O sorriso de Mahakashyapa em resposta à flor erguida por Buddha, o sangue do braço de Taiso Eka diante da imobilidade de Bodhidharma. A relação entre mestre e discípulo tem muitas faces, mas tem sempre em comum a total entrega.
O Zen é uma tradição baseada em experiências espirituais pessoais dos tempos de Buddha até hoje. Quando mente e corpo foram abandonados, Dōgen foi até o quarto de seu mestre e acendeu um incenso. O “velho Buddha” – é assim que Dōgen se referia a Tendō Nyojō – deu a ele o exemplo de como praticar, se sentando todos os dias de madrugada a madrugada, sendo severo com os que se dispunham a seguí-lo, como ao despertar do sono a chineladas um aluno que dormia sentado em seu zafu, e ao mesmo tempo cheio de compaixão, como quando recebeu o monge forasteiro como a um filho, dando livre acesso ao seu quarto para que pudesse tirar dúvidas sobre a prática a qualquer hora do dia ou da noite.
Em diversos textos, a gratidão de Dōgen a Tendō Nyojō é palpável, pois embora seu despertar tenha acontecido após uma vida de dedicação e esforços, ele só foi possível por ter encontrado seu mestre.
A entrega necessária
O mestre, muitas vezes, enxerga no discípulo potencialidades invisíveis para todos. Porém, para que sejam desenvolvidas, é preciso ouvir e obedecer. Genshō Rōshi explica que “No Zen, praticamos sob a orientação espiritual de um mestre. E a partir do momento em que se deixa a posição de aluno para ocupar a posição de discípulo, você vai dizer ‘hai’ (‘sim’), para as instruções ligadas à prática. A única exceção é sobre aquilo que fira os preceitos. Porque um verdadeiro mestre não vai lhe pedir para fazer algo que fira os preceitos.”
Esquecer-se de si é um dos requisitos para o caminho espiritual, e a obediência é uma grande ferramenta para isso. No mosteiro de treinamento, da hora em que acordávamos à hora de dormir, apenas seguíamos o que nos era dito, um dia após o outro. Quando se busca a máxima liberdade, aquela que é alcançada quando olhamos nos olhos da verdadeira face da realidade, faz parte do processo abrir mão dos pequenos pontos de vista, das vaidades, dos orgulhos. Morrer para si mesmo.
E, em relação ao mestre, ainda há outro fator: a confiança. É preciso se entregar a essa relação ou simplesmente se estará sabotando-a. Se se tenta esconder facetas de sua personalidade, planos presentes ou futuros, ideias e sentimentos, se está desperdiçando completamente a oportunidade de ter encontrado um verdadeiro mestre.
Enquanto todos que olhavam Angulimala viam um serial killer, Buddha viu um discípulo com capacidades latentes para o despertar. E já no primeiro encontro que tiveram, quando todos, incluindo o próprio Angulimala, pensavam que Buddha seria por ele assassinado, o Tathagata ordenou: “pare”. O assassino deu lugar ao praticante espiritual no momento em que obedeceu com convicção à inesperada exigência.
Tal é o poder que permeia a verdadeira relação entre mestre e discípulo.
Os ancestrais vivos do Zen
Monge Genshō, certa vez, disse que todas as conversas com Saikawa Roshi eram sobre o despertar, mesmo que estivessem informalmente tomando café da manhã. É impressionante perceber como Saikawa está em Genshō e como um Roshi ajudou o outro a nascer. Do momento da ordenação, a mais bela “instant decision” da qual já ouvi falar, até quando voltou ao Japão, o mestre nutriu com o mais puro Dharma cada momento ao lado de seu discípulo.
Agora, anos depois, quando eu e Monja Kakuji adentramos a sala de Saikawa Roshi, no mosteiro de Kasuisai, fomos tomados de emoção, pois ali estava o mestre de nosso mestre, o homem que entregou tão generosamente o Dharma de Buddha àquele que hoje nos guia no Caminho. A bondade no olhar, gestos e palavras era a de um ancestral do Zen, mas um ancestral que estava ali na nossa frente nos recebendo com tanta gentileza.
Outro dia perguntaram para Kakuji o porquê de termos nos tornado monges e ela disse “porque encontramos um mestre que é tão verdadeiramente o nosso mestre que é como nos livros sobre o Zen na antiga China”. E é isso mesmo, quando olhamos para os Rōshis Genshō e Saikawa, vemos toda a linhagem, vemos Dōgen, Taiso Eka, Shariputra, Ananda, Mahakasyapa, o próprio Buddha. E, ao mesmo tempo, vemos homens, seres humanos como nós, o que é o mais inspirador de toda essa história. Na presença deles, sentimos a força e a beleza da prática e nos enchemos de energia para continuarmos no Caminho com todo nosso ser.
É preciso subir a montanha.
“O mestre aparece porque o discípulo o procura verdadeiramente, assim pode reconhecê-lo. O aluno tem que subir a montanha.” – Genshō Rōshi
Dez anos de prática,
Cinco na Ásia,
Mosteiros Theravada,
Ensinamentos de Ajahns das florestas tailandesas,
Aulas com lamas tibetanos refugiados no Norte da Índia,
Caminhadas em meditação com monges vietnamitas…
Essa foi a montanha que Kakuji e eu começamos a subir após a morte do meu pai, em 2011. No começo, a caminhada era cheia de dor e a prática se misturava à elaboração do processo de luto. Porém, de retiro em retiro, ano após ano, íamos nos encontrando, dando passos mais seguros, aprendendo a apreciar a paisagem. Dentre os professores espirituais cujas palavras estudávamos, estava Genshō Rōshi e desde 2015 líamos seus textos e assistíamos às suas palestras. Em uma anotação em um caderno que usei nos cursos e retiros que fizemos em um centro de Budismo Tibetano em Dharankot, na Índia, está escrito que “deveríamos ir em busca da simplicidade direta do Zen”. Combinamos que no dia em que voltássemos ao Brasil procuraríamos aquele monge de Florianópolis cujos ensinamentos ressoavam tão fortemente em nós.
No primeiro dokusan, tudo foi desvelado. Ali estava o mestre que não sabíamos estar procurando esses anos todos. A emoção que Kakuji e eu sentimos não teve paralelo em toda nossa trajetória. Havíamos passado por muitos professores espirituais, alguns deles do mais alto nível, pessoas que nos ajudaram e ensinaram muito, mas nunca tivemos a vontade de pedir para sermos seus discípulos. Intuíamos que eram mestres, mas não nossos mestres.
É preciso ter olhos para reconhecer o mestre. E, para nós, foram necessários todos esses anos e experiências para que, quando encontrássemos Genshō Rōshi, não houvesse a menor dúvida. Subimos a montanha, e cada passo foi moldando nossos olhares de discípulos. Hoje, nos resta caminhar, seguir os passos de quem carrega consigo toda a linhagem dos ancestrais indianos, chineses e japoneses. Hoje, cada passo é leve e calmo, pois diariamente nosso mestre nos mostra que o pico da montanha é onde estão os nossos pés.
Por Monge Muryo 無量, Monge na Daissen Ji. Escola Soto Zen.