Autoria: Rafael Taishin (泰心)
Revisão: Mokugen Rōshi, Abade do Templo Zen das Alterosas
Em algum momento de nossas vidas, cedo ou tarde, iremos nos deparar com uma realidade: só existe o agora, onde podemos nos repousar. Esta verdade é inevitável e não uma decorrência de nossos egocentrismos e ilusões. Isso porque, seja por necessidade gerada pela angústia ou pelo aprofundamento de nossa percepção sobre o mundo (sem um processo angustiante), nos deparamos conosco mesmos em meio ao universo e à passagem do tempo. Em algum momento poderemos observar nossas imaginações sobre a realidade, que nos coloca no centro do mundo e de seus acontecimentos. Na oportunidade, veremos que ficamos absortos em nossos pensamentos, ansiedades ou delusões e que nunca nos demos conta como sempre nos colocamos como a coisa mais importante de todas.
É como diz a expressão, achamos que “o mundo gira ao nosso redor”, mas, na oportunidade correta, concebemos que o mundo continua a “girar” independentemente de nossas crenças, vontades ou problemas. Justo ou injusto, certo ou errado, bom ou ruim, não importa, pois a sociedade continua a funcionar da forma que está e as pessoas continuam a trabalhar, nascerem e morrerem, o dia começa e termina, o sol nasce e se põe e as fases da lua se alternam. Assim, ver-nos-emos como um pequeno grão de areia em um grande deserto que está em constante transformação pelos fortes ventos; o mundo não “gira ao nosso redor”: somos apenas uma pequena parte de um universo colossal de fenômenos, pessoas, vontades e ações diversas.
Notemos como a realidade diante de nossos olhos, corpos, sentidos e mentes é um momento passageiro, um segundo após o outro em um mundo em constante transformação. Se tivermos essa consciência, automaticamente também teremos de perceber o “agora” como indissociável do “aqui”. Concluiremos que eles são reais e efêmeros. Neles as coisas somente são como são, queiramos ou não. O mundo simplesmente é. Aceitarmos esta realidade é uma oportunidade para nos repousarmos de nossas angústias internas. Ao nos entregarmos ao “aqui e agora”, podemos descansar de toda uma busca com que nos acostumamos durante nossas vidas, ou seja, da tarefa incansável e inatingível que nos atribuímos: moldar o mundo à nossa vontade. Contudo, depositarmo-nos no “aqui e agora” não é tão “agradável” ou “simples”.
Para que façamos essa entrega, necessitamos de realizar, ao mesmo tempo, uma abertura de nós mesmos e ter fé no presente. Parece paradoxal ou contraditório, mas para isso precisamos, ao mesmo tempo, crer e “abandonar” a nós mesmos. Isto é uma fé na entrega, como se nos jogássemos de um precipício tendo a certeza de que sairemos bem. No ocidente, principalmente nas religiões judaico-cristãs, acostumamo-nos a rezar, orar e, como normalmente é dito, “entregar a nossa vontade a Deus”. Apesar de no budismo não crermos em uma entidade supranatural e senciente capaz de tomar decisões que governe as nossas vidas, tanto cristãos quanto budistas têm, em seus corações, a mesma diligência: de se entregarem por completo. Para os cristãos, a fé em Deus implica “abandonar” a si mesmo, desapegando-se dos egocentrismos, e reconhecendo que eles não moldam a realidade, mas sim algo muito maior do que a vontade individual. Os budistas, por sua vez, têm a exata mesma compostura, pois abandonam seus egocentrismos por meio da fé, desta vez direcionada para o “’aqui e agora”. Portanto, devemos depositar nossa fé, nosso vigor, ou nossa energia vital neste momento, entregarmo-nos completamente ao universo, à realidade. Este exercício de fé é o mesmo que colocarmos a presença de nossa mente-coração na realidade diante de nós, conhecido como nen (念).
Esse exercício de observação e de entrega à realidade é feito na atenção plena do zazen. É no zazen que temos de nos deparar conosco mesmos diante do universo, no “aqui e agora”. Nessa observação profunda (agora não mais com o espanto da descoberta de que o mundo não “gira ao nosso redor”) veremos a existência inegável e simultânea de duas “figuras”: o eu e o outro. Ou seja, ainda em uma visão limitada percebemos que no presente há o “dentro” e o “fora”. Nessa oportunidade, devemos observar como os nossos pensamentos, desejos surgem condicionados à dicotomia/dualidade e como em toda nossa vida agimos, falamos e pensamos limitados a essa dualidade.
Ao percebermos essa dicotomia, estamos tomando consciência de uma ilusão que nos foi real durante toda a vida, o que é essencial para que possamos diluir esta limitação. Podemos, na ocasião correta e com a prática constante, nos perguntar “qual é a resistência entre o ‘fora’ e o ‘dentro’?”. Assim, com a prática vemos a existência de uma barreira entre o “eu” e o “outro” e poderemos investigar, aos poucos, do que é constituída essa muralha, quais são seus tijolos e de que é feito seu concreto. No zazen, vemos o que vem de fora e nos causa incômodo, assim como o que e o porquê aquilo que nos chega pelos sentidos, alcança nossa consciência (dentro) e porque talvez nos deixe desconfortáveis. Percebemos essa barreira ou muralha, pois ao surgirem negações, incômodos, desconfortos, irritabilidade, frustrações, etc. com a realidade, temos um sinal da resistência à unificação desses antagonismos.
Nossos órgãos dos sentidos percebem sons, cheiros, cores, sabores, toques e formam ideias sobre estas percepções. A seguir nos filiamos ou nos afastamos dessas ideias ou sensações. Essa resistência é realizada, primeiramente, pelos nossos instintos de sobrevivência e autopreservação, seja do nosso corpo ou da nossa mente. Em segundo plano, criamos barreiras para protegermos o “eu” (ou a ideia que temos dele) das ameaças do exterior. Observar esse dualismo significa conhecermos nossos condicionamentos, nossas ideias, nossa racionalização e nossa nomeação do “outro”. Também nos é dada a oportunidade de percebermos o que é que denominamos “fora” e “dentro”. Como nos definimos e aquilo em que acreditamos que nos define são expostos: nossas características, aprendizados, preconceitos e traumas.
Aos poucos, podemos observar como o “fora” influi no “dentro” e como o “eu” (dentro) influi no “outro” (fora). Essa parte da prática é o que Dōgen Zenji disse como “Estudar o Caminho budista é estudar a si mesmo…”. Ao mesmo tempo, porém, também concluímos que, apesar das resistências e barreiras que construímos entre os antagonismos, algo nos alcança e nos toca por dentro. É inegável, portanto, que o “fora” interfere no “dentro” de alguma forma, balançando-o e interferindo naquilo que acreditamos ser o “eu”. Mas essa via não é de mão única, pois conseguimos notar como aquilo que chamamos de “eu” interfere no “outro”, ou até mesmo interfere a nossa percepção do que está de fora.
Então, em mais um momento oportuno da prática reconheceremos as fraturas dessa fronteira, onde estão as aberturas da muralha que impomos entre esses dualismos. O caminhar consiste em concluir que a barreira e suas fraturas não somos nós, mas sim falam sobre nós e, portanto, estão lá por alguma razão. Aceitarmos esses condicionamentos é também aceitar que as fraturas e aberturas que possibilitam o intercâmbio do que está “dentro” e “fora” não são falhas, mas sim oportunidades de espiar o horizonte. O que antes soava como uma ameaça à nossa fortaleza, agora pode ser trabalhado para que a percebamos como uma brisa leve que flui de um lado para outro, ao ponto de que em algum momento possamos transformar o que antes chamávamos de “buraco” em uma “janela”.
No zazen, esta brisa leve que nos refresca e nos alivia do calor é a respiração. É pela respiração abdominal que realizamos uma troca constante entre o que está “fora” e o que está “dentro”. Vejamos que quando inspiramos, aquilo que está “fora” se torna “dentro” e, quando expiramos, transformamos o que está “dentro” em o que está de “fora”. Portanto, quando estamos imersos no que meu mestre Mokugen Rōshi chama de “concentração visceral”, não podemos dizer que existe diferença entre o interior e o exterior. Deixamos de focar nossa atenção nas barreiras criadas pelos nosso ego, para apreciarmos esta brisa acalentadora.
Concluímos que esse ir e vir não nos coloca em ameaça, mas nos torna livres. Então por meio desta percepção corporal nos esquecemos das barreiras, ou nas palavras de mestre Dōgen, “esquecemos de nós mesmos” e poderemos nos entregar ao livre fluxo, abrindo portas e janelas naquela muralha. Essa liberdade experienciada é a aceitação da realidade como ela é em sua inteireza, sem condicioná-la às delusões de nossos egos, sem transformá-la em uma miragem e sem nos inquietarmos com ela. O exercício da concentração visceral gera a entrega do “eu” à fé, que mencionamos anteriormente, no presente.
Façamos a prática de aprofundarmos a nossa respiração até o infinito, onde nada é mensurável e onde deixamos de perceber o “agora” como um intervalo no tempo e o “aqui” como um lugar no espaço. O “aqui e agora” se torna toda e a única realidade existente, sem nome e sem identidade. No infinito não há janelas nem portas em nossas barreiras, sequer barreiras, nem “dentro” nem “fora”, nem Eu, nem Não-eu. Deixamos “cair corpo e mente” e entregamo-nos à última realidade, ao universo onde verdadeiramente podemos repousar.
Texto de Rafael Taishin. Praticante no Templo Zen das Alterosas.