A Potência do Simples

 

Nós somos capazes, completamente capazes, de fazer aquilo que é simples e direto, as pequenas coisas do cotidiano. Lavar a louça deixando a pia limpa e organizada, varrer um salão calmamente, pendurar um quadro, usar um aplicativo, tocar um sino ou erguer um zendô1. Por isso, em uma sangha2 não utilizamos as outras pessoas como apoio para nós mesmos, o que há para fazer, fazemos sem demora, diretamente. Mas se alguém precisar de ajuda, da mesma forma estaremos prontos para ajudar. Esse espírito entregue e desocupado de si mesmo é a potência de uma sangha. Por um lado, você percebe-se independente, por outro, participa abertamente do movimento interdependente de todas as coisas. Esse é o modo virtuoso de autoliberação de cada um e de todos ao mesmo tempo em uma sangha.

Entre você e aquilo que você vai fazer não há complexidade, é uma relação direta, se houver complexidade, haverá estresse, julgamentos, angústia e coisas assim desnecessárias de se focar, guardar e cultivar. Alguém que diz que não é capaz de fazer, que projeta dificuldades onde não há ou que faz corpo mole, aplica uma sentença a si mesmo. Cada vez que ele se expressa assim, cultiva uma falsa ideia de incapacidade e alimenta a complexidade da sua própria mente, as características psicológicas do ego, toda a história passada de si mesmo com a qual se identifica e chama de “eu”. Percebamos ou não, estamos sempre inteiros, em tudo o que fazemos, não há outra possibilidade. As experiências passadas e desejos para o futuro estão em nossas ações, e as ações só acontecem agora, e esse agora é livre do tempo (experiências e desejos).

Nossa mente original é simples e direta, é simples porque é direta, imediata, sem subterfúgios, sem desvios. A complexidade da mente não só traz confusão como se utiliza de uma energia que está livre para ser usada na direção do despertar. O velho mestre Keizan disse algo assim, “Quando a prática e a realização não guardam complexidade, então o koan3 (a resposta) é o momento presente”. Você pode saber e confiar que quando houver complexidade e confusão você está saindo do caminho, então você retorna para o simples. Como na meditação vazia, se a sua mente começar a se ocupar com pensamentos e construções abstratas, você simplesmente se desfaz disso, imediatamente. Tudo o que você vai precisar é de tranquilidade, e a tranquilidade você encontra por meio do simples, esse é o ciclo virtuoso da autoliberação. Por exemplo, se você rega o jardim ocupando-se com pensamentos, preocupações e desejos, então há complexidade, por outro lado, se você se desocupa, a água, a terra, as plantas e os insetos te iluminam e, no momento certo, o que tem que ser resolvido será resolvido.

As suas ações na sangha vão liberando você de você mesmo, e a sangha dela própria, então a sangha não se limita mais ao seu grupo de prática Zen, ela se estende, secretamente, para todas as suas relações no seu dia a dia, para o mundo. Cada indivíduo da sangha percebe que é capaz de muito, muito mais do que imaginava ou suspeitava e assim se abre, mais e mais, o caminho para o despertar final.

Texto de Monge Seigen, aluno de Saikawa Roshi. Escola Soto Zen.

 

  1. Zendô: Salão de prática da meditação zen, o zazen.
  2. Sangha: Associação de pessoas para a prática do budismo.
  3.  Koan: Registro público de diálogos entre mestres zen e discípulos ou entre mestres zen. Tais diálogos liberam a mente da lógica condicionada pela dualidade.

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