Podemos dizer que a revolução tecnológica mudou fundamentalmente nossa vida. Temos muito mais conforto, informação e saúde. A expectativa de vida na terra, como um todo, aumentou mais de 15 anos do início do século passado para este. Se considerarmos a classe média brasileira o aumento pode ser superior a 20 anos. Os demógrafos esperam que nossos filhos vivam, em média, 25 anos a mais do que viveram nossos avós! Sem dúvida ótimas notícias.
Entretanto, nada vem sem um custo, correto? Segundo a organização mundial de saúde, em 2019, existiam 970 milhões de pessoas com algum diagnostico de distúrbio na saúde mental, incluindo: depressão, transtorno de ansiedade generalizada (TAG), TDAH, TEA, dependência química, TOC, etc. Os dois primeiros tipos perfazem praticamente 90% dos casos.
As pessoas que convivem com algum tipo de distúrbio e que não foram diagnosticados, mas que, sem dúvida, trazem em si sofrimentos oriundos da condição, não estão incluídos nesta estatística. Estima-se que outro tanto sofra desses distúrbios, elevando assustadoramente o número para quase 2 bilhões de pessoas. Claro que não podemos atribuir todos os casos à vida moderna, mas, sem dúvida, ela intensifica estas condições.
A Organização Panamericana de Saúde divulgou que a crise de COVID-19 aumentou em 25% os casos de depressão e TAG. Nós, budistas, olhamos esses dados com profunda tristeza. Depressão e ansiedade são grandes focos de sofrimento, e sabemos que eles podem ser superados. Estou certo de que há uma boa probabilidade de você ter vivido isso ou conviver com pessoas que passam por isso agora mesmo!
Como psicanalista me preocupa muito a busca pela medicalização como uma forma de lidar com esta situação. Não sou contra o emprego das drogas, até muito pelo contrário, pois é cientificamente comprovado que elas, quando usadas com parcimônia e por tempo determinado, trazem algum alento nessas situações de sofrimento. O que me assusta é ver pessoas (inclusive adolescentes) que para lidar com a depressão e ansiedade, tomam esses medicamentos por anos a fio. O medicamento trata o sintoma, a doença e não a pessoa.
Como monge budista sei que há uma alternativa para lidar com esses desafios que a vida moderna apresenta a todos nós e essa resposta é a prática. No Zen focamos na pessoa, o trabalho é com o ser, o indivíduo, a alma, chame do que quiser, mas o foco não é na doença. O zen é compaixão, acolhimento amoroso. O mais curioso é que este acolhimento se inicia dentro de nós mesmos!
A prática é um grande “se abraçar”, um cuidado com você mesmo. Resumidamente podemos dizer que ela é composta pela meditação setada (zazen), o estudo de bons livros e textos, cursos e orientação de Mestres comprovados e a observação dos preceitos budistas.
De todas elas a prática mais fundamental é a meditação sentada. Sem ela nenhuma das outras tem muito valor. No Zen a coisa mais importante é experimentar, vivenciar a prática. A sabedoria de quem vive a prática vai muito além da sabedoria intelectual. Além disso eu lhe digo com segurança que esta experiencia é transformadora e suas raízes são profundas e permanentes. Voltarei a ela em breve.
A segunda prática importante é o estudo. Ele nos ajuda a desvendar os mistérios do Zen e, com uma orientação de um Mestre, podemos trilhar o caminho com sucesso. Isso é possível e está ao alcance de as pessoas. Muita gente, ao longo de 2.600 anos, conseguiu, por que não conseguiríamos?
Digo que a prática está ao alcance de todos, mas não de qualquer um, ela demanda esforço, vontade e dedicação. Aí entra a importância de um bom Mestre. Ele nos manterá no cainho, incentivando e guiando. Além disso teremos a oportunidade de interagir e conviver com outros praticantes, formando um grupo de apoio, uma rede de suporte que nos mantêm firmes na prática. A este grupo damos o nome de Sangha, uma das joias do budismo.
Finalmente, temos os preceitos budistas. Eles não são muito diferentes dos preceitos cristãos, os Dez Mandamentos, tão bem arraigados em nossa cultura. Este assunto é vasto e, para este artigo, gostaria de condensá-los todos em apenas dois pontos fundamentais, colocando-os da seguinte forma:
- Conduzir nossos atos de forma a reduzir ao máximo o sofrimento de todos os seres (nosso próprio e dos outros).
- 2- Entender que estamos aqui para servir, sempre fazendo o melhor que podemos fazer.
Quando observamos estes aspectos e fazendo a meditação diligentemente, a vida passa a ser vivida de uma forma mais completa e significativa. Em primeiro lugar a prática vai trabalhar com nossa autoestima. A meditação sentada é um carinho, atenção, cuidado de você para você mesmo. É se dar um tempo e se permitir ser o que você realmente é sem cobranças e julgamentos.
Depois, a ela vai nos permitir ver, e entender, que passamos muito tempo buscando guerrear com a vida, resultado da construção, em nossa imaginação, de uma realidade que não é a verdadeira. Nossa mente desenha uma realidade que a vida teima em não aceitar. A vida tem a péssima mania de derrubar todos os nossos castelos de areia.
A realidade é que a vida sempre é muito diferente do que sonhamos ou desejamos. Ai, quando a vida não acontece como queremos, ou viramos guerreiros, eu contra o mundo, ou vítimas, o mundo contra mim. Vivendo nesta situação, por anos a fio, como não cair em depressão ou sofrer de ansiedade?
A magia do Zen pode ser lenta e silenciosa, mas é certa. À medida que nos sentamos, e com o tempo de prática, vamos criando um “lugar” onde podemos simplesmente relaxar, e ver, desapegadamente, as cobranças e expectativas, nossas e dos outros, que nos empurra de um lado para outro, em uma corrida caótica. Deste lugar podemos observar esse movimento sem sentido e descobrir que elas são apenas pensamentos, ilusões por nós construídas, inerentemente desprovidas de força ou realidade. Nós é que lhes damos esta força e atribuímos realidade.
Desta posição surge mais autoconhecimento, e, por que não dizer, autorreconhecimento. A prática aprofunda este “lugar” e ele se torna um grande suporte, que nos permite tratar os medos, ansiedades e frustrações a contento. Conseguimos lidar com os desafios com muita calma e respeito, sem nos machucar ou machucar os outros.
O Zen oferece uma prática incrivelmente transformadora, mas não promete um caminho fácil e rápido. Ele solicita, em troca, vontade, determinação, dedicação e, principalmente, abertura para lidar com os nossos mais íntimos medos e desejos. Neste ponto a psicanálise se prova ser uma grande aliada da prática, ela nos aparelha para melhor lidar com os “lugares escuros” da nossa mente.
Finalmente, gosto sempre de dizer que a prática não é, de forma alguma, achar uma alternativa à vida, uma fuga ou refúgio para nossos problemas e desafios. O Zen nos convida a viver a NOSSA vida tal qual ela é, bem e em harmonia com tudo e com todos, sabendo que nada é estático tudo muda e que, como diz Mestre Dogen, ela passa muito rápido, um dia nossa realidade mudara radicalmente, não estaremos mais aqui… assim não perca tempo, pratique agora.
Texto escrito por Monge RôTsû san, do Templo Zen das Alterosas.