Quando fui morar no mosteiro tailandês, não sabia falar tailandês direito, então falava tudo errado, entendia mal o que as pessoas falam, você fala e as pessoas não entendem, tem que repetir dez vezes, tem que fazer sinal com a mão. As pessoas falam: “faz aquilo ali” e você entende mal, faz outra coisa, que não era o que a pessoa pediu; você vai vivendo desse jeito e o resultado final é que as pessoas começam a perceber e enxergar você como uma pessoa burra, porque o resultado final é o mesmo, você ser burra e você não conseguir entender o que as pessoas falam, o resultado prático é que quase o mesmo, na verdade. Para elas você é burro, elas pedem e você entende mal, elas falam e você não entende, fala para você fazer uma coisa e você faz outra. Quando eu percebi que as pessoas ao redor tinham a impressão de que eu era burro, nossa isso machucou para caramba, foi duro! Eu não sabia que eu tinha essa vaidade, essa vaidade de “eu sou inteligente”. Eu tinha essa vaidade e não sabia, não tinha essa percepção. Na verdade, pensando no passado, era meio que obvio que eu tinha esse apego, que eu tinha essa vaidade, mas era uma coisa que eu não computava, não dava importância.
Vamos supor: quando removem o seu acesso à droga, a droga que é o prazer de “eu sou inteligente, as pessoas me admiram”, eles tiram esse prazer, você cai completamente, é só personagem. A sua mente cai em completo caos, mas tendo a visão da prática, tendo visão do Dharma, tendo visão do que está sendo feito, você consegue persistir e falar “ok, na verdade é bom que isso tenha acontecido, agora eu vou poder me livrar desse defeito”. Se isso não tivesse acontecido talvez até hoje eu estaria nessa fantasia, então, na verdade, é vantagem, como o Buda dizia! Buda dizia que deveríamos ter para com a pessoa que nos aponta o defeito a mesma estima que temos para com a pessoa que nos aponta um tesouro escondido. Quando uma pessoa aponta um defeito nosso, deveríamos ter tanta gratidão por ela como teríamos gratidão por uma pessoa que nos aponta um tesouro escondido. Então quando enxergamos algo desagradável na nossa personalidade, devíamos ficar felizes que agora enxergamos, e podemos resolver.
Antigamente isso era um ponto cego, eu era vítima disso e não tinha o que fazer a respeito, você só consegue trabalhar em algo quando consegue perceber a presença daquilo, enquanto está cego, não consegue resolver! Você precisa enxergar o problema para conseguir resolver. Então, na verdade, é uma ocasião para ficar feliz e falar “que bom que eu enxerguei isso, agora eu posso resolver esse problema. Antigamente esse problema existia e eu não tinha acesso a ele, agora tenho acesso, agora consigo enxergar o que está acontecendo. Agora é só trabalhar, ter paciência, persistência e vencer”. Com o tempo fica divertido, vence uma vez, vence duas vezes, vence três vezes, quatro, cinto, seis, e você vira o jogo, não tem mais medo da sua própria mente, não tem mais medo das kilesas.
Em uma época que tinha uma cabana no fundo do mosteiro, que o pessoal falava que era assombrada, tinha fantasma e quando eu ouvi falar, eu disse: “é lá que eu vou”. No mesmo dia peguei minhas coisas e fui morar naquela cabana, fiquei morando lá e esperando para sentir medo. Você sente prazer nesse embate, sentir prazer em vencer as tendências mentais, vencer as obsessões mentais. Fiquei lá uns três dias e fui embora porque não tinha fantasma nenhum, na verdade, era uns lagartos bem grande que tinham lá e faziam barulho, eles andavam por baixo do telhado e faziam barulho. Faziam um barulho bem diferente e até entendi porque as pessoas achavam que era fantasma, porque era um barulho meio curioso; então as pessoas não conseguiam identificar o que era e achavam que era fantasma, mas eu fui e olhei e: “ah é lagarto, então vou embora, vou ficar aqui para que. Eu vim aqui para ver fantasma, não tem fantasma eu vou embora”.
Ajahn Ana sentia muita sonolência e ia sentar no alto da torre do sino, pois se ele caísse no sono, ele cairia e morreria, então para vencer a sonolência, ele usava o medo de morrer, “se eu cair no sono, eu vou morrer, então não posso dormir”; sentava, varava a noite sentado e usava o medo de morrer como recurso para não cair no sono. Até o dia que ele percebeu que não tinha mais medo, ele podia sentar no alto, na beiradinha e não sentia medo: “então não serve, vou voltar para cabana, vou voltar para meditar na cabana, isso aqui só dá certo se houver medo, se não houver medo não tem porque fazer isso”.
Às vezes, a prática é justamente esse embate, a maioria das pessoas vem praticar querendo fugir dos problemas, mas na verdade deveria praticar para enfrentar os problemas. É como uma guerra, a guerra que você não vence… as pessoas: “bom, eu quero vencer a guerra, eu quero que acabe a briga, eu não quero briga”, só que às vezes o método para que não haja briga é enfrentar o inimigo! Você enfrenta e vence. Pronto agora acabou a briga. Você não quer brigar, então você foge o tempo todo porque, afinal de contas, não quer briga, então vai fugir! “Se eu não quero briga e o inimigo está para cá e eu tenho que ir para lá”, ter que ir para o lado oposto do inimigo, você evita briga, mas nunca vai descansar, porque o inimigo vai estar sempre no seu encalço, você está sempre fugindo, foge 500 metros, foge 2 km; amanhã tem que fugir mais 2, porque ele continua vindo, então você nunca descansa de verdade, está sempre com medo, sempre dormindo com olho aberto, sempre preocupado com o amanhã.
Se você quer paz, tem que vencer o inimigo, derrotar, e aí sim a paz estará estabelecida de verdade e não a paz precária, uma paz firme e verdadeira. Ao contrário do que a intuição das pessoas diz, às vezes, o método para encontrar a paz é enfrentar a perturbação, o método para encontrar a felicidade é enfrentar o sofrimento, ou também como Ajahn Chan costumava dizer: “a limpeza está bem ali na sujeira, bem onde está sujo, ali está a limpeza. Se você remover a sujeira, a limpeza já estará ali”. Então a pessoa fala: “ah eu quero limpeza, então vou sair daqui porque está sujo”, se você quer limpeza, você trabalha bem aqui, bem onde está sujo, é ali que vai surgir a limpeza. Por trás da sujeira está a limpeza e da mesma forma o bem-estar está bem atrás do mal-estar. Se você quer alcançar o bem-estar tem que atravessar o mal-estar, porque ele está bem atrás.
As pessoas acham que para encontrar bem-estar tem que ir para montanha, ir para o Tibete, tem que para o altar “não sei o que lá”, tem que fazer cerimônia para tirar o mau karma, na verdade está tudo bem ali dentro de você, é só você parar de ter medo de olhar para si mesmo, parar de ter medo de si mesmo, aprender a trabalhar consigo mesmo; está tudo ali o tempo todo, nunca esteve em lugar nenhum, mas as pessoas não têm percepção disso. É como eu falo, quando a pessoa vira monge tudo aquilo que era fonte de bem-estar dela é removido, então uma pessoa tem um limite de quanto tempo ela aguenta antes de desistir, antes de entrar em colapso. Geralmente o que se observa é dois anos, no máximo três, em geral muito menos que isso, em geral no primeiro ano a pessoa já desiste. Se ela não consegue encontrar bem-estar, se não consegue ter alguma forma de sucesso com a prática dela, se não consegue pacificar, desenvolver saúde mental, desenvolver bem-estar que vem de dentro de si mesmo, não bem-estar que vem de fora, se não consegue encontrar essa fundação, então é uma questão de tempo, é só esperar mais alguns meses que ela vai desistir, não tem como sobreviver a isso, não consegue suportar. Mesmo que às vezes ela não desista da vida monástica em si, mas desiste de praticar o Dharma, então ela fica só estudando livro e fazendo outras atividades, construindo mosteiro, escrevendo livro, traduzindo textos e etc. Mas em geral as pessoas desistem mesmo, largam a vida monástica e volta para vida laica, então não é o que as pessoas imaginam, por isso que alguns mosteiros para novatos, para quem está começando a vida monástica é bom que tenha muito trabalho para fazer, manter as pessoas ocupadas, que a maioria das pessoas não tem saúde mental suficiente para estar consigo mesmo sem distração.
Monge novato é colocado para trabalhar, para carregar peso, limpar banheiro, ou faz como Ajahn Chan fazia: “essa areia que está aqui, leva ela para lá”; uma semana depois: “pega essa areia que está aqui e devolve ela para lá”; precisa trabalhar, porque se não der algo para eles fazerem começam a surtar. Manter o pessoal ocupado de alguma forma até conseguirem ter mais um pouco de habilidade em lidar consigo mesmo, então podemos dar mais oportunidade para fazerem retiro, ficarem em reclusão, morar na floresta, morar na caverna, sair em peregrinação. Mas no começo não é muito bom. As pessoas querem virar monge e: “queria para o mosteiro que isso é muito pacifico, que eu não tenha nada para fazer, que não tenha barulho”, mas nem sempre isso é o ideal. Então perguntaram: “na nossa religião a gente enxerga o contato, o relacionamento com as pessoas, como uma forma de pratica espiritual. Que você progride através do relacionamento com as demais pessoas. Como é isso no Budismo? Vocês se isolam? Parece que é o oposto. Porque que no Budismo você tem que se isolar” e eu disse: “não, você não tem que se isolar! Depende do que você está pronto para fazer, se você já passou dessa etapa. Veja, a iluminação não está nos outros, a iluminação está em si mesmo. A iluminação é uma busca interior, não é uma busca exterior! ”. Não vamos encontrar a iluminação num filho, numa filha, numa casa, num emprego, numa profissão, numa carreira. Não é ali que se encontra iluminação! A iluminação é algo que você encontra dentro de si mesmo, então cedo ou tarde você terá que trazer essa busca para dentro, quando isso irá acontecer depende de cada um.
Algumas pessoas ainda não estão prontas para isso, não tem as qualidades necessárias para fazer isso, então elas tentam progredir de alguma forma ainda utilizando o mundo exterior, ainda utilizando os relacionamentos, as atividades, os projetos, as coisas do mundo, então a pratica dela ainda está conectada com o mundo exterior, porque ela não tem ainda as qualidades necessárias pra lidar consigo mesmo; lidar com o exterior é mais fácil para elas, o interior ainda é uma coisa muito assustadora, muito sutil e não conseguem ter acesso ou então tem um medo terrível, tem muito medo de olhar para si mesmo, ou não conseguem suportar a visão de si mesmo, é o que acontece com a maioria das pessoas.
Como falei: você tira as distrações delas e elas começam a surtar, porque é insuportável a visão de si mesmo, é algo doloroso demais de si olhar, se a pessoa não tem algum nível de saúde mental não consegue aguentar aquela experiência, precisa de distrações até, aos poucos, desenvolver mais sabedoria, aos poucos abandonar os maus hábitos mentais, aos poucos desenvolver bons hábitos mentais, desenvolve um “canivete suíço” de ferramentas da sua mente, para lidar com as coisas que acontecem. Então você fica hábil para lidar com a sua própria mente; não é que isso seja uma coisa budista, por isso os budistas ensinam a se isolar. Depende de quem é, não é para todo mundo, depende da pessoa estar pronta ou não para enfrentar o verdadeiro inimigo que é a si mesmo. Enquanto a pessoa não está pronta para enfrentar isso, ela vai trabalhando de maneira indireta através da interação com o mundo, através da interação com as pessoas, de realizar projetos, vai trabalhando, melhorando a si mesma, vai desenvolvendo boas qualidades. Eu sempre recomendo as pessoas: “faça algo difícil! Vai aprender a falar uma língua, vai aprender a mexer com carpintaria, aprender a tocar um instrumento musical”, faça alguma coisa difícil porque isso vai desenvolver boas qualidades mentais em você.
A pior coisa é a pessoa ficar parada olhando para televisão, você só regride, mesmo que você não queira virar monge, tudo bem, mas ache uma forma de desafiar a si mesmo! Vai fazer exercício, acordar as 4 da manhã e fazer corrida, fazer natação, aprender a falar inglês, aprender alguma coisa! Faça alguma coisa que é difícil, que requeira boas qualidades para você conseguir ter sucesso naquela atividade, assim você treina a mente a ter boas qualidades, a enfrentar frustração, a enfrentar o desânimo, a enfrentar a raiva de si mesmo porque você não consegue realizar algo; você treina essas coisas usando uma atividade qualquer. Mas se você já tem uma boa fundação de saúde mental, você pode abandonar essas práticas indiretas e começar a trabalhar diretamente com a mente, e lida direto consigo mesmo sem apoio externos. Você senta e encara o leão de frente. A minha sensação quando era noviço lá na Tailândia era isso, eu estava trancado numa cabaninha de madeira com um leão, um olhando para a cara do outro “e agora meu amigo, agora é nós dois. A gente vai conversando e se entendendo aos poucos”; e com o tempo o leão vira um gato, mas isso demora um tempo e no começo é bem difícil! Eu fazia questão de tentar evitar ficar lendo livro, eu queria isso, eu queria aquele stress, não queria fugir para nenhuma distração, não queria ler livro quando vinha aquela sensação de desconforto, de ansiedade, de agonia, qualquer que seja, eu pensava “ok, é para isso que eu vim aqui! Ótimo, vamos lá! É para isso que vim até aqui. É justamente com você quem eu quero conversar! ”. Quando vinha essas sensações de insatisfação, inquietação, todas essas coisas: “opa, agora sim, agora vou praticar, agora chegou a hora! ”. Mas é difícil.
Uma das coisas que eu tinha mais dificuldade de lidar era com o sono, eu tinha que acordar as 3 da manhã e tinha que praticar meditação sozinho, não tinha a meditação em grupo, 3 da manhã, acordava e era eu comigo mesmo, para conseguir me manter acordado foi um desafio terrível, eu acho que um dos mais difíceis que eu já tive, mas a vitória também foi excelente! Quanto mais difícil é o desafio, maior é a sensação de prazer quando você o derrota, quando o vence, o desafio é grande, mas a recompensa é maior ainda. Quem tem persistência, quem tem resolução consegue não desistir e recolhe uma recompensa que é muito maior do que o sofrimento do desafio, e este não é tão grande quanto o prazer da recompensa. Nem é o prazer da recompensa, é o benefício da recompensa, é algo que não é a questão de ser agradável, é algo que é realmente especial, é diferente, é algo nobre, algo útil, algo limpo, e, consequentemente, aquilo tem um bem-estar associado a isso, mas não é o bem estar que é o x da questão, bem-estar é você ter essa percepção que agora a mente está voltando ao normal, está entrando nos eixos, as coisas estão voltando ao normal, agora estou voltando a ser uma pessoa sã, vencendo a insanidade e recuperando a sanidade. É algo desafiador, mas também tem uma recompensa bastante interessante.
Trecho da Palestra de Ajahn Mudito. Abade do Mosteiro Suddhavāri – Tradição da Floresta – Budismo Theravada.
A palestra completa está disponível no Youtube.