Sugerem alguns documentos históricos que em uma sessão do Parlamento francês no dia 13 de abril de 1655, o famoso rei Luís XIV teria dito uma das frases que o imortalizou: “Je suis la Loi, Je suis l’Etat; l’Etat c’est moi“, que significa: “Eu sou a lei; eu sou o Estado; o Estado sou eu”. Luís XIV, o “Rei Sol”, que se considerava designado por Deus para comandar a França, deu ao Parlamento e ao povo francês uma solução para o complexo dilema de submeterem-se à uma ideia, uma abstração, como é o Estado. Luís XIV deu um corpo ao Estado. O corpo do Rei. Um corpo que se vai e se encarna simbolicamente em seu sucessor consanguíneo dando ares de eternidade à essa abstração poderosa que são os Estados. Pouco mais de 100 anos mais tarde, o sucessor de Luís XIV foi executado a mando dos líderes daquela que ficou conhecida como a Revolução Francesa. E a monarquia francesa deixou de existir.
Um dos grandes equívocos na interpretação dos fenômenos políticos de nossa vida social é acreditar que as nações, os reis, os regimes, os governos e principalmente os Estados existem como uma realidade autossuficiente, dotados de uma essência que permanece pelos tempos. Luís XIV acreditava que ele era a essência do Estado. Os nazistas alemães acreditavam que o povo ariano possuía uma natureza específica não compartilhada com os demais seres humanos. Hitler apregoava que o Terceiro Reich duraria mil anos.
Ao contrário dos slogans nacionalistas e patrióticos, o que a História mostra é que o Estado não existiu sempre e, certamente, não existirá para sempre. Que os regimes mudam o tempo todo. Que os governos passam, e que não existe nenhuma nação “pura”. Todas as nações são grupos diferentes de populações que se agregaram em função de conjunturas históricas, geográficas, e que acabaram mais ou menos isolados em determinadas regiões do globo terrestre. As fronteiras dos países mudam, as leis dos países mudam, as características culturais dos países mudam. Como nosso tempo de vida é muito curto, acabamos por ignorar a impermanência dessas estruturas que se pretendem eternas e/ou milenares. Como nosso espaço de vida é, também, reduzido, tendemos a generalizar nossa realidade próxima, ignorando que o mundo é muito mais diversificado que nossa percepção imediata.
O Brasil confirma a regra. Podemos tomar como referência de organização do Estado Brasileiro as constituições que o regiram. Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a própria ideia de ter um conjunto de normas escritas norteando todas as demais regras do país não é uma realidade muito antiga. E, assumindo que o Brasil já se insere em uma época de ascensão das constituições como norma máxima de um país, observamos como esse documento no Brasil muda com certa frequência e está muito longe de ter alguma “essência”. Em um rápido passeio pela história, a primeira Constituição do Brasil (1823), um recém-criado Império, vinha em processo de elaboração a partir de representantes eleitos, até que D. Pedro I dissolveu a Assembleia e impôs um texto ao seu gosto. Constituição essa que foi totalmente ignorada quando militares em um claro movimento de Golpe de Estado expulsaram do país D. Pedro II, governante legítimo segundo a Constituição imposta por seu pai. A nova Constituição (1891), agora de um país republicano, foi novamente ignorada quando Getúlio Vargas – quando em um movimento também apoiado por militares – tomou o poder no país mesmo tendo sido derrotado nas eleições nada confiáveis que ocorreram em 1930. Uma nova constituinte foi convocada (1934) e depois ignorada por uma outra Constituição imposta (1937). Outra Constituinte foi promulgada após os anos de Getúlio no poder (1946) e novamente ignorada em outro Golpe de Estado apoiado pelos militares em 1964. Durante o regime militar, foi promulgada uma nova Constituição (1967) e depois emendada em quase sua totalidade por meio de atos do governo sem representação popular (1969). Com o fim da Ditadura Civil Militar, novos representantes foram eleitos para uma nova Constituição, promulgada em 1988. Essa em vigor até hoje.
Se a impermanência é marca de todas as coisas, a brevidade marca as constituições brasileiras.
Importante notar, ainda, que uma Constituição – e a brasileira em especial – não é o resultado homogêneo de um acordo, mas um consenso mínimo obtido entre grupos muito diferentes, com interesses conflitantes. Não surpreende que nossa Constituição seja contraditória, eventualmente, visto que não possui uma voz, uma essência, mas muitas vozes que registraram seus interesses por escrito no corpo de normas que rege o país.
O que podemos perceber ao analisar os Estados e suas regras sob o prisma da História é que essas estruturas políticas que nos governam não passam de ficções, embora seus narradores pretendam que sejam permanentes e imutáveis. E nisso reside a grande frustração dos que lutam desesperadamente ao ponto de dar e tirar a vida em nome dessas estruturas. A escalada da violência só aumenta, porque é uma luta impossível de vencer. Como percebido por sábios, como o Shakyamuni Buda, há mais de dois mil e quinhentos anos atrás, a realidade objetiva da vida mostra-se em constante mudança; resultante de combinações de elementos; desprovida de territórios absolutamente “sólidos” onde se possam fincar bandeiras eternas; despovoada de essências, que “des” “cobertas” por revelações espirituais, reflexões filosóficas ou investigações científicas.
Estados surgem e desaparecem. Nações surgem e desaparecem. Povos surgem e desaparecem. Costumes surgem e desaparecem. Leis surgem e desaparecem. Apenas o que permanece são as consequências das nossas ações. Lutar por Estados e nações leva-nos a agir contra outros seres em nome de uma guerra sem sentido e sem chance de vitória, causando dor e sofrimento.
Não à toa o grande físico Albert Einstein disse:
“O nacionalismo é uma doença infantil; é o sarampo da humanidade. ”
Texto elaborado pela equipe da coluna História e Sociedade.