a todo tempo. Para lá de fiéis, somos praticantes e podemos incluir os ensinamentos de Buda também no cotidiano das crianças por meio da prática da generosidade.
“Dana, a virtude da generosidade”, é também conhecida como a capacidade de doação, pode ser praticada por qualquer um, inclusive pelas crianças. Integrante das “Seis Paramitas ou as Seis Perfeições”, a prática de dana envolve a habilidade de doar, não só objetos materiais, como também, nossa atenção, nossos ensinamentos, nosso tempo. Exercitar dana é uma atitude que requer desapego, considerando que quando doamos também nos abrimos para os outros. Abrimos nossas mãos tão acostumadas a agarrar tudo, a segurar forte e fazemos o movimento contrário, permitindo uma outra forma de se relacionar com as pessoas e o meio.
Do ponto de vista budista, em última análise, nós e os outros é apenas uma visão equivocada. Possuímos uma natureza muito além dessa manifestação de agora, uno com todos os seres. Dessa forma, exercitar a doação é um meio hábil para quebrar a ideia de separatividade e beneficia tanto quem dar como quem recebe. Encontramos esta verdade nas palavras da mestra Jetsunma Tenzin Palmo: “É uma alegria doar. Inclusive, isso nos beneficia mais do que beneficia o outro, porque é a mentalidade estreita que pensa “isso é meu e não dou a ninguém” que nos causa muita dor e nos impede, mesmo que possuamos muito, de realmente apreciar o que temos, porque temos medo de compartilhar com os outros de coração aberto”.
Por outro lado, se quisermos colocar esse ensinamento em prática com nossos pequenos poderemos encontrar certo grau de resistência. Quem convive com crianças sabe que a maioria delas vivencia um período de comportamentos egoístas, com prevalência do egocentrismo, quando não querem dividir brinquedos, têm ciúmes dos pais, não compartilham comida, atitudes típicas da infância. Essas características fazem parte do desenvolvimento natural do ser humano e segunda a psicologia faz parte do nosso amadurecimento e da formação da personalidade. Porém, essas atitudes não impedem que trabalhemos ações mais generosas na infância, pelo contrário, torna-se ainda mais necessário.
Considerando que vivemos na sociedade do consumo e que as crianças não estão excluídas do processo de aquisição desenfreado de serviços e de bens, trabalhar o ato de doar e de servir torna-se algo imprescindível para que elas experimentem a alegria gerada pelo desapego e pelo ato de compartilhar.
Uma boa forma de se praticar dana com as crianças é exercitar a doação dentro e fora de casa, tendo uma rotina de entrega de roupas dos adultos e das crianças, doações de brinquedos e utensílios domésticos, adoção de um animalzinho de rua, participação em campanhas que beneficiem humanos, animais e todo o meio ambiente, atentando sempre para que as crianças participem, pois poderá ser um meio valioso de conexão com o outro e de conhecer realidades diversas.
Recentemente, tive uma experiência ímpar com minha filha de 4 anos, que gostaria de partilhar aqui. Com a chegada das comemorações de final de ano, entre os anos de 2021 e 2022, um grupo de amigas, no qual me incluo, resolveu vender rifas com o intuito de arrecadar recursos para compra de material escolar para projeto de alfabetização de crianças e adultos em situação de vulnerabilidade na cidade onde vivo.
Minha filha acompanhou todo o projeto, mas o momento que mais esperava era o da entrega dos materiais. O local onde é realizado o projeto é de difícil acesso, o mesmo é executado e liderado por uma senhora aposentada chamada Eldenice. Todos nós já ganhamos muito com a experiência de se deslocar até lá e ter a compreensão de todas as dificuldades de quem vive naquela localidade. Com a minha filha não foi diferente. Ela observava atenta o trajeto, ressaltando a diferença da paisagem.
Na manhã da entrega tivemos a oportunidade de conversar com dona Eldenice e mais algumas mulheres e uma criança moradora do local. Para minha surpresa dona Eldenice ensinou para nós como praticar a doação, realizando aulas e encontros com a comunidade local, utilizando seus conhecimentos como professora aposentada. Disse ainda como procura trabalhar com as pessoas o senso de cooperação e de doação entre elas. Percebi que mesmo tendo tão pouco, a atitude de doação e de colaboração mútua é o que sustenta o projeto de ensino e parte da comunidade.
Nesse dia nós tivemos uma aula sobre dana com Dona Eudenice e com as mulheres ali presentes. Saímos todas profundamente emocionadas e, na minha experiência pessoal, a presença física do encontro, do olho a olho, de ver as pessoas dali, de verdade, fez uma grande diferença na atitude de doação e acredito que também fez toda diferença para a experiência da minha filha. Espero, depois disso, continuar esse trabalho com a força tarefa de outras pessoas e assim, criar experiências com as nossas crianças sobre a importância e a alegria que é a doação em nossas vidas.
Esse texto é dedicado a Dona Eldenice e a todos os bodisatvas invisíveis nas comunidades por todos os lugares.
Texto de Liana Oliveira Lopes Borges, auditora Fiscal do Meio Ambiente. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Referências:
https://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI304335-10448,00-E+MEEEEEEEEU.html
https://bodisatva.com.br/generosidade-primeira-perfeicao/