“Todos nossos atos são autodirigidos e todo amor é antes de tudo, amor próprio”.
Nietzsche
Conta a lenda que quando Bodhidharma chegou à China o imperador Wu, sabendo da importância do mestre, chamou-o ao palácio e perguntou: “Eu trouxe as escrituras do seu país para a China, fiz traduções, construí templos e mosteiros e fiz com que muitos aprendessem a doutrina budista. Quais méritos acumulei para a outra vida?”. Esse é o tipo de pensamento que domina a maioria dos seres humanos: a recompensa ou o reconhecimento por seus atos. A necessidade de reconhecimento existe quando imaginamos que fizemos algo muito bom ou correto e esperamos ser valorizados e elogiados a esse respeito.
Um psicólogo americano chamado Maslow criou uma pirâmide onde apresentava as necessidades humanas em ordem de importância. A necessidade de reconhecimento era o quarto item, quase no topo. “Esta necessidade”, dizia ele, “refere-se à estima que se sente por si mesmo. A autoestima que sentimos está associada a sentimentos de confiança, segurança, importância, sucesso e apreço”. Ele falava ainda que o sentimento de pertencimento possibilita o desenvolvimento de uma autoestima adequada. Podemos observar que a necessidade de reconhecimento é muito antiga e, dizem os psicólogos, é inerente à nossa espécie e essencial para nosso desenvolvimento pessoal.
Sendo assim, é fácil observar que toda nossa educação, do lar às universidades, está baseada no prêmio e consequentemente direcionamos nossa mente para recebermos a recompensa, mesmo em forma de reconhecimento, sempre que fizermos algo que julguemos bem feito ou correto e pertencermos a um grupo ajuda a formação de nossa identidade. Porém, deve haver um limite que não pode ser transposto, que é quando esta necessidade torna-se essencial para que nos sintamos motivados a trabalhar ou mesmo existir.
Como o Zen tem pouco ou nada a ver com a psicologia ocidental, dois anos em um mosteiro Zen no Japão me ensinaram a nunca esperar tapinhas nos ombros ou afagos na cabeça por ter feito algo bem feito. Na verdade, não sei dizer se algum dia fiz algo certo no mosteiro. Erros sei que os cometi muitos, pois isso era deixado muito claro, mas os acertos nunca me foram revelados. O objetivo no mosteiro é justamente desmontar nosso ego, nossa autoestima e diminuir a nossa forte autoimagem. Para os psicólogos ocidentais isso seria trágico, mas em um mosteiro aprendemos que não existem motivos para elogios ou reconhecimentos, pois este não é objetivo da prática, então, como respondeu Bodhidharma ao imperador Wu, “Mérito nenhum, majestade”. Aos poucos deveríamos ir aprendendo que nossa prática não nos pertence e assim como os atos de caridade que fazemos, os fazemos pelos outros. Aquele que espera acumular méritos ou aguarda reconhecimento terá sempre uma prática falsa e vazia.
É comum no início de nossa prática sentarmos para fazer Zazen esperando que algo aconteça, esperando de alguma forma sermos recompensados por nossos esforços ou para obtermos algum reconhecimento. De certa maneira, somos como crianças esperando que nossos pais digam “Muito bem, filhinho, ficou lindo”. Somos tão maduros, alguns de nós, como crianças no colo de nossas mães. Não existe nenhum mérito quando este é resultado de alguma barganha ou quando fazemos algo bom esperando pelo reconhecimento.
A pandemia instaurou em nossas vidas um novo modelo que pode potencializar ainda mais essa necessidade de pertencimento e de reconhecimento: as práticas virtuais. Por serem realizadas de forma tão impessoal e fria, muitas pessoas podem se sentir não ligadas à uma Sangha, ainda que participem dos encontros ou mesmo façam parte da organização. E pode piorar se pessoa apenas senta, por quaisquer que sejam os motivos, sozinha.
A grande questão do nosso envolvimento com uma Sangha ou outro grupo qualquer em nossas vidas, é o quanto isso é autodirigido ou o quanto o fazemos pelos outros. Existe de verdade em mim um ato desprovido de um sentimento de reconhecimento? Se existe, porque não me sinto pertencente ao grupo? Preciso anunciar a todas as pessoas que tenho pouco tempo livre e que farei um grande esforço para realizar um trabalho pedido? Quando faço algum trabalho e meu nome não aparece me sinto desprestigiado? Quem é esse que se sente desprestigiado e por quê? De onde vem, afinal, esse pedido por recompensa e reconhecimento? Quando eu pertenço a uma Sangha, apenas quando sou visto ou citado? Quando sentamos no Zafu, fazemos por nós? Muitas pessoas no mundo inteiro realizam trabalhos que são invisíveis para nós. Reflitamos sobre isso um pouco. Quantas vezes passamos por uma pessoa encarregada de limpar o corredor do prédio onde moramos ou a rua por onde passamos e lhe damos pelo menos um bom dia? Quantas vezes olhamos diretamente nos olhos do senhor que recolhe nosso lixo diariamente? Na Sangha também existem inúmeras pessoas realizando todo tipo de trabalho. Muitas vezes quando abro o Templo Daissen para a prática presencial as pessoas chegam e começam a limpar, trocar velas, arrumar os Zabuton e abrir as janelas. Na Sangha Virtual algumas pessoas realizam algum tipo de função que eu nem sei que existe, mas tenho certeza que sem elas não teríamos o alcance que temos. Mesmo pessoas que não participam da organização, mas “apenas” sentam-se esporadicamente sozinhas ou com o grupo, também são importantes, mesmo que não saibam disso e que não recebam reconhecimento público. Fritjof Capra disse que “As pessoas formam famílias, tribos, sociedades e nações. Todas estas entidades, das moléculas dos seres humanos e destes aos sistemas sociais, podem ser consideradas “todo” no sentido de serem estruturas integradas e também partes de todos maiores, em níveis superiores de complexidade. De fato veremos que partes e todos, num sentido absoluto, não existem”.
Nietzsche dizia que não amamos a pessoa ou o objeto a quem devotamos ou juramos amor, amamos a sensação boa do retorno deste sentimento. Em razão disso, devemos observar nossa prática para percebermos de que forma estamos amando e nos dedicando à mesma. Se fazemos pelos outros verdadeiramente ou a fazemos pela sensação de bem-estar e necessidade de reconhecimento, como uma recompensa pelo nosso esforço e dedicação, ou ainda como acúmulo de mérito para a próxima manifestação kármica ou até onde nossa prática é livre de quaisquer objetivos. A prática verdadeira não é por nós, por méritos, reconhecimento ou recompensas. É pelos outros, mesmo que eu me sente sozinho em casa e nunca jamais alguém saiba disso. Quando abrimos nossa mente e prática para além de nossa satisfação e necessidades pessoais, nos abrimos para a vida.
Texto de monge Chûdô. Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.