Nesta edição tivemos o prazer de entrevistar o Monge Chudô, monge zen budista, que, gentilmente, compartilhou conosco um pouco de sua história como monge, bem como sua experiência como Tenzo no mosteiro Zen e trouxe-nos significativos ensinamentos para refletirmos sobre a relação da alimentação com o Budismo.
Monge Chudô, aluno de Genshō Sensei e monge da Comunidade Daissen, realizou seu treinamento monástico no Mosteiro de Sôjiji-Sôin, em Wajima, no Japão.
Kôhô san: Conte-nos um pouco sobre o que levou o seu envolvimento com Zen? Como surgiu a sua vocação monge?
Monge Chudô: Apesar de ter sido batizado na igreja católica, nunca fui uma pessoa religiosa e minha família não frequentava igrejas, tanto que minha mãe não me forçou a fazer a primeira comunhão ou qualquer outra atividade cristã. Já adulto li alguns livros sobre budismo, mas creio que ainda não fosse o momento. Acredito que o interesse se fez presente quando fui para São Paulo iniciar meu treinamento como Uchi Deshi¹ de Kawai Sensei. Kawai Sensei era budista da Seita Shingon e muito admirador do Zen, vez ou outra eu o via meditando e incontáveis vezes sentamos frente ao seu Kamidana² para recitarmos Hannya Shingyô e outros sutras do Shingon. Quanto a ser monge, não foi ou é uma vocação, como infinitas coisas na vida, foi circunstancial, assim como costurar o rakusu. Comecei a sentar, fui me envolvendo com a sangha, participei de vários sesshin, costurei rakusu, costurei o manto, fui treinar no Japão e aqui estou eu, monge. Fui arrastado pela corrente, como fala o monge Genshô, mas não procurei por vocação, não tive uma epifania como gostam de falar alguns padres católicos ou mesmo monges. Não existiu uma mensagem ou um sinal como “Estava lendo um livro de computação e caiu do livro uma foto de Buda e nesse momento soube que deveria ser monge”. Cheguei a vestir o manto como resultado dos “sins” e “nãos” que dei na vida, foi circunstancial, uma casualidade.
Kôhô san: Seu interesse por alimentação veio antes do seu envolvimento com o Zen Budismo?
Monge Chudô: Sim, sou vegetariano há pelo menos 25 anos e vegano há 10 e não foi um envolvimento pela ética animal, isso veio depois, foi um interesse egoísta, pela minha saúde. Comecei a ler sobre os malefícios para a saúde dos derivados de animais e um dia eu disse “Deu, chega de envenenar meu corpo” e desse dia em diante nunca mais comi carne.
Kôhô san: Como o senhor descreveria o papel do Tenzo nos templos e nos retiros?
Monge Chudô: O Tenzo é sem dúvidas a personagem mais importante dentro de um mosteiro. Enquanto outros monges estão em zazen, fazendo cerimônias, samu ou participando de outras atividades, o Tenzo está na cozinha preparando as refeições e, detalhe, muitas vezes ele também tem que fazer tudo isso e cozinhar. Só por isso já seria difícil ser Tenzo, mas ele deve também estar a par de todas as atividades diárias do mosteiro para preparar a comida apropriada, nem muito pesada que cause desconforto e nem muito leve que não propicie disposição suficiente para as atividades. Na maioria dos mosteiros há o Tenzo e o Tenzo Roshi, que é o verdadeiro responsável pela cozinha e pelo treinamento do Tenzo oficial do mosteiro e dos monges noviços que estão realizando treinamento no mosteiro. Foi o Tenzo Roshi quem me ensinou como preparar o Ôkayu e dispor as tigelas com temperos para as refeições. Mas foi Kôhan San, o Tenzo, quem me deu as principais dicas e ensinamentos do dia-a-dia da cozinha, me ensinou o preparo de outros pratos e a fazer as conservas de Daikon e broto de bambu.
Kôhô san: Qualquer um pode ser Tenzo?
Monge Chudô: Sim, qualquer um que goste de cozinhar, mas veja, ser Tenzo não é o mesmo que cozinhar em casa ou em restaurantes. Quando estive em Sôjiji-Sôin, pelo menos uma vez no mês, durante cinco dias, eu trabalhava na cozinha com o Tenzo. Além de preparar o Ôkayu³ da manhã, tinha que limpar toda a cozinha e participar das atividades ordinárias com os outros monges, tinha que participar dos treinamentos para cerimônias diárias e as eventuais. Um Tenzo não entende somente da cozinha, ele tem que estar a par de todo o ritmo do mosteiro, tem de saber realizar todas as cerimônias e em todas as funções, um Tenzo é Tenzo, Doan, Ino, Fukudô, Jônin, Jisha, Jikidô, Shosu, Jikô e motorista.
Kôhô san: O que é ôryôki?
Monge Chudô: É um conjunto de tigelas, hashi, setsu e colher embrulhados em um pano numa técnica chamada Furoshiki (風呂敷), que é usado pelos monges em refeições formais.
Kôhô san: Poderia falar um pouco sobre a prática do Ôryôki, a ordem das tigelas, os alimentos que vão em cada uma delas durante as refeições e sua etiqueta.
Monge Chudô: Falar sobre Ôryôki de forma reduzida e sem se aprofundar seria quase uma heresia. O Ôryôki merece um artigo científico sobre suas potencialidades como pratica espiritual. Mas vamos lá; Ôryôki é composto por uma tigela maior, a Cabeça de Buda, onde é servido o Ôkayu ou o Gohan e duas menores onde podem ser colocados os temperos, no caso da refeição matinal ou Misôshiro, e legumes cozidos, no caso de almoço. Essas tigelas são colocadas da esquerda para a direita. Ainda existem duas tigelas rasas menores onde se colocam os temperos ou o Daikon, conserva de nabo, em caso de refeições ainda mais formais. As refeições formais são feitas em silêncio e apreciando o momento e a comida, sempre com sentimento de gratidão por todos os seres envolvidos para que a refeição chegasse à mesa.
Kôhô san: Dá para adequar outros tipos de comidas, sem ser da culinária japonesa, para utilizar o Ôryôki?
Monge Chudô: Com certeza. Aqui mesmo na Daissen fazemos isso, nas refeições matinais trocamos o Ôkayu pelo mingau de arroz integral, o Daikon pelo pão e servimos também salada de frutas.
Kôhô san: Qual a conduta do praticante zen ao preparar suas refeições no dia a dia, teria que ser a mesma do Tenzo em um templo ou em um retiro?
Monge Chudô: Muito difícil, para não dizer impossível, a menos que tenhamos todo o tempo do mundo para isso. Nossa realidade não é a mesma de um mosteiro, temos compromissos diversos que exigem nossa atenção, muitas pessoas nem tem tempo de cozinhar sua própria comida e se veem obrigados a comer em restaurantes de fast food. Quando eu era Tenzo, acordava as 03:30h, fazia o primeiro zazen as 04:00h e saia correndo do Zendô para a Tenzoryô (cozinha) para começar a cozinhar, mas na noite anterior o arroz já tinha sido selecionado, medido e lavado, as tigelas já estavam separadas e os temperos também e a refeição era as 07:30h. Mas, imaginemos que você seja uma pessoa com tempo e espaço para sua própria horta, então poderia colher o nabo e os cogumelos frescos com todo o cuidado e respeito com os possíveis seres que pudessem sofrer nesse momento. Poderia, reverentemente, lavar o arroz e hortaliças. Exercitando a plena atenção poderia abrir o Ôryôki e fazer uma refeição incluindo todos os seres nesse sentimento de gratidão por estar vivo, ter um lar, um trabalho, pessoas a sua volta que o amam, uma refeição e um local para treinar sua mente.
Kôhô san: O que devemos fazer com as sobras dos alimentos? Da mesma forma que recitam os versos de agradecimento antes de comer tem algum verso para recitar enquanto cozinhamos e despois quando descartamos os alimentos? Qual é a intenção correta e o pensamento correto nesse caso?
Monge Chudô: Bom, Em Sôin não existem sobras. É responsabilidade do Tenzo fazer a contagem das pessoas e o cálculo preciso da quantidade de arroz para o número de pessoas. Em Sôin, nas refeições formais regulares, os Jônin comem junto com todos, apenas o Tenzo espera e nesse caso se sobrar comida o Tenzo deve comer para que nada seja jogado fora. Quando havia sesshin as refeições eram feitas no Sôdô e nesse caso os Jônin comem junto com o Tenzo após todos comerem.
Kôhô san: Poderia nos dizer os versos?
Monge Chudô: Em Sôin não havia um verso especial para isso, porque como falei, não havia comida para ser jogada fora, mas o pensamento com relação a isso na nossa vida diária deve ser o de Mottainai, um conceito japonês que pode ser traduzido como “não desperdício” e que não se refere somente à comida. Uma pessoa que tenha maus pensamentos, que sinta ódio, rancor ou mesmo tenha ações de desrespeito com a Vida* e com a vida de outros seres estaria cometendo um desperdício sob a ótica do Mottainai. Igualmente, pessoas que acumulam coisas ou jogam fora coisas que poderiam servir para outras pessoas também cometem desperdício.
A ideia durante nossas refeições e mesmo nossa vida ordinária é que nos lembremos o tempo todo que não estamos separados ou desconectados, usando um termo bem atual, mas sim que somos o Vazio. Não gosto nem mesmo da ideia de sermos partes de algo maior, não somos parte, somos o Todo, somos o Vazio e cada ato de desrespeito ou desperdício age sobre o Todo e tem suas implicações.
Entrevista realizada por Elaine Kôhô. Praticante da Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Idealização e roteiro elaborados pela equipe da coluna Alimentação.
1 – Literalmente o aluno do lar, aluno interno. Aquele que mora com o mostre e lhe presta serviços enquanto recebe ensinamentos, nem sempre óbvios.
2 – Local onde são colocadas as imagens de Buda ou das entidades relativas a religião, assim como velas, incenso, flores, água.
3 – Papa de arroz sem temperos.
*Observação feita por monge Chûdô: “Gosto de escrever Vida com letra maiúscula no sentido de Vazio, do Uno, da Totalidade, para diferenciar da vida individual, da manifestação fenomênica de cada ser.”