Existe uma função condicionada da mente, que nos faz fragmentar a realidade conforme a percebemos. Ao olhar para o céu, discriminamos-o em diferentes partes: nuvem, sol, claro, escuro, pássaros. Ao ser construída uma visão assim, é como se atribuíssemos uma identidade, uma realidade a cada um desses elementos separadamente, tornando-os objetos distintos na nossa percepção.
Essa função discriminativa da mente contém em si uma outra identidade subentendida – além das nuvens e dos pássaros – que é a identidade daquele que percebe. Ao olhar para o mundo e o perceber através de inúmeros pedaços nomeados de realidade, em cada uma dessas percepções está contida a ideia daquele que as vê. “Eu” vê a nuvem, “eu” vê o céu, “eu” vê os pássaros.
E a partir dessa visão construída pela linguagem, pelo hábito e pelo pensamento, cria-se uma relação imaginária entre esses elementos. O fragmento da realidade “eu” que vê os outros fragmentos, relaciona-se com eles conforme uma história, uma narrativa pessoal que é continuamente construída socialmente e carmicamente, através de tendências que se renovam e misturam conforme são vivenciadas.
Pode ser que o “eu” que veja o pássaro no céu o aprecie; pode ser que sinta medo dele. Pode ser que deseje aprisioná-lo e pô-lo em uma gaiola, ou então que atire nele para o caçar. O pássaro continua sendo o mesmo, nada mudou quanto a realidade de sua natureza, porém a forma como ele é percebido destoa em diferentes graus dependendo da narrativa histórica que envolve o senso do perceptor.
Essas nuances da visão podem gerar intenso prazer ou absurdo sofrimento, mas o que todas elas têm em comum é que são temporárias, vazias de realidade intrínseca, construídas através de causas e condições inumeráveis. Enquanto não estivermos conscientes disso, vemo-nos cativos a uma bolha de realidade sempre levada pela correnteza das emoções e dos pensamentos, chocando-se contra as margens, afundando e emergindo em busca de ar.
No zen budismo, sentados em zazen, aprendemos a existir no mundo sem exercer essa função discriminativa da mente, sem isolar e significar aspectos da realidade como se tivessem naturezas próprias, separados do continuum interexistente.
Sentamos e deixamos os sons passarem, sem dar significado a eles, sem criar uma relação entre o som e aquele que os escuta. Sentimos calor ou frio, e não qualificamos isso, não isolamos as sensações para discriminá-las como boas ou más. Um inseto voa, o dia amanhece, o sino ressoa. Tudo isso está presente mas ao mesmo tempo não está.
Os pensamentos surgem, trazendo suas inúmeras ondas que sacodem o mar da consciência, e nós apenas as deixamos ir, criando seus círculos concêntricos que se ampliam e se dissolvem em si mesmos. Não julgamos se são ondas boas ou más, reconhecemos que são apenas ondas, apenas movimento estabelecido pelo hábito, que floresce e murcha como tudo na natureza.
Sentados em zazen, deixamos de nos ver como perceptores separados daquilo que é percebido, deixamos de alimentar o senso de um eu ausente de toda a realidade, que apenas a observa de “fora”, sem fazer parte dela. No silêncio da experiência contemplativa, fazemos votos mudos de estar atentos, presentes e conscientes, não como sujeitos históricos, mas como expressões vivas e interdependentes do universo.
Então o céu que permeia o mundo somos nós.
E as nuvens que flutuam ao vento somos nós também.
A função discriminativa da mente vai voltar a agir, ela é um hábito muito antigo que tem raízes profundas na mente, mas cada vez mais vamos encontrar esses espaços, essas pausas na nomeação compulsória da realidade, onde vamos apenas reconhecer a existência sem nos separar dela, sem desejar ou temer nenhum dos seus aspectos construídos pelo próprio pensamento.
Continuaremos a fazer zazen, e a depois tomar o café da manhã, a ir trabalhar e voltar para casa. Mas a qualidade dessas mesmas experiências será cada vez menos fragmentada, conforme nossos votos renovados de estarmos atentos, presentes e conscientes se intensificarem.
E assim quando respirarmos, não haverá mais o ar, a respiração e o respirador. Haverá apenas o inominável, aquilo que sempre existiu, somente sendo exatamente aquilo que é: nem eu, e nem não-eu.
Por Clarisse Gudniak, DaissenJi, Soto Zen