Budismo e Questões de Gênero: Sementes da Igualdade

 

As questões de gênero se tornaram foco de fortes discussões públicas no Brasil. Extremismos políticos e ideológicos marcam esses debates alimentados muitas vezes por notícias falsas (fakenews) e discursos de ódio. Aqui e ali professores são denunciados e, por vezes, perseguidos por discutirem essas questões em sala de aula, ainda que estejam previstas nos currículos escolares. Espalham-se pelo país tentativas de criar leis que impeçam que esses debates ocorram em ambientes escolares. Enquanto isso, o problema dos feminicídios fica mais evidenciado em razão de uma ênfase cada vez maior da imprensa nas estatísticas de mulheres assassinadas e nas histórias que acompanham essas tragédias. Um caso simbólico de toda a polêmica que passou a envolver as questões de gênero no país foi a visita da pensadora Judith Butler ao Brasil, em novembro de 2017.  Para além da recepção aos gritos de “bruxa” no aeroporto no momento de seu desembarque, circulava na internet desde o mês anterior à sua vinda um abaixo assinado buscado apoio para impedir sua presença no Brasil alegando que a pensadora promove um tipo de desconstrução da essência humana a partir da desconstrução da sexualidade.

 

Mas, afinal, porque tanto medo de falar do assunto?

Em resumo, o que Butler e as teorias de gênero defendem, é que ser “homem” ou ser “mulher” é uma fantasia que nos é atribuída quando nascemos e que usamos para operar no teatro da vida social. Uma performance. O corpo físico não vem com uma programação genética que vai obrigar quem nasce em um corpo masculino a viver como socialmente se espera que um homem viva, e o mesmo vale para as mulheres.

Como se pode ver, o que essas teorias indicam – e que não é uma grande surpresa diante do acumulado de conhecimentos da ciência antropológica até o momento – é que os seres humanos não possuem uma essência masculina ou feminina, mas que performar como homem ou como mulher depende uma combinação de fatores que se agregam para formar nosso “eu”.

 

E o Budismo?

As rígidas estruturas hierárquicas de gênero e de classe social eram uma característica relevante do tempo e lugar do surgimento do Budismo. Com uma perspectiva revolucionária de pensar a partir da não diferenciação entre os seres – isso há mais de 2500 anos quando nem se sonhava com o surgimento da ciência –  Shakyamuni, um homem e da classe nobre, ao despertar das ilusões e se tornar Buddha, raspa seus cabelos eliminando as diferenciações aparentes que o marcavam e assumindo uma aparência que o tornava muito semelhante a todos na sangha. Sem impor e a partir do exemplo, o Budismo nascente desafia as estruturas mentais dominantes da época, que preconizavam – como hoje – que as essências são individuais e imutáveis.

Apesar do caráter revolucionário inicial do Budismo em tratar as questões de gênero, as mulheres não foram automaticamente elevadas às condições de igualdade com os homens e os problemas existiam. Sendo proposto por seres de seu tempo, também o Budismo vem, ao longo dos anos, avançando no fim das diferenciações de gênero dentro da comunidade.

Se no plano da aparência, em um primeiro momento é necessário até um olhar mais atento para diferenciar um monge de uma monja em função dos cabelos raspados, cuja finalidade é, entre outras, a de estabelecer a não diferenciação, por outro, as monjas tiveram de empreender lutas importantes para alcançar os espaços de igualdade dentro da comunidade budista.

A diferença, entretanto, é que na própria raiz do Budismo está o germe da compreensão das questões de gênero, que nos ensina a tratar todos com igualdade e sem distinções. A melhor lição a esse respeito vem do próprio Shakyamuni Buddha. Quando questionado por seu discípulo Ananda quanto ao fato de que se todos os seres da terra são um, não haveria motivos para não permitir às mulheres o mesmo direito de se tornarem monjas como aos homens, Buddha recua no seu entendimento e aceita que as mulheres ocupem essa função, ainda que com regras diferenciadas que, ao longo dos séculos, vem sendo superadas na direção de uma comunidade cada vez mais harmônica e não diferenciada.

Afinal, como diz a Monja Coen:

A Iluminação, o Despertar, não é suficiente para eliminar preconceitos culturais, mas facilita sua percepção e transformação. ” (2005, p.46)

 

Texto elaborado pela equipe da coluna História e Sociedade.

 

Fontes:

BUTLER, Judith. Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil.https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobre-o-fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml

https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/11/filosofa-judith-butler-e-agredida-em-congonhas-antes-de-deixar-sao-paulo.html 

https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/noticia/2017/11/filosofa-judith-butler-e-agredida-em-congonhas-antes-de-deixar-sao-paulo.html

MONJA COEN. Revista de Estudos da Religião. ISSN 1677-1222. Nº 2 / 2005 / pp. 46-57

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