Quando falamos sobre o Dharma, imaginamos que ele esteja inserido apenas nos ensinamentos dos mestres, e na Sangha. Porém, o Dharma está presente em todos os lugares, e pode ser visto, inclusive, nas construções poéticas. Sendo a poesia uma manifestação das coisas mais genuínas inerentes à existência, e de suas respectivas vicissitudes. No entanto, salienta-se que, as palavras com suas limitações nem sempre conseguem exprimir com verossimilhança os sentimentos, mas ainda sim, é um dos meios salutares para registrar as sensações e emoções que nos circundam diariamente. Sendo assim, vislumbra-se no poema “Contranarciso” do poeta curitibano Paulo Leminski, um dos exemplos claros dos ensinamentos de Buddha, concernentes ao “não-eu” (anatta), bem como da interdependência de todos os seres. Todos nós somos a manifestação da vacuidade, por esta razão, não havendo um “eu” separado, e todos os seres oriundos da vida, reconhece-se no outro a si mesmo, não havendo quaisquer tipos de distinções. Segue, então, a poesia de Leminski:
“Contranarciso
em mim
eu vejo o outro e outro
e outro
enfim dezenas trens passando
vagões cheios de gente centenas
o outro
que há em mim é você
você e você
assim como
eu estou em você eu estou nele
em nós
e só quando estamos em nós estamos em paz
mesmo que estejamos a sós.”
(LEMINSKI, 2013)
Desta maneira, podemos trazer à lume um dos poemas mais brilhantes escritos pelo poeta português Fernando Pessoa, “Não sei quantas almas tenho”. Ao qual trata-se acerca das mudanças dos nossos “eus” – que Pessoa chama de “almas” – no decorrer da existência. Dando ênfase, sobretudo, de como nossa noção de permanência é frágil e cambiante, principalmente quando o poeta alude que esquece, amiúde, o que escreve, indagando-se se fora mesmo ele autor do que estava escrito. Tal ideia corrobora que não há nada inexorável concernente ao nosso “eu”, pois sua mudança se dá a cada passo, não podendo ser cristalizada, como será visto no presente poema “Não sei quantas almas tenho”:
“Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti. Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe porque o escreveu.”
(PESSOA, 1997)
Neste sentido, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre considera que a existência vai se perfazendo à medida que nos equilibramos entre escolhas e consequências, e o indivíduo vai se lapidando com essas experiências, nunca estando pronto e acabado, mas transformando-se a cada instante, havendo a possibilidade de mudar, afinal, não existe fado ou destino; sendo o karma nada mais do que as nossas ações, e os frutos oriundos destas ações. Compreendendo, desta maneira, que haverá sempre a possibilidade de mudar nossas ações, e nos transformarmos em pessoas melhores, sendo isto uma das maiores belezas da vida, e deixando bem exposto sobre isso Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”:
“O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.” (GUIMARÃES ROSA, 2019, p. 24)
O Dharma, como foi visto nos poemas acima, encontra-se presente no mundo ao qual vivemos, não sendo alheio à realidade. E por esta razão, está nas poesias, que representam, sem embargo, as diversas fases dos indivíduos, dos seus “eus”, deixando registrado que a cada momento a impermanência nos assalta, e que torna-se árdua a tarefa de identificarmo-nos como seres inexoráveis e sempiternos, como salienta Fernando Pessoa. Bem como, da impossibilidade de nos vermos alheios para com o outro, quando compreendemos que no outro estamos em nós, como constata Paulo Leminski, demonstrando, amiúde, um dos ensinamentos pilares de Buda que versa sobre a interdependência.
Texto de José Soares. Praticante na Daissen Ji. Escola Soto Zen.
Referências Bibliográficas:
LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.
PESSOA, Fernando. Poesias. São Paulo: Editora L&PM Pocket (edição de bolso), 1997.
GUIMARÃES ROSA, J. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Cia. das Letras, 22 edição, 2019.